OITAVO BRINDE
Cibos
Se as serras separam tribos,
Lonjuras corpos separam,
Há para além outros cibos
Que os espíritos amparam.
Existe a comunidade
Humana em que somos parte,
Sem mais ruas de vaidade,
De inúteis nomes, destarte.
Há lá grandes avenidas
Que unem o que está distante,
Com reparações devidas
Ao tempo que as mal garante.
Ali, ao darmos as mãos,
Descobrimo-nos irmãos.
Sonhar
Muitos julgam magoar
Aqueles a quem amamos
Quando para trás deixamos
Tudo em nome de sonhar.
Quem nos quer bem, em lugar,
Quer que felizes sejamos,
Sem mesmo entender os ramos
Em que iremos apostar.
Embora ao primeiro instante
Venham tentar impedir
Alguém de em frente seguir,
Mesmo na ameaça gritante
Vemos por trás da caraça:
- Querem o que bem nos faça.
Diferença
Que em cada grão de areia possa ver
A manifestação da diferença,
Milagre a encorajar-me na sentença
De me aceitar no que é meu raro ser.
Tal como não existem em qualquer
Praia dois grãos de areia (dentre a imensa
Infinidade em duna, sua tença)
Inteiramente iguais no parecer,
Também no ser humano não existem
Dois indivíduos a entender igual,
Embora os argumentos que persistem
Eternamente o busquem no final.
Diverge cada qual de leira em leira,
Igual ao não pensar de igual maneira.
Respeita
Respeita o ritmo semear-colher,
Depois espera a milagrosa muda.
Enquanto o trigo ainda for cozer
De pão o chama apenas quem se iluda.
Enquanto os termos na garganta muda
Presos andarem são poema a ser,
Nunca um poema a que um cantar acuda.
Enquanto o fio pela mão qualquer
Que o trabalhar não resultar unido
Não poderei chamá-lo e ser tecido.
Respeita o tempo que entretanto houver.
A dimensão de tudo o que é nascido
Requer o pêndulo da espera, tido
Como fermento de amanhãs a haver.
Parar
Será preciso um objectivo em mente.
Mas, à medida que se for andando,
Não custa nada que, de vez em quando,
Um pouco pare a desfrutar, presente,
Desta paisagem que se vá espalhando
Um pouco à volta em mansidão crescente.
A cada metro conquistado, em frente
Poderei ver um pouco mais, olhando
Lonjura além, e aproveitar então
A descobrir tudo o que houver à mão
E que entender não entendera ainda.
Pergunto calmo pelos meus valores,
Se andam intactos ou com vis bolores
E dou-me conta de ser eu à vinda.
Igual
Cantamos todos uma igual canção,
A da alegria no labor trilhado.
Morre de fome o poeta quando, ao lado,
Não existir algum pastor com pão.
Morre o pastor com a tristeza, em vão,
Se não ouvir o poeta a ser cantado.
Nesta oferenda, a amar e ser amado,
Saltando vamos o abismal desvão
E permitindo que os mais vão amar-nos.
Aprender vamos, sem com tal culpar-nos,
Outrem a amar pelo que a nós oferte.
Cruzamos bens, trocamos mil serviços,
Calor gerando com meus-teus chamiços,
- É mesmo o alvor que além a arder desperte.
Labor
Há labor que aceitamos, a ganhar
O pão de cada dia, mas na via
De encher cada minuto da magia
Do amor aos outros que eu ali plantar.
É uma oferenda, já que a cozinhar
Dois indivíduos ter eu poderia
O mesmo prato, igual toda a iguaria,
Mas um porá o amor no que operar
Enquanto um outro apenas se alimente:
É diferente por inteiro o efeito,
Apesar de o amor, mesmo que atente,
Não poder ver-se ou pôr-se na balança.
Quem a oferenda faz, à prenda é atreito,
Quão mais partilha afecto, mais o alcança.
Porta
Aos que tentam abrir a única porta
Que importa, o coração, enfim te junta.
Jamais invadem qualquer alma morta
Sem o consentimento que o assunta.
Jamais a porta aberta usam lá junta
Flechas a disparar, se não importa.
A amizade é um ribeiro que a pele unta,
Contorna pedras, vales nos recorta,
Até mudar-se em lago que transborda
E pode prosseguir na rota dela.
Tal como o rio não ignora a borda
Do mar que busca, uma amizade apela
À única razão para existir:
Amor por outrem viver em devir.
Decidir
Não podem aguardar que tudo ocorra
E decidir após qual a atitude.
Decidem enquanto agem, com virtude,
Sabendo embora o risco que isto aforra.
São livres: quando o ramo à vida mude,
Mudam quanto o exigir a vida forra.
Desbravam os caminhos onde corra
A aventura onde a grei a enricar grude.
Se tomam um estrada perigosa,
Nunca te irão clamar: “não faças isso!”
Dirão quanto perigo ali sem entrosa.
Como respeitas tu a honestidade
Com que eles se confrontam com o enguiço,
Respeitam eles tua liberdade.
Procura
Procura teus aliados entre quem
Convicto é do que faz e do que for.
Não os que como o teu têm o fulgor,
Mas os que irão pensar diverso além.
Aqueles que não vais convencer bem
De a razão de teu lado ter vigor.
A amizade é uma face que há no amor,
Da variedade a perda não lhe advém.
Aceita o companheiro sem reservas,
Cada qual a seu modo irá crescer,
As mãos são livres, não há mais mãos servas.
A amizade não age nunca à toa,
Não é renúncia nunca ao próprio ser,
Antes acto de fé noutra pessoa.
Sós
Nascemos sós e sós ao fim morremos,
Mas, enquanto estivermos no planeta,
Noutras pessoas a fé mais completa
De aceitar na alegria sempre temos.
Comunidade é vida: ali colhemos
Nossa capacidade de ir à meta
Que sobreviver firme despoleta,
Desde as cavernas até o que hoje vemos.
Respeita os que cresceram e aprenderam,
Respeita os que ensinaram o que amaram,
Conta em teu dia histórias que te geram.
Quem não partilha à mesa as alegrias
E os desânimos vis que os já murcharam
Jamais o bem e o mal sabe dos dias.
Unem
Se os corpos se unem só, só dá prazer
E o sexo muito além vai disto ali.
Nele caminham juntos, se o ouvi,
Tensão-relaxamento quanto houver,
A dor e a alegria, a timidez
E a coragem de além ir dos limites.
Em sintonia como pôr bem quites
Tantos opostos? Na entrega de vez.
A entrega significa: “em ti confio.”
Nem logro imaginar que é que ocorrer
Poderia se atáramos o fio
Que os corpos anda a unir entre quenquer,
Agora bem seguro em nossas palmas,
Para amarrar também as nossas almas.
Explicações
O tempo e a vida dão-me explicações
De tudo, lógicas, mas o imo meu
Só de mistérios vive e de ilusões.
Preciso do mistério, ver o véu
Que no trovão me esconde enraivecida
A voz dum deus, embora uma heresia.
Quero voltar a encher a minha vida
Dos ouropéis que veste a fantasia,
Que um deus mui furibundo, é curioso,
Bem mais prometedor, interessante
Nos há-de sempre ser no céu fogoso
A escorrer as mil raivas pelos lábios,
Ferindo com os raios adiante,
Do que um facto explicado pelos sábios.
Liberta
Amamos só porque o amor liberta,
Dizemos as palavras que não tinha,
Ao murmurar coragem, nem, na certa,
Para mim próprio, feito uma adivinha.
E tomo a decisão, ora desperta,
Que fora de deixar antes maninha.
Aprendo a dizer não sem ver aberta
A maldição que o termo me avizinha.
E aprendo a dizer sim, sem já temer
As consequências, sejam lá quais forem.
O que aprendi do amor é a mal reter:
Cada encontro diverge, faz que morem
Ali contrárias cores e magias,
Tem tudo êxtases próprios e agonias.
Rosa
Sonha a rosa com abelhas
A fazer-lhe companhia,
Mas nenhuma aparecia.
Pergunta o sol, lá das telhas,
Se a espera não cansaria.
“Sim” – diz a rosa nas celhas –
“Mas as pétalas vermelhas
Se fecho, murcho num dia.”
Se o amor não aparece,
Continuamos abertos
À vinda que nos esquece.
Se a solidão esmagar,
Resisto aos dias incertos
Só se continuo a amar.
Escutar
Para escutar as palavras
Do amor é urgente deixar
Que se possa aproximar.
Quando chegam perto as lavras,
Tememos o que tiver
A revolver, que o amor,
É livre e dele o vigor
Não o iremos nós reger.
Sabem-no os amantes bem.
Não se conformam, porém,
Tentam-no a bem comedir.
O vero amor traz a luz,
É aquele que nos seduz,
Não se deixa seduzir.
Espalha
A vida espalha a luz em todo o lado.
Quando nascemos, tudo nós quisemos
Ao mesmo tempo, sem que controlemos
A energia em que o fogo nos é dado.
Quando é preciso fogo, é postulado
Que os mil raios do sol nós concentremos
Todos no mesmo canto que queremos.
Do cosmos o segredo confiado
É o do fogo capaz bem de aquecer
Como de transformar o trigo em pão.
Há-de haver um momento, pois, qualquer,
Em que urge concentrar no mesmo chão
O fogo interior, ali mantido
Para que a vida tenha algum sentido.
Disparidade
As crises são a medida
Da funda disparidade
Da imagem com que se lida
E do que sou em verdade.
Durante centenas de anos
Ferimos a natureza
Do que somos com os danos
De ignorar o que nos preza,
- Os nossos laços e nós –
Ao lermo-nos separados
Do mundo, deixados sós
Em recantos isolados.
Com esta falsa visão
Não vivo, tombei no chão.
Criar
O modo mais poderoso
De criar comunidade
Vibrante, aberta e com gozo
É à tendência que me invade
De grudar-me aos semelhantes
Ultrapassar e encontrar
União, após como antes,
No espaço que os separar,
Lugar de independência
Onde todos nos juntamos
Da humanidade na essência
E o fito comum visamos:
O dum super-organismo
Comunitário de abismo.
Sabe
Se sabe o que alguém anda a fazer,
Caminhe-lhe adiante.
Se quer adivinhar o que fará quenquer,
Mantenha-se-lhe atrás, constante,
Pare quando parar,
Passeie quando passeia,
Viaje tão devagar
Quanto ele, a cada esquina onde ameia.
Poderá ver o que ele viu
E então agir ou não como ele agiu.
Para o bem ou para o mal,
A consonância
Encurta a distância
Entre cada qual e cada qual.
Outono
Que são cinquenta e nove anos?
Já não são a primavera
Que findou nos desenganos
Do que, sonhado, não era.
Mas são outono fecundo,
Época de colher frutos
Quando os pés, correndo mundo,
Provam todos os condutos.
E o melhor de todos eles
É que ambos nos partilhamos,
Sendo ambos um, no que apeles,
Mesa sem servos nem amos.
Tal sabor tem tal comida
Que ao festim todos convida.
Permite
Permite que eu ajude os meus amigos.
Preciso do que Tu me podes dar:
Que me ajudem amigos meus a par.
Dá-me a humildade de deixar que abrigos
Me arranjem eles sem jamais parar.
Permite que nas trevas uns postigos
Abram para me virem dos pascigos
Do terror, da tristeza, enfim salvar.
As trevas já guardei tempo demais
Comigo refechadas e silentes.
Peço-Te agora o auxílio que puderes,
Preciso de agarrar alguns sinais,
De qualquer âncora que ao fundo assentes,
Do que me salve de jamais me teres.
Carro
No carro da minha vida
Deus vai no banco de trás.
Desejo senti-Lo assaz,
Mas sem a mão distraída.
E a viatura conduzida
Por Ele? Não sou capaz!
Felizmente Ele é tenaz,
Paciente sem medida,
Aguarda sentar-se à frente,
Poder girar o volante,
Poder pisar os pedais...
Se as chaves dou, finalmente,
Então é que voo adiante
Em viagens siderais.
Ilusão
É o divórcio a ilusão
De como devia ser.
Choca a realidade então,
No conflito a referver.
“Para sempre são felizes”
É história fantasiada.
Renunciar a tais matrizes
É perceber a jogada
Que o mundo real promete.
Quando um animal se alia,
A fundo se compromete,
Aceita, não fantasia.
Quando como animal lidas,
Tens uniões bem sucedidas.
Mochila
Da vida em tua viagem
Levas mochila emprestada,
Com mil outros na bagagem,
Carga em que não sentes nada?
Senta-te por uns instantes,
Tira quanto não é teu,
Já o não queres como dantes
Nem o trilho o requereu.
Descansa aí, recupera.
Ao voltar a caminhar,
Teu passo leve acelera,
Tornas tudo a apreciar.
A tristeza à confiança
Dá lugar com segurança.
Ocasião
De mostrar ter ocasião
O que logramos fazer
É mais outra diversão
De todo o nosso mister.
Não podemos puramente
Andar sempre a trabalhar,
Temos, alternadamente,
De nos divertir, a par.
Divertir-nos tanto importa
Como importa respirar.
Tal mesa posta comporta
O espírito a operar.
Do espírito um bom momento
Requer sempre este alimento.
ÍNDICE
Primeiro brinde
Quadras de agir
Segundo brinde
Quadras de amor
Terceiro brinde
Quadras de realidade
Quarto brinde
Quadras irregulares
Quinto brinde
Poemas do dever
Sexto brinde
Poemas irregulares
Sétimo brinde
Poemas de factos
Oitavo brinde
Sonetos