SÉTIMO  BRINDE

 

 

 

 

Boa

 

Boa coisa é ser criança.

Se alguém requer um favor,

Junto os méritos que alcança

A servirem de penhor.

 

Miúdos que méritos têm?

Basta-lhes arguir apenas:

- Sou eu, o filho de alguém...

(Mais tens quão mais alto acenas).

 

Ora, na vida interior,

Os meus laços como os teus

Ligam-me a um grande senhor:

- Eu sou um filho de Deus!

 

 

Bate

 

Miúdo que bate à porta

Bateu uma, duas vezes...

Ninguém atende? Que importa?

Bate mais, nem que o desprezes.

 

Quem vai abrir, ofendido,

É pela simplicidade

Desarmado do atendido:

- E assim Deus se persuade!

 

 

Mães

 

Não sentes na tua mão

A mão de ninguém lá perto?

Mas as mães da terra não

Viste, com o abraço aberto,

 

Delas seguindo os pequenos

Quando tentam, receosos,

Passos débeis nos terrenos

Sem auxílios onerosos?

 

Podes não sentir ajuda.

Porém, de ti lá bem dentro,

Muito há sempre quem te acuda:

- Vê só o fundo de teu centro.

 

 

Burrico

 

O burrico anda na nora,

Perene nas mesmas voltas,

Um dia e outro demora,

Todos iguais, sem revoltas.

 

Sem isto não haveria

Maturidade nos frutos

Nem nas hortas louçania

Nem o aroma dos produtos.

 

Assim é de toda a vida,

Fora ou dentro em nós vivida.

 

 

História

 

Presa na memória,

A cruzá-la exorta

Uma boa história.

É como uma porta:

Quando é necessário,

Abres o sacrário,

 

Esqueces problemas

Mais a realidade

E outros negros temas.

Volta a tenra idade

E podes voltar

Quanta vez calhar.

 

 

Bicicleta

 

A vida é uma bicicleta

Das de dez velocidades.

Ninguém vantagem completa

Tira de oportunidades

Tantas com que o dia enceta,

Tanto excedem as idades

Da vida, mesmo repleta.

 

 

Razão

 

Ninguém logra compreender

Inteiramente a razão

Porque há-de sentir quenquer

De repente o empurrão

Que, ao invés doutro qualquer,

O trepa pela subida

Dum dado rumo de vida.

 

 

Escolhas

 

Todas as nossas escolhas,

Mesmo da inércia os motivos,

Fecham portas a que colhas

Futuros alternativos.

 

Cada passo que nós damos

Do destino no cancelo

É a morte dos demais ramos

De mundos em paralelo.

 

 

Casa

 

Ninguém vai sentir-se em casa,

Qualquer que seja o lugar,

Porque o lar que nos abrasa

Em lugar algum é o lar:

Sempre o meu lar adorado

É de espírito um estado.

 

Sentir-me em casa deveras

É sentir-me ao colo, imbele,

Não das cósmicas esferas,

Mas dentro da minha pele.

Toda a vida tenho andado

Buscando-o em lugar errado.

 

 

Questionar

 

Questionar não é doença.

Obedecer cegamente

Sem questionar a sentença

É que é doença presente

 

E doença contagiosa:

Quanta morte se lhe agrega,

História além, tenebrosa,

Como vírus que se pega!

 

 

Cair

 

Cair em desgraça aquele

Que trepou ao pedestal

Mais alto é o que logo impele

As multidões que assinale:

 

De admirar o lado obscuro

É uma inveja, combinada

Com desilusão, que apuro

Se vulgar fica, à chegada,

 

O ídolo entronizado

Do vulgo desmiolado.

 

 

Necessidades

 

Necessidades de sábio

Poucas são e satisfeitas

Podem sê-lo facilmente.

Mas aspirações que o lábio

Diz que implacáveis ajeitas

- Poder e riqueza em mente –

 

Estas levam as pessoas

A nunca alcançar a paz,

São auto-reprodutivas:

Quanto mais temos, mais broas

Lhes tendemos nós atrás,

Ficam-nos as mãos cativas.

 

E após vai o coração:

- Logo nos vão ter na mão.

 

 

Mudança

 

Um processo de mudança

É libertar energia

Gerando transformação.

É o que a morte nos alcança:

É uma energética via

Que a cada vem pôr à mão,

No derradeiro momento,

Dele o novo nascimento.

 

 

Invisível

 

A invisível maravilha!

O visível é uma imagem

Longínqua que me espartilha

Do invisível a focagem

Que aqui sempre me rodeia

E aquele apenas ameia.

 

 

Solidão

 

Sem a solidão o amor

Nunca permanece muito:

Requer de repouso um ror

Para correr o circuito

De viajar pelos céus

Tirando ao mistério os véus.

 

 

Complemento

 

Solidão não é ausência

De amor mas o complemento.

Da companhia um pendor,

É meu aquele momento

 

Em que o imo a liberdade

Tem de conversar comigo,

Decidir o que persuade

Na vida por onde sigo.

 

 

Condição

 

Amor: condição divina.

Solidão: humana sina.

 

Ambos convivem, contudo,

Sem conflitos, na medida

Em que o milagre sortudo

Entendo que é sempre a vida.

 

 

Natureza

 

A natureza diz: muda!

E os que não temem a sorte

Entendem que o que nos gruda

Terá sempre este recorte.

 

Preciso é seguir em frente,

Apesar do medo insano,

Da dúvida em toda a gente,

Das ameaças e do engano.

 

Ao rasgar-me a pele, o grito

Em mim é voz do Infinito.

 

 

Queixar-nos

 

Não fechamos nossos olhos

Ao Universo. O que apuro

É queixar-nos dos abrolhos:

“Escuro, está muito escuro.”

 

Mantemos olhos abertos

Sabendo que aquela luz

Nos pode levar, incertos,

Ao que, impensado, seduz:

 

Algo é, seja lá o que for,

Que fará parte do amor.

 

 

Sozinho

 

Se sozinho estou na cama,

Achego-me da janela,

Do céu olho a infinda trama

E a certeza o peito sela:

 

Nada me rouba o que gira

Dentro a me acalmar a sanha,

- A solidão é mentira,

Todo o Cosmos me acompanha.

 

 

Sucesso

 

O que apenas procurar

O sucesso raramente

O há-de na vida encontrar.

Não é um fim a ter em mente,

É deveras, por essência,

Uma mera consequência.

 

 

Força

 

A força do amor reside

Dele nas convoluções:

Porque muda no que envide

O preservo de senões,

Não de estável o manter

Sem desafios quaisquer.

 

 

Milagres

 

Os milagres são assim:

Rasgam véus e mudam tudo

Mas não deixam ver, no fim,

Por trás dos véus de cetim,

Aquilo com que me iludo

E a que de vez eu me grudo.

 

 

Enfrentar

 

Todos de enfrentar teremos

Muito adversário na vida

E o mais difícil que vemos

De derrotar, em seguida,

É o que, vão, em vão tememos.

 

Todos teremos rivais

No que quer que nós façamos

E os perigosos demais

São quantos acreditamos

Serem amigos leais.

 

 

Armas

 

Das armas mais destrutiva

Do que a lança ou o canhão

(Que o corpo em ferida viva

E a muralha derruirão)

 

- É a palavra que é capaz

De arruinar uma vida

E nem sangue deixa atrás

Nem cicatriza a ferida.

 

 

Sorte

 

A sorte não é injusta com ninguém.

Todos a liberdade para amar

Temos, ou detestar, se não convém

Aquilo que faremos por obrar.

 

Se amarmos, encontramos, ao agir,

Mesmo no quotidiano, uma alegria

Idêntica à daqueles que partir

Rumando ao sonho foram algum dia.

 

 

Manifesta

 

Manifesta o trabalho todo o amor

A unir humanos seres sem valor.

 

Por ele constatamos que não somos

Capazes de viver, nem nunca fomos,

 

Sem o outro e que o outro, simplesmente,

Precisará de nós para ser gente.

 

 

Generoso

 

Ser generoso, para a maioria,

Consiste em dar, mas receber é igual

Acto de amor, já que permitiria

Que outrem alcance este feliz final:

Aquilo é quanto, sem que a tal apele,

O deixará feliz também a ele.

 

 

Água

 

Como água será o amor

Que em nuvem se transmudou:

Aos céus elevada, o voo

Ao longe ver vai propor

Consciente de que um dia

Terá de voltar à terra.

O amor é a nuvem que avia

A muda em chuva e aterra

 

Atraída pela brisa

E o campo então fertiliza.

 

 

Contradições

 

São sempre as contradições

Que fazem o amor crescer.

Os conflitos, os senões

O amor levam a viver,

 

De passo embora trocado,

Aqui sempre ao nosso lado,

 

Se um degrau acima o liga

Ao que ele era antes da briga.

 

 

Pergunta

 

A pergunta do sentido

Muitos aceitam fazer.

Não lhe sabem responder?

Vão ler o que outrem há lido,

Que enfrentou o desafio

E, de repente, eis o fio:

 

Encontram uma resposta

Que arvoram logo em correcta.

Tornam-se escravos da meta,

Agrilhoados na aposta.

Criam leis, obrigam todos

A acolher seus mil e um modos.

 

Erguem templos a apontá-los

E tribunais que condenem

Quantos outro rumo acenem,

Pois não suportam abalos

Que venham pôr em disputa

A tal verdade absoluta.

 

 

Pobre

 

Pobre do que disser: “ eu não sou belo,

Que o amor não bateu à minha porta.”

O amor bateu. Contudo, em paralelo,

Ninguém abriu, parece a casa morta.

 

Ninguém estava ali já preparado

Para o vir receber apaixonado.

 

Um amor geraria ali, fecundo.

Perdeu-se uma aventura doutro mundo.

 

 

Imperfeito

 

O que parece imperfeito

É o que nos assombra, atrai.

Os cedros olho a direito,

Não penso que o galho vai

 

Ter todo a mesma medida.

Ao invés, penso: ele é forte!

Vejo a serpente estendida

Sem pensar: tem no seu porte

 

De rastejar pelo chão

E eu vou de cabeça erguida.

Penso que é pequena, então,

Mas tem pele colorida

 

E um movimento elegante

Nos esses com que aprendeu

A caminhar adiante

- E tem mais poder do que eu!

 

 

Beleza

 

A beleza exterior

Apenas viabiliza

O que for nela interior.

É que esta se exterioriza

 

Pela luz que sai dos olhos

De cada qual frente ao mundo.

Pouco importam os escolhos,

Um mal vestido, no fundo,

 

Não obedece aos padrões

Do tido por elegante,

Nem sequer preocupações

Tem de impressionar adiante.

 

Os olhos, espelhos de alma,

Reflectem quanto ande oculto.

E mais espelham, com calma,

Aquele que em frente, inulto,

 

Ali os ande a admirar.

Se seu imo for escuro,

A fealdade há-de olhar

Que retraçar em seu muro.

 

Os olhos a cada qual

Devolverão o reflexo

Do próprio rosto, tal qual

Seja côncavo ou convexo.

 

 

Dificuldade

 

Dificuldade, o instrumento

De ajudar a definir

Quem sou a cada momento.

 

A religião, ao vir,

Ensina que a fé e a muda

É o único trilho a ir,

 

A cola que a Deus nos gruda.

A fé nos mostra, entretanto,

Que o dia que nos acuda

 

Não nos deixa a sós ao canto:

A transformação ajuda

Do mistério a amar o encanto.

 

 

Curva

 

Cada curva do caminho,

Mais e mais amedrontado,

Surpreendo-me sozinho

A andar de passo trocado:

À medida que me integre

Mais forte irei, mais alegre.

 

Alegria, a principal

Bênção em pleno deserto.

Se estou alegre, é sinal

De que vou no rumo certo.

O medo aos poucos se afasta,

Ficou-lhe a importância gasta.

 

 

Reproduzes

 

Perguntei à flor do campo:

“Tu só reproduzes flores,

És inútil se isto estampo?”

E ela respondeu: “as cores

 

São o que eu sou e sou bela

E a beleza em si apenas

É na vida a minha estrela.”

E ao rio de águas serenas:

 

“Tu na mesma direcção

Sempre corres. Não te sentes

Inútil do ramerrão?”

E diz-me ele: “tu me mentes

 

Se útil julgas que ser tento,

Já que tento ser um rio.”

Neste mundo não há invento

Que não teça o próprio fio.

 

Nem uma folha que cai,

Nem um brilho de cabelo,

Nem o insecto que se vai

Morto em cima do escabelo.

 

Seja o que for ou quenquer,

Tudo tem razão de ser.

 

Não é pela utilidade

Que se pauta a realidade.

 

 

Abençoado

 

Abençoado o que diz:

“Eu nunca tenho coragem.”

Compreendeu de raiz

Que a culpa, nesta viagem

 

Não é doutrem. E mais cedo

Ou mais tarde encontrará

A fé requerida ao credo

Com a qual enfrentará,

 

Em gestos breves e sérios,

A solidão e os mistérios.

 

 

Derrotado

 

Só o derrotado conhece

Deveras o que é o amor.

No reino do amor se tece

Na prima luta, em suor,

 

A derrota em que perdemos.

Quem nunca foi derrotado?

Aqueles que todos vemos:

- Os que jamais hão lutado.

 

 

Alguém

 

É preciso ver alguém

Amando por vezes algo

Para saber eu também

Amá-lo em degraus que galgo,

Tal se doutrem o carinho

É que me aponta o caminho.

 

 

Relação

 

O indivíduo pouco importa,

O que importa é a relação

Que a todos nos abre a porta

Do Infindo buscado em vão.

 

Vemos as coisas, não vemos

A cola que as mantém juntas

Num todo que sempre temos

No que assunto e no que assuntas.

 

 

Contra

 

Contra tudo e contra todos

É o nosso lema do herói.

- A vida, em todos os modos,

É só luta e sempre o foi?

 

Porque nunca o questionei,

Permaneço em vigilância,

Pronto a enfrentar (esta é a lei)

Qualquer gigante, com ânsia.

 

No trabalho como em casa,

Entre amigos, conhecidos...

- É o caminho que me arrasa,

Onde há só passos mentidos.

 

 

Interacção

 

Nossa interacção no mundo

É conversa, não monólogo:

Um observador, no prólogo,

Muda o que observa, do fundo,

Como um observado muda

O observador que se gruda.

 

 

Impulso

 

Nosso impulso natural

De com os mais nos fundirmos

Leva a querer ser igual

A eles, ao juntos irmos.

 

Nossos relacionamentos

A atomização do Eu

Distanciam por momentos

Rumo ao Todo além no céu.

 

 

Indutoras

 

As pessoas indutoras

De estados de alma serão

Ambulantes, sem demoras,

E os estados passarão

 

Aos que encontrarem diante,

Que os irão passar à frente

Ao primeiro viandante

Na interminável corrente.

 

 

Sintonizados

 

Somos tão sintonizados

Com a emocional paisagem

Que nos cerca pelos lados

Que um ambiente de imagem

 

Positiva ou negativa

Afecta ao corpo a função:

É mais forte ou mais esquiva

Pelo que ali tenha à mão.

 

 

Amigos

 

Aqueles de quem me cerco,

Com que contacto por norma,

Amigos que encontro e perco,

São os que, de qualquer forma,

Determinam o matiz

De quanto, ao fim, sou feliz.

 

 

Instinto

 

Nosso instinto natural

De uns aos outros nos ligarmos

Leva ao desejo de dar.

Muito mais que dominar,

O mais premente, afinal,

É de uns aos outros chegarmos.

E leva a que isto se aplique

Mesmo que nos prejudique.

 

 

Feitos

 

Fomos feitos para bem

Nos sentirmos praticando

O bem que melhor convém

Ao que parece ir brotando

Do instinto mais basilar:

O de aos outros nos ligar.

 

 

Desejo

 

Nosso desejo automático

De dar inaugura o rumo

De uniões, no mundo prático,

Procurar como ideal sumo.

 

Ser abnegado uma opção

Bem egoísta ao fim também

Há-de ser que tenho à mão,

Pois dar sabe muito bem.

 

 

Altruístas

 

Os altruístas cultivam

Amigos em grupos vários.

São capazes, onde vivam,

De o todo ver, dos contrários

E semelhantes além

Visando o que em comum têm.

 

 

Capazes

 

Os altruístas capazes

São de ver a sociedade

Como um integrado todo,

De ver além das tenazes

Da diferença que invade

A vida, roubando o bodo.

Etnia ou religião

Que importam num mundo são?

 

 

Desigual

 

Quanto mais desigual for

Qualquer colectividade,

Menos confiante o sabor:

Menos membros persuade.

 

Não sobrevive num mundo

Desigual a confiança:

A competição, se o inundo,

Mata a união que então já cansa.

 

 

Confiar

 

Confiar requer um todo,

Um nós maior do que nós.

Quando alguém, como um apodo,

Eu rotular de outro, a sós,

 

Reforço a separação.

Já não há necessidade

De jogar em união:

Cumprir regras quem persuade?

 

 

Fora

 

Quando olhamos para o mundo

Lá fora, nem todos vemos

O mesmo, porque, no fundo,

A cultura onde vivemos

Ensina-nos como olhar

E o que ver, ao perpassar.

 

Reconhecê-lo é a visão

Maior e mais abrangente

Começar a ter no vão

Que se abrir à minha frente.

Até que em mim todo o mundo

Encontre campo fecundo.

 

 

Histórias

 

As histórias que contamos

A nós próprios sobre a forma

Como o mundo tece os ramos

Governam em nós, por norma,

 

Aquilo que percebemos.

Após algum tempo, apenas

Veremos o que aprendemos

A ver dentro de tais cenas.

 

 

Todo

 

Principiar a ver o Todo

Vai além da indicação

Das diferenças do modo

Com que os homens comuns são:

O espaço vemos, fluídos,

Que a todos nos tem unidos.

 

 

Idêntico

 

A ideia de ligação

Procura constantemente

O idêntico que haja à mão.

Tal significa, imprudente,

 

Que a derradeira medida

Com que outrem avaliamos

Sejamos nós, em seguida,

E o Todo então rejeitamos.

 

 

Partilhado

 

Um sentido partilhado,

Horizonte ideal que assuntas,

Abre a porta, em todo o lado,

Para coexistirem juntas

Diferentes percepções:

Não há um real, há milhões.

 

 

Diálogo

 

O diálogo é um rio

A correr-nos em redor

E através, no desafio

De fermentarmos amor,

 

A ligação em semente

Reforçando em todo o lado,

Uma cultura coerente

De sentido partilhado,

 

Gerando então o horizonte

Para o qual seremos ponte.

 

 

Pendor

 

O pendor mais importante

Do diálogo é uma entrega

Ao impulso fundo, instante,

Da plenitude que cega:

Buscar algum berço, algum,

Do sentido que é comum.

 

 

Prontidão

 

A prontidão para dar,

Em nós incondicional,

Nosso impulso natural

Para vínculos criar,

 

Nos ajuda a dissolver

Fronteiras individuais,

Para além dos tremedais

Permitindo-nos correr,

 

Nossa individualidade

A saltar para os espaços

Entre nós, a dar abraços

Às portas da Infinidade.

 

 

Contágios

 

Um acto de dar recria

Contágios de doações,

Redes de altruísmo fia,

Aliando retribuições.

 

O acto de participante

Afecta uma interacção

Futura doutrem adiante,

Da rede ao longo em acção.

 

 

Resposta

 

A melhor resposta

Numa conjuntura

É escolher a aposta

Que melhor se apura

Para nosso apresto

Mais do grupo, ao resto.

 

 

Naturalmente

 

Naturalmente egoísta

É o ser humano – se afirma.

Mas o que hoje a prova alista

É o contrário: o que confirma

 

É que andamos programados

Para partilhar com todos,

Nos importarem os dados

Que mexem, de quaisquer modos,

 

Com os mais, mesmo com custos,

Como para sermos justos.

 

 

Acto

 

Por um gesto de bondade

Generosa a um amigo

Retribui ele o que agrade,

Após, aos que tem consigo,

Como estes a outros mais

E assim sem parar jamais.

 

Qualquer generosidade

Cria a cooperativa

Cascata de actos que invade

Das almas a mais esquiva.

Todo o bem jorra, festivo,

Mais que o mal no fojo esquivo.

 

 

Juntos

 

Ao fazermos algo em grupo,

A alegria que sentimos

Por juntos estarmos nisto,

Permite, quando me ocupo

Com os problemas que vimos,

Resistir a quanto alisto.

 

A união que faz a força

Também explica a magia

Quando em grupo laboramos

Pelo ideal por que se torça:

Largo uma individual via,

Sou comunhão entre os ramos.

 

 

Abrir-me

 

Ao abrir-me à natureza

Verdadeira que haja em mim,

Que uma derradeira preza

Plenitude em meu confim,

 

Abro a possibilidade

Da ressonância mais pura

Logo ali da humanidade:

A outrem me unir que cura

 

De abrir, em sentido algum,

O nosso mapa comum.

 

 

Básica

 

Uma básica pulsão

Para formar parceria,

Gerar cooperação,

Mesmo com dor algum dia,

 

E não para o egoísmo,

A sobrevivência crua,

- É o intrínseco truísmo

Biológico que actua

 

Na estrutura do ser vivo.

Todo e qualquer animal

Actua num longo arquivo

Em que o motor principal

 

É o menos favorecido

Ajudar, mantendo vivo,

No gratuito gesto havido,

O laço cooperativo.

 

 

Gera

 

Gera a natureza a vida

Apenas em relação.

Não reconhecê-lo olvida

Nossa angular concepção.

 

A imutável e distinta,

Nobre personalidade

São mil relações que pinta

Em seu lastro de verdade:

 

- Um nó de laços, no fundo,

Nossa ligação ao mundo.

 

 

Afectados

 

Da mesma forma que somos

Afectados pelos mais

De que em volta nós dispomos,

Também somos, como tais,

Vindos das redes às quais

Pertencemos, feitos tomos

Que só delas dão sinais.

 

As pessoas colectivas

Destas redes para nós

Transbordam, artérias vivas,

Definindo-nos após

Nos derradeiros cipós,

E determinam, furtivas,

A infelicidade atroz

 

Ou felicidade advinda,

O nosso comportamento,

Ou mesmo a saúde ainda

De que desfrutar ao vento.

São a alegria, o tormento

Que me chegam na bem-vinda

Maré de meu banho lento.

 

 

Contagiosa

 

A felicidade

É contagiosa

Mesmo que o não grade

Aquele que a goza.

 

De felicidade

Muito aglomerado,

Resulta, em verdade,

De contaminado

 

Ser naturalmente

Dos que são felizes,

Não que toda a gente

Busque iguais matizes.

 

Os que andam cercados

De felizes caras

Mais prováveis fados

Terão de horas claras.

 

A felicidade

É contagiosa,

Luz que tudo invade

Entre quem a goza.

 

 

Trama

 

Na trama social o aspecto

De aves de penas iguais

É semelhança que afecto:

Vínculo gera aos demais.

 

No vínculo social

De todo o tipo e tamanho,

- Entre os membros do casal,

Qualquer amigo que ganho,

 

Na informação, no conselho,

Na reunião a que me junto,

Um grupo de apoio velho

A que recorro e pergunto,

 

- Em todos tendo a escolher

Redes que contenham quem,

Na atitude que tiver,

Se me assemelhe também.

 

 

Emoção

 

Uma emoção, como vírus,

Não apenas se transmite

À gente em quaisquer retiros,

Num circuito inconsciente,

 

Ciclo infindo de contágio,

Como afecta fundamente

Qual dum negócio o presságio

E a negociação em frente.

 

Nunca ninguém objectivo

É, no fim, por tal motivo.

 

 

Opera

 

O mundo jamais opera

Por coisas individuais

Mas por ligações que espera

Que entre elas dêem sinais:

Entre as coisas é no espaço

Que as entrelaça em abraço.

 

O aspecto mais germinal

Da vida não é uma coisa

Isolada e seminal,

Seja a partícula a loisa,

Seja o ser vivo formado:

É a relação que hão criado,

 

- A inseparável fusão

Na irredutível união.

 

 

Derradeiro

 

O derradeiro objectivo

Dum encontro social

É criar união ao vivo

De nós com qualquer igual.

A imitação automática

De movimentos, da prática,

 

De figuras de linguagem

Como também de emoções

É desenhada triagem

Para fortes ligações.

Quer nós ou não o queiramos,

Sintonizados andamos

 

Com a emotiva paisagem

Que em nosso redor se estende.

Qualquer pensamento, imagem,

Qualquer gesto se desprende

Não de nós inteiramente

Mas do campo de semente.

 

 

Ignoramos

 

À medida que ignoramos

Nosso impulso natural,

Contra a natureza obramos,

A plenitude total.

A cada passo adiante

Para alongar-me distante

 

Da união (direito inato),

Damos outro em direcção

À separação de facto,

À nossa alienação:

Afasto-me do melhor,

Mais vero de me propor.

 

Crio económicas crises

E mais políticas lutas,

Mais rupturas, mais deslizes,

Ecológicas disputas

De efeitos calamitosos,

Em vez de futuros gozos.

 

Cada vez mais altos muros

Erigimos entre nós.

E o demais mundo, em apuros,

Sem lograr erguer a voz...

- E o pior que não entendo

É que nem isto ando vendo.

 

 

Comum

 

Sempre que um grupo trabalha

Num objectivo comum,

O cérebro de quem calha

Opera como só um

No igual comprimento de onda,

- De nenhum é feita a monda,

 

A união fortalecendo

Dentro do grupo em questão.

Unir-se em grupos, crescendo,

É social coesão

Pela meta superior

Que tem sempre outro valor

 

Bem para além do dinheiro,

Do trabalho que se tem,

Do tamanho do celeiro

Que à propriedade convém.

Meta comum e alargada

É certa e predestinada

 

Proximidade instantânea

Em qualquer social ambiente,

Ofertando, coetânea,

A ferramenta excelente

De manter cooperação

No labor, bairro e nação.

 

 

Ínfimo

 

O verdadeiro poder

De deixar algum espaço

A uma individualidade,

Para se unir a quenquer

Enquanto grupo que abraço

Para atingir de verdade

 

Objectivos superiores,

Provém duma ressonância

Com efeito colectivo:

De ondas cerebrais valores

Se arrastam mútuos, com ânsia

De igualar cada ser vivo.

 

A eléctrica actividade

De cada membro do grupo

Principia a ressoar

Em onda comum que invade

A todos, tal se me ocupo

Dum coro inteiro a afinar.

 

Como um grupo de electrões

Que desatou a vibrar

Como de electrões montanha,

Ressoa o grupo em funções

Que efeitos multiplicar

Vão de cada qual que apanha.

 

 

Base

 

A base da relação,

Mudar dum eu” para o “nós”,

Não destrói, na interacção,

Do Direito nenhuns prós,

Nem nunca as capacidades,

As vitórias, liberdades,

 

Ou propriedades quaisquer

Que um indivíduo detenha.

Nem do dinheiro requer

Abrir mão que quenquer ganha,

Nem dos bens que do suor

Foram o fruto melhor.

 

Da economia o sistema

Ou democrático vime

Não quer que rejeite ou tema,

Antes que tudo sublime:

Aquilo de que abro mão

É a luta, posta em questão,

 

Pela individual vitória

À custa doutro qualquer.

A mente que for finória

Lesar sempre alguém requer,

É sempre anti-democrática

E contra todos, na prática.

 

Os individuais direitos

São sempre pisoteados

Nalguém, naqueles trejeitos

De cenários guerreados

De frutos sabendo a verdes:

- Sempre que eu ganho, tu perdes.

 

 

Recriar-me

 

Recriar-me noutrem busco

Tendo por base o desejo

De certo me afirmar, brusco.

Desperdiço o meu ensejo,

A biológica experiência

Contrario, por essência.

 

Traio a minha companhia,

Solitária em tais momentos,

E, automático, na via

Invado outrem e os eventos

Derivam de tal maneira

Que escravo outrem finda à beira.

 

Somos todos afectados

Por actos e pensamentos

Doutrem, por todos os lados,

E eles por nossos intentos,

Mesmo que sentir nenhum

Haja entre nós em comum.

 

Para o melhor e o pior,

Quer nós queiramos, quer não,

Fundimo-nos ao teor

Daqueles que, em nosso chão,

E qualquer que seja o impacto,

Connosco andam em contacto.

 

 

Escuridão

 

Perante Deus, Moisés não

Olhou a luz que o inunda

Dentro dele, mais que à beira.

Em Deus há uma escuridão

Tão profunda, tão profunda

Que ofusca quanto encegueira.

 

 

Amado

 

És amado e acarinhado,

És amor, base de tudo

No quotidiano fado,

Em tudo aquilo a que acudo.

 

Amor de cônjuge e filhos,

Até mesmo de animais,

Que prende, nos seus cadilhos,

Do real quaisquer sinais.

 

Na forma mais poderosa

Não é egoísta nem ciumento,

É incondicional, que entrosa

Nele o cósmico fermento.

 

Realidade do real,

A verdade das verdades,

Vive e respira, afinal,

No centro de quanto invades.

 

A compreensão exacta

De quem somos, do que somos

Não se alcança ou desempata

Se isto a tudo não pospomos,

 

Se o não abraçar, enfim,

Em tudo o que agir por mim.

 

 

Obstáculo

 

Quem vem do mundo da morte

Tem o obstáculo maior

De não ter língua tão forte

Que lhe exprima o vero amor

Que viveu enquanto esteve

Nesse estado, longo ou breve.

 

Temos sempre a faculdade

De retornarmos a casa,

A ligação que nos há-de

Dar a luz que nos abrasa.

Esquecemo-nos, porém,

De que tal temos também

 

Porque na física vida

A nossa mente bloqueia

O contexto sem medida,

Cósmico, que infindo ameia,

Tal bloqueia a luz do sol

Das estrelas todo o rol.

 

Nossa visão do Universo

Bem limitada seria

Se não víramos, disperso,

O céu nocturno algum dia.

Só consigo ver a deixa

Que o filtro da mente deixa.

 

O encéfalo é uma barreira

A conhecer a vivência

Mais alta que se me abeira.

Encruzilhada da essência,

Temos de recuperar

O que nos ande a ocultar.

 

 

Parte

 

Sendo parte do divino,

Então nada, nada mesmo,

Me pode retirar isto.

A suspeita de o destino

Me poder, falso e a esmo,

Separar do Deus que existo

 

É a raiz de toda a forma

De ansiedade no Universo

E a cura então é a certeza

De que nada que me enforma

Poderá, por mais adverso,

De Deus me afastar na empresa.

 

Este reconhecimento

Elimina o terror fundo

Que a escuridão me causar.

Permite ver o fermento,

Do Cosmos parte no mundo,

Que nos anda a levedar.

 

 

Provas

 

Os que afirmam que não há

Provas da mente alargada

Apesar dos que, cá e lá,

Testemunham tal jornada

 

São deliberadamente

Ignorantes: acreditam

Que a verdade têm presente

Sem ver os factos que evitam.

 

 

Dores

 

As nossas dificuldades,

Dores no mundo presente,

Não ferem profundidades,

O maior, o eternal ente

 

Que nós somos de raiz.

O riso como a ironia

São lembranças da matriz

De que não sou, nenhum dia,

 

Prisioneiro neste mundo

Mas viajante do fundo.

 

 

Desconhecido

 

Vou para o desconhecido

Mas com fé, com confiança

Absolutas, no sentido

De que Quem cuida me alcança,

Quer companheiros do além,

Quer da Luz o amor que tem.

 

Como nos foi prometido,

Para onde quer que eu vá

O Céu há-de vir comigo

Em todo o trilho de cá:

- Nunca mais estarei só,

Nem mesmo se feito em pó.

 

 

Outra

 

Nenhum órfão órfão é,

Que temos outra família,

Seres que olham-nos ao pé,

Velam por nós em vigília,

Que ignoramos por momentos

Mas que, se os vemos, atentos,

 

Deles à presença abertos,

Andam sempre disponíveis,

Para ajudar-nos despertos

Nos dias imprevisíveis

De nossa vida na Terra,

Seja o que for que me aterra.

 

Não há quem não seja amado,

Todos o somos bem fundo

Por um Criador que, ao lado,

Nos conhece o imo profundo

E acarinha muito além

Da compreensão que se tem.

 

 

Partículas

 

As partículas de mal

Pelo Universo espalhadas

Hão-de somar, no total,

Um grão de areia, nas dadas

Do planeta praias mil,

Do céu no abraço de anil,

 

Comparadas com bondade,

Esperança ou abundância

Ou amor que tudo invade,

De incondicional instância,

De que repleto o Universo

Se encontra, por mais disperso.

 

A vivência de que é feita

A vertente alternativa

É um amor que se rejeita,

Aceitação que se esquiva.

A abertura descurada

Então torna-a deslocada.

 

O livre arbítrio tem preço:

De perder ou me afastar

Do amor sem fim nem começo

E da aceitação a par.

Somos livres mas rodeados

De amor por todos os lados.

 

 

Demasiado

 

Se eu soubera demasiado

Da vida espiritual

Neste momento, tal dado

Minha vida terrenal

Mais difícil tornaria

Do que é já, no dia-a-dia.

 

Demasiada consciência

Da grandeza, imensidão

Pode-me impedir, na essência,

De lavrar na Terra o chão.

É que tudo é intencional

No Universo sideral.

 

Tomar a decisão certa

Perante o mal, a injustiça

Que aqui vão de mão aberta,

Do livre arbítrio na liça,

Era bem pouco importante

Se estou do esplendor diante.

 

 

Cerebral

 

Pensamento verdadeiro

Não é cerebral domínio.

Fomos treinados, no apeiro,

A combinar com fascínio

O cérebro ao que pensamos

E a quem somos onde estamos.

 

Perdeu-se a capacidade

De perceber que nós somos,

Em toda e qualquer idade,

Bem mais que de árvores pomos,

Mais que corpos materiais,

Que de encéfalos sinais.

 

Pensamento verdadeiro

É pré-físico alimento,

Pensamento por inteiro

Por detrás do pensamento,

Responsável das escolhas

Que fará que tu acolhas.

 

É pensar que não depende

Da dedução linear,

Raio que instantâneo fende,

Tudo liga, a nivelar:

Além do tempo e do espaço,

Tudo abraça num abraço.

 

Perante esta inteligência

Liberta em meu interior,

O pensamento é indigência,

Muito lento e sem fulgor.

Aquela é que é descoberta,

Música de nota certa.

 

É razão subliminar,

Perenemente presente

Quando dela precisar,

Embora frequentemente

O poder de lhe aceder

Perca e o de nela crer.

 

 

Beleza

 

Mora a beleza nos olhos

De quem vir e vou pospor

Que o que é mais libertador

É perceber, sem antolhos,

Que és tu que és o observador.

 

 

Isolado

 

Ficar em casa não posso,

De toda a gente isolado,

Durante o tempo em que fosso

No buraco negregado.

Não fui criado a caminho

Para o palmilhar sozinho.

 

 

Águas

 

Ela é sempre as minhas águas

E eu dela sou o moinho:

Apaga o lume das fráguas,

Roda a mó dentro em meu ninho.

 

Água fiel, inesgotável,

Dócil, a velar calada,

Já lá estava, insofismável,

Do moinho antes da chegada.

 

Ao princípio, com vigor,

Ao princípio era o amor.

 

 

Sonâmbulos

 

De sonâmbulos povoado,

Vivemos aqui num mundo

Onde vendido e comprado

É tudo, com ar jucundo.

Tal se tudo, precioso,

Menos o tempo, dê gozo.

 

Esperam o fim da tarde,

O sábado a tomar forma,

As férias, com muito alarde,

E toda a vida a reforma...

- Mundo onde espera quenquer,

Espera, em vez de viver!

 

 

Sofrimento

 

Todo o nosso sofrimento

Arranca da solidão.

Não logro, em nenhum momento,

Juntar-me a ti que amo em vão.

Esta mágoa, esta impotência

É que a Deus gritam de ausência.

 

 

Grau

 

Sabedoria e bondade,

Se num grau bem elevado,

Sabem que amor de verdade

Tão puro é, completo e grado

Que pleno permanecer

Vai, haja lá o que houver.

 

 

Ilusão

 

A ilusão a realidade

Realça, abisma, inseparável.

E amor, na totalidade,

É uma ilusão adorável,

 

Homem embora e mulher

Precisem bem mais de amor

Que doutra coisa qualquer

Para à vida dar valor.

 

 

Belo

 

O belo fala de Deus:

Na beleza natural

Encontramos termos seus

Do Cosmos universal;

 

Em arte nós exprimimos

Uma centelha divina

Que, elevando-nos aos cimos,

Em nós arde como sina.

 

 

Ciência

 

A ciência não hesita

Em recorrer à tortura,

À superstição maldita,

Ao defender, com usura,

Que é seu direito, na estrada,

Ali sempre andar errada:

 

A ciência constituída

Mata a nova a que deu vida.

 

 

Segurança

 

É viável segurança

Contra riscos soerguer,

Mas, se a morte nos alcança,

Muralha não há qualquer.

Ante a morte tudo falha,

Cidade sou sem muralha.

 

 

Vive

 

Vive a morte em cada um.

A contagem decrescente

Principia em toda a gente

Sem fazer sinal algum

 

Desde o dia em que nascemos

E faz dela a brusca entrada

Sempre em hora inesperada

No instante em que perecemos.

 

 

Disposição

 

Há quem viva a vida inteira

Cantando hinos ao prazer

Do que é má disposição.

O que incómodo encegueira

Não é uma coroa ter

De espinhos no coração,

 

É que adore tais espinhos

Que embriagam mais que os vinhos.

 

E que outra coisa não queira

Dele toda a vida à beira.

 

 

Descoberta

 

Há uma ideia simples, clara,

Por detrás do complicado.

A dificuldade rara

Não é do mistério dado:

O aguilhão que nos acerta

É tentar a descoberta.

 

 

Pensar

 

O que é pior é pensar:

Se pensas em quanto é bom,

Ficas com saudade, a par;

Se é no mal, amargurado

Acabas ficando então...

- Bênção maldita, este fado!

 

 

Influir

 

Pensamento e decisão

Podem num acto influir,

Mas nunca decorre a acção

Só do que lhe eu decidir:

Tem independente fonte

De surpresas no horizonte.

 

 

Cegueira

 

A cegueira é o feliz fado

De quem assalta a paixão.

Deixa de ver, alumbrado,

A quem ama, em frente e à mão,

Fita, no abalado sismo,

Dele próprio o fundo abismo.

 

 

Mensageiros

 

Há mensageiros de Deus

Em todo o lado. Aparecem,

Com jeito de corifeus,

Em trejeitos que entretecem

Nosso jeito de lograr

Consegui-los aceitar.

 

 

Mais

 

Quanto mais amamos,

Mais amor a dar.

Sem servos nem amos,

O amor singular

É de Deus assim

Por nós e por mim.

 

 

Verdade

 

A verdade a perseguir,

Longe embora, é sempre à mão,

Mas requer fogo nas fráguas.

A verdade finda a vir

À superfície se não

Enlamearmos as águas.

 

 

Difícil

 

É muito difícil ver

O que poderia ser,

 

Em que é que tenho esperança,

Tal é a dor que nos alcança.

 

Tão violenta é a bordoada

Que ficamos sem ver nada.

 

Se espero o suficiente,

Com suficiente vontade,

Com força bastante em mente,

Tornar-se-á realidade.

 

Não é sempre, mas às vezes.

Acaso esperança é isso:

A diferença em reveses

À qual não mata um enguiço.

 

 

Espera-te

 

Apesar de nunca ausente,

Espera-te na floresta

Fora da muralha assente

Em teu coração que a apresta:

Deus não força a relação,

Respeita a tua tenção.

 

 

Jamais

 

O amor jamais te condena

Por te sentires perdido

Mas nunca te deixa em cena

Sozinho, no ar esvaído,

Embora não force nunca

Teu refúgio na espelunca.

 

 

Liguem

 

Temos vindo a procurar

As palavras que nos liguem

Aquilo de que ando a par

Aos anseios que em mim briguem.

E o mais que nós conseguimos

São vislumbres de que rimos.

 

 

Túlipa

 

A túlipa aveludada,

De rendilhado rebordo,

Em mil cores variada,

Oiro e púrpura de acordo,

Mais as ranhuras dum verde

Que no amarelo se perde...

 

Mas o bolbo que gerou

Esta flor maravilhosa

Madeira velha imitou,

Mero torrão de má prosa,

Um lixo de deitar fora

Se conhecido não fora.

 

Este bolbo, esta raiz

É a vida tal como a fiz.

 

A túlipa ao sol erguida

É a vida depois da vida.

 

 

Relações

 

Sem as relações humanas

O mundo não faz sentido.

Umas são com que te enganas,

Complicam-se outras de olvido,

 

São difíceis, duram pouco

E fáceis nunca as garantes...

- Pode isto parecer louco,

Mas todas são importantes.

 

 

Lugar

 

Consultam para um lugar

E, entretanto, que é que ocorre?

Num parente um vai votar

Porque é um parente que forre,

 

Vota o amigo no amigo

Porque amigo de cuidado,

Ao recomendado abrigo

Votam, que é recomendado...

 

E os mais dignos, beneméritos

Que não têm amizades

Nem parentes, mas só méritos

Jamais ao lugar persuades.

 

 

Desgraça

 

Das desgraças a desgraça

É que nós nos iludamos,

Sempre de nós ignorados:

Nós vemos que tudo passa

Mas para nós que passamos

Temos os olhos fechados.

 

 

Onde

 

Se perguntam onde estás

E em ti mudar vincular-te,

Que é que tu responderás?

- Estou em nenhuma parte,

Que parte alguma congraça

Aquilo que sempre passa.

 

 

Bem

 

Isto de ser bem-nascido

É sempre mera vaidade:

Finda a vida, ei-lo sumido.

Não nos pende da vontade.

 

Mas ser bem ressuscitado

Para a eternidade dura

E é no alvedrio fundado:

Se a acção que debita é pura.

 

Filho dos pais ao nascer,

Ao ressuscitar, das obras

Sempre findarei por ser,

Do Infinito preso às dobras.

 

 

Não

 

A omissão sempre é pecado

Que se fará não fazendo.

De obra má jamais é um dado,

Até boa pode ir sendo,

Mas se a que não foi houvera

Quanto melhor então era!.

 

 

Cega

 

A vontade, sendo cega,

Vê mais que o entendimento

Que um olho de lince emprega

A discernir o momento.

 

E porque é que isto se dá,

Contra o que era de entender?

- O entendimento acha o que há,

A vontade acha o que quer.

 

 

Fora

 

Porque todos se encegueiram

Deles próprios no juízo

Todos bênção enfileiram

Da espécie fora onde os viso:

Serão pombas ou cordeiros

E jamais homens inteiros.

 

 

Acrescer

 

Acrescer o próprio dom

É crescimento em presença.

Fora dele perde o tom,

Não é acrescer, é acrescência.

Se o crescimento é beleza,

A acrescência é feia e lesa.

 

 

Cegueira

 

A cegueira do juízo

Do amor-próprio é maior

Que a dos olhos com que viso

Qualquer verdade a propor.

 

A dos olhos faz não ver

As coisas como serão,

A do amor-próprio difere,

Vê diverso o que aqui são.

 

Vendo um mundo diferente,

Maior cegueira é a da gente.

 

 

Arrependimento

 

O arrependimento apenas

Nos liberta da cegueira.

Véu dos olhos ante as cenas

Nos tira e do espelho abeira

Onde nos vemos no acerto

Do encoberto a descoberto.

 

 

Fora

 

Trazendo os olhos por fora

E a nós próprios cá por dentro,

De vanglória é nossa hora,

Desvanecidos do centro,

Apenas por, nestes termos,

Afinal, nunca nos vermos.

 

 

Insensível

 

É o amor um sentimento

Que torna ao mais insensível,

Como a morte, num momento,

Torna o morto inatingível.

O amor a diversa trama

Torna insensível quem ama.

 

 

Serve

 

Serve o pastor às ovelhas

E não elas ao pastor,

Mas porque ir por estas quelhas

Não serve ao devorador

Lobo, logo este lhe grava:

- Do pastor a ovelha é escrava!

 

 

Bela

 

Não é bela uma mulher

A quem gabe perna ou braço

Mas aquela a que couber,

Pelo conjunto que abraço,

A beleza que lhe excede

O traço onde não tem sede.

 

 

Espelho

 

Qualquer arte tenta o belo

Como espelho do real,

Imita-o, com ar singelo,

Revelando o bem do mal.

 

O espelho não reproduz,

Revela o que se não viu,

Expondo de vez à luz

O que ninguém conseguiu.

 

O mistério é que revela

O real, ao fim, na tela.

 

 

Imita

 

Arte imita realidade,

Dá-lhe significação,

Revelação da verdade

Que nunca temos à mão.

E, quanto melhor imita,

Melhor arte ali palpita.

 

Arte é, pois, o simulacro,

O jogo de faz-de-conta:

Tenho diante o gesto sacro

Do qual nem terei a ponta.

É o cultivo da ilusão,

Embora saiba que não.

 

 

Nenhuma

 

Terás dinheiro, posição, amigos

E as mulheres mais belas a teus pés

Mas nenhuma te espera em lar de abrigos?

Os anos passam, passarão de vez,

E o vazio que leio nos teus olhos

Mais e mais fundo te encherá de abrolhos.

 

 

Rufar

 

Não há rufar de tambores

Nem trombetas a vibrar

Quando as decisões maiores

Da vida alguém as tomar.

 

Às vezes nem conta damos

De que afinal as tomamos.

 

Nem por tal, porém, então

Deixam de ser o que são.

 

 

Amigo

 

Um amigo é a ligação

À vida: com o passado

Um laço a atar a união,

Com o futuro o traçado

 

Dum caminho sem engano,

Chave para a sanidade

Num mundo que corre insano

Quase na totalidade.

 

 

Cozinha

 

A cozinha representa

A família e a harmonia:

Em tempo de crise, assenta;

Na festa, então alumia.

Todos a tendência apresa

De reunir-se ali à mesa.

 

Divisão acolhedora,

É confortável, segura.

É ali onde o fogão mora,

Onde café, chá se apura,

Onde as bebidas guardadas

São às gestas celebradas.

 

Mais que o fogo do chamiço,

A cozinha é compromisso.

 

 

Escapa

 

Sempre a realidade escapa

Para além da descrição,

Mesmo a duma vulgar capa

Ao ombro de algum ganhão.

E o tempo, ao fim, guedelhudo,

O tempo devora tudo.

 

 

Seu

 

Não é para si nem seu

O que seu e para si

Qualquer um, afinal, creu.

É para outrem aqui

Tudo o que puser a abrigo,

Mesmo para o inimigo.

 

Que é que importa entesourar

Se esta é a lei deste lugar?

 

 

Adulador

 

Adulador é quem mente

Com a verdade que havia

E afronta assim toda a gente

Dele com a cortesia.

 

Mais afronta uma mesura

De adulador ao pascigo

Que a bofetada que atura

O meu rosto ao inimigo.

 

 

Milagre

 

Um milagre devagar

É obra da natureza.

Da natureza obra a par

De repente a se instalar

É milagre com certeza.

 

 

Desce

 

Quem é que desce um degrau

Por amor doutro qualquer?

Se Deus salta o infindo vau

Para te vir socorrer,

Derrubar-te-ão a seguir

Os homens, para subir.

 

 

Fruta

 

Os homens no mundo são

Como a fruta, colhe-os Deus

Quando maduros estão.

 

A fruta cai-me dos céus

Se, madura, a não colher,

Podre logo em torrões meus.

 

Felicidade em viver

Muito nunca pode estar,

Antes em viver quenquer

 

Bem, em meio a seu pomar.

Que importa sobreviver

Se for mal amadurar?

 

 

Ingrata

 

Nossa ingrata condição

É sentir mais o que perde,

Mal deixa de o ter à mão,

Do que estima quando o frui.

Perde então muito do que herde

Pelo que nunca institui.

 

 

Poder

 

No poder reina a riqueza

Que todos procurarão,

- Deus não mora em tal empresa.

 

As honras, por mais fictícias,

Idolatra-as o poder,

- Deus só lê nelas malícias.

 

Em três cantos vai poder

Deus encontrar qualquer um:

Nalgum templo onde estiver,

 

Do rei em despacho algum,

De justiça em tribunal.

Como não anda em nenhum?

 

No tribunal é legal

Justiça virar cobiça,

Toda a lei feita venal.

 

A majestade se enliça,

Afinal, em tirania.

E a religião se atiça

 

Com fé, não, hipocrisia.

Não se encontra Deus na liça,

- É do íntimo a estrela-guia.

 

 

Dorme

 

Só quem dorme é que madruga

Mas às estrelas do céu

Que nunca dormem na fuga

Quem a música lhes deu

Que a qualquer destas estrelas

Ninguém logra adormecê-las?

 

 

Dinheiro

 

Quantas vezes sem dinheiro

É que tudo me sobeja

E, se o logro por inteiro,

É que logo pobre seja:

- É que aqui tudo me falta

Com os preços sempre em alta!

 

 

Rios

 

Os rios de oiro e de prata

Trazem o luxo, a vaidade,

A ostentação que mata.

Delícia que o rico invade,

 

Os palácios e o prazer,

Mais mil superfluidades...

- E o pobre de fora a ver,

Da vida por trás das grades!

 

 

Volta

 

Quando volta carregado

O barco de prata e oiro,

Não é o povo aliviado,

Nenhum remédio lhe é dado,

- Tudo ao rico incha o tesoiro.

 

É para quem tem o mando

Que desata a cogitar

Onde, com quem, como e quando

Se põe tal desperdiçando

Num invento de matar.

 

 

Pacífico

 

Para um governo pacífico

Não basta a sabedoria,

A riqueza ou o poder,

Se lhe falta o específico

Dom da igualdade que avia,

Dom que mais preza quenquer.

É com todos na igualdade

Que a paz cresce na cidade.

 

 

Desigualdade

 

A igualdade traz o amor,

O amor concilia a paz.

A desigualdade impor

A inveja vai suspicaz

E da primeva concórdia

Ao fim só colho discórdia.

 

 

Equilíbrio

 

Ao inclinar-se a uma parte

O equilíbrio da igualdade

É ferido então destarte.

E com a desigualdade

 

Vai-se perder a união,

A paz, desfeita a concórdia,

Perdemos tudo o que é são,

Tudo enoja em vil mixórdia.

 

 

Sofrido

 

Se é mal sofrido entre irmãos

Ser bem visto ou ser mal visto,

Como paciência, sãos,

Terão estranhos que avisto

(Como é de avisado teor)

Em desigualdade-mor?

 

 

Triste

 

Tristeza que corre em olhos

Não será nunca a mais triste,

A que afogar os abrolhos

No coração lhe preexiste

 

E as que em si este afogarem

Serão as mais penetrantes.

Resplendores que brilharem

Em tais cumes cintilantes

 

São raios da tempestade

Que lá se oculta no centro,

Que os devoram sem piedade,

Que os devoram bem por dentro.

 

 

Abatido

 

É o espírito abatido

O que nos resseca os ossos,

A tristeza que hei vivido

Apressa à morte os destroços.

Toda a chaga vinda à mão

É de triste o coração.

 

 

Demais

 

A tristeza que é demais

É uma autora de pecado:

Da mente apaga os sinais

E a carência de avisado

Conselho leva a que vigem

Mil abismos na vertigem.

 

 

Sepulcro

 

No sepulcro aonde vou

O corpo enterrar-se-á

E o que ali se sepultou

É, neste mundo de cá,

Tudo o que causar tristeza:

- Nada levo, que beleza!

 

 

Abundância

 

Como a abundância e a gula

Do rico é dele o veneno,

A abstinência onde pulula

Do pobre o bando sereno

Vai ser-lhe, a cada momento,

O melhor medicamento.

 

Chega o rico à sepultura

Em primeiro e mais depressa.

O pobre depois figura,

Devagar, tarde a atravessa.

Iguais termos nos finais

E os passos tão desiguais!

 

 

Perguntei

 

Quando ao corpo perguntei

Para onde ia me assegura:

- Tu bem sabes e eu bem sei

Que vou para a sepultura.

 

Se fizera igual pergunta

Às almas, que me ocorreu?

A resposta inteira assunta

Que irão votadas ao céu.

 

 

Ambicioso

 

Olhei para o ambicioso

Sobre os demais levantado.

Se além vou, é misterioso:

Não há mais ambicioso

Nem canto onde se há plantado!

 

O lugar e o que está nele,

Mutuamente dependentes,

Se um falta o outro repele,

Não tem parceiro a que apele,

Dois nadas são enquanto entes.

 

O lugar abandonado

Foi o procurado dantes,

Agora em nada encontrado,

E não foi transfigurado,

Já que é o nada dos instantes.

 

No mundo não há lugares

Pretendidos nem deixados:

Os desvelos singulares

Com que acaso os vistoriares

São de mentira traslados.

 

Não há lugar e o que houver

É o que sempre era o melhor,

Que a melhoria a fazer

Não é fora a que ocorrer,

É a que dentro é de propor.

 

Por baixo que o lugar seja,

Se bom fores, será bom.

Se melhor é o que se almeja,

Só se melhoras viceja,

A música é a do teu tom.

 

A melhoria ao lugar

E não o lugar ao homem,

É o homem quem a vai dar.

Se bom és, bom vai ficar;

Se mau, todos se consomem.

 

Querer mudar de lugar

E não transmudar-te em vida

Como, se a te a ti levar

Contigo andas sem parar

E nada mudas na lida?

 

Mesmo se ao cume trepais,

Nunca saireis do lugar

Se o mesmo sois onde estais.

Se vos diferenciais,

Noutro o mesmo irá mudar.

 

Há mesmo um melhor lugar,

Não é na terra, porém.

Os daqui cá irão ficar,

De vez nunca os vou lograr,

Lugar meu só o meu do Além.

 

 

Entra

 

Onde entra inveja, ambição

De lugar, não há virtude

Nem firme amizade à mão:

O maior amigo ilude

E vos há-de desviar,

A tomar-vos o lugar.

 

 

Fim

 

O início do itinerário

Que cada tomar na vida,

Como o meio temerário,

Enganam-nos de seguida.

O fim onde irá parar

É que há-de desenganar.

 

 

Rotas

 

De três rotas se embeleza

O reino, da gente enfeites:

Tanto quanto a da riqueza,

A da honra e a dos deleites.

Quem pergunta onde darão

Busca-o Deus e o acha então.

 

 

Governar

 

Quem há-de governar bem

Vai largar suas raízes.

Quem governar mal, porém,

Aos súbditos as matrizes

Arranca em todas as ruas

Para conservar as suas.

 

 

Memória

 

Na memória, revivido,

Tudo volta duas vezes,

Muito embora enfraquecido

Na dor ou prazer que prezes.

 

Nem dor nem prazer lembrados

Se assemelham, revolvidos,

À dor ou prazer gozados

Quando outrora acontecidos.

 

 

Aridez

 

A aridez de coração

É bem pior que a peçonha,

Que a peçonha mata em vão

E a aridez mata com ronha,

Gadanhando a dor no centro,

Lentamente, de nós dentro.

 

 

Divididos

 

Querer sem poder é fraco,

Poder sem querer, ocioso,

Divididos, cada é um caco

De nada em que me descoso.

 

Querer com poder unido

É eficaz e então é tudo.

Dele não fico iludido,

Nele meus cacos me grudo.

 

 

Singularidade

 

Não é singularidade

Ser só, nem grandeza, grande.

Entre os muitos persuade

Ser o só que os mais escande.

Entre os grandes grande ser

Singularidade é ter.

 

 

Bravos

 

Bravos inimigos são

Da época em que nasceram

Os homens que nela estão.

 

Mais depressa sempre creram

Que podem ressuscitar

Génios que os antecederam

 

Do que nascer no lugar

Outros tão grandes como eram

Aqueles que eram sem par.

 

A inveja vício dos vivos

Sempre foi, tal dos presentes,

Nem Deus lhe escapa aos furtivos

 

Caninos na altura assentes.

 

 

Maior

 

O que for maior desejo,

Logo que for conseguido,

Do maior gosto é o ensejo.

E o maior desejo haurido

 

Que os pais têm (devem ter)

É o de terem filhos tais

Que a igualá-los os vão ver

E excedê-los ainda mais.

 

Invertem, pois, os sentidos:

Ficam ledos de vencidos!

 

 

Encarecimento

 

Maior encarecimento

Do que é grande é confessar

Que de o escrever o intento

Não se poderá lograr,

Do que escrevê-lo nas lavras

Da pequenez das palavras.

 

O que se escreve ainda cabe,

Embora grande, na pena;

Se não se pode, é que sabe

Que a prisão é-lhe pequena.

Lá numero e delimito

O inúmero do infinito.

 

 

Livros

 

Sempre os livros se inventaram

Por conservar a memória

Dos passados que passaram,

Contra o tempo uma vitória,

Dele contra a tirania,

De ignorar, a felonia.

 

O livro é o conservador

Do antigo que é de repor.

 

 

Atrevimento

 

O atrevimento a escrever

Sobre uma matéria grande

É a caneta engrandecer.

Não se atrever quem demande,

Cegado da luz sidérea,

É engrandecer a matéria.

 

 

Começa

 

Tudo começa no fim,

Não no princípio, deveras:

Operas visando, assim,

Quanto no futuro esperas.

De ontem e de hoje na pausa

É aquela a primeira causa.

 

 

Temor

 

O temor aflige mais,

Tem mais modos de afligir.

Com o que é, como o demais

Aflige, mas, a seguir,

Com tudo o que pode ser

Atormentará quenquer.

 

E não penas com males

Mas com bens faz que te abales,

 

Que o temor destrói aqui

Do que há-de ser e nem vi.

 

Tem mil vias o temor:

- Dos males é o mal maior.

 

 

Perfeito

 

O que for fraco e mimoso

Pátria tem onde nasceu.

Ao que é forte e valoroso

O mundo inteiro é o lar seu.

Ao perfeito em nada o encerro:

O mundo inteiro é um desterro.

 

 

Tão

 

Tão nobre e honrado é o pobre

A pedir esmola às portas

Como o rei que o trono o cobre,

Que o coroam folhas mortas:

Somos iguais na matriz

Com que Deus filhos nos quis.

 

 

Sustenta

 

O pão me sustentou hoje

E livra-me do cuidado

Do amanhã que tanto foge.

O pão me alimenta o fado;

O cuidado aflige a vida,

Encurta e tira em seguida.

 

É bom que o pão saiba a pão,

Porque o que sabe a cuidado

Tem sempre humor de senão,

Põe-me de algum modo ao lado.

Singrar no rio da vida

Pela correnteza é a ida.

 

 

Sem

 

Não há fé sem esperança,

Firmeza sem dependência,

Nem amor que não alcança,

De cego, crer na evidência

De vislumbrar o futuro

Para me sentir seguro.

 

 

Sorte

 

Nenhum homem, quando orar,

Sabe o que lhe convirá

Pedir ao Deus que increpar,

Só o médico o saberá.

Sorte é o médico ser Deus,

Senão mal dos males meus!

 

 

Prioritário

 

Motivo prioritário

De tombarem os regimes,

Países sob o sudário

Da morte com que os redimes,

Será sempre o da injustiça

Em que cada qual se enliça.

 

Ou tiram a liberdade

Ao que antes livre nasceu,

Ou não pagam de verdade

O suor do que o serviu.

Na injustiça o que é fundado

É inseguro em todo o lado.

 

Disto o efeito consequente:

- Nada disto é permanente.

 

 

Cega

 

É cega propriedade

Dum amor o não ter olhos

Para o erro que o invade

De que só irão vir abrolhos.

 

Amor, ódio, ambos vão

Sentenciar, porém, sem vista

Que aquele não tem à mão

E este a não dá quando a alista.

 

 

Inimigos

 

Os inimigos de fora

Vencem-se uma e muitas vezes,

Mas os de dentro demora,

São invencíveis, soezes.

 

Com as vitórias aqueles

Vão de vez diminuindo.

Estes que a elas atreles

Crescem mais, vão-te imergindo.

 

 

Nauta

 

Nunca um nauta padecido

Naufrágios haverá tantos

Nem mais certos há sofrido

Que quando menos os prantos,

Quando a loucura o invade

E não teme a tempestade.

 

É no mar como é na vida,

Que o mar de tudo é medida.

 

 

Obras

 

As filhas do pensamento

Ou ideias são as obras,

Na estreiteza ou no aumento

Dali vêm sempre as sobras.

 

E a fonte primordial

Donde tudo se recebe

É como é que cada qual

A si próprio se concebe.

 

 

Perda

 

Da perda a dor é a medida,

Medida a perda é do bem.

Bem tido menos convida

A bem se estimar, porém.

 

Perdido se estima mais,

Que a perda o fará maior.

Maior feito em perdas tais,

Maior também fará dor.

 

E tudo isto é sendo o bem

O mesmo e nunca diverso.

De experiência nos advém,

Mesmo que à razão adverso.

 

 

Perdido

 

Um bem possuído é um gosto,

Um bem perdido é uma dor.

A dor move, a contragosto,

Bem mais o afecto, ao se impor.

 

A maior estima ao bem

Perdido não vem da dor

Da perda que acaso advém,

Mas de o conhecer melhor.

 

Antes de o haver perdido

Não o conheço deveras.

O mal é só conhecido

Quando se tem sem esperas.

 

O bem é quando se teve.

O mal, quando se padece.

O bem, se se perde, breve,

É que então jamais se esquece.

 

 

Longe

 

De longe vemos o bem,

O mal vemo-lo de perto.

O mal é quando ele vem,

O bem, ao fugir, deserto.

 

O mal é pelo direito,

O bem, ao invés, do avesso.

O mal, pelo rosto, a jeito,

O bem, de costas no acesso.

 

Quando o bem se vai embora

É que o desvendo eu agora.

 

 

Virou

 

Quando o bem virou as costas,

Quando fugiu e se vai,

Quando nos larga em congostas,

Quando passou como um ai,

No vácuo que se padece,

Aí de vez se conhece.

 

 

Dói

 

Quem se dói do bem perdido

Que pode recuperar,

O bem perdeu prosseguido,

Não dele o desejo a par,

Nem a esperança que tem

De o recuperar também.

 

Quem se dói do bem perdido

Que não pode retomar,

O bem perdeu prosseguido,

Nem desejar pode, a par.

Toda a esperança do bem

Doravante se detém.

 

Apenas se configura

A figura da dor pura.

 

 

Perdido

 

É-o menos o bem perdido

Se puder recuperar-se.

Se é de vez queda no olvido,

É dor pura e sem disfarce.

 

Há bens perdidos que a dor

Só com ser dor recupera.

Há-os que seja a dor qual for

Nenhuma o vácuo supera.

 

Tempo perdido é de vez,

Mas não o amor onde o lês.

 

 

Viável

 

A dor por um bem perdido,

Se o remédio for viável,

A esperança no sentido

Leva do que é desejável.

 

A dor aqui tem disfarce,

Não é só dor o que versa:

Aquilo é remediar-se,

Isto era apenas doer-se;

Aquilo é também amar-se,

Isto é amor onde perder-se.

 

 

Temer

 

Temer o inferno por não ver a Deus

Será temê-lo por amor de mim.

Temer o inferno por ferir os Céus

Será temê-lo pelo Amor sem fim.

Se aquele é luz, tem manchas seu luzir,

Daquele as manchas este irá delir.

 

 

Manda

 

Se fazes o que Deus manda,

Crês em Deus e crês a Deus.

Se não vais nesta demanda,

És só de apetites teus.

E o teu céu ou teu inferno

Vêm do acerto em tal caderno.

 

 

Volta

 

Se soubéreis quanta volta

Desde o ouvido até à boca

Dará uma palavra solta,

Veríeis quão vos sufoca:

Tão suja vem do lameiro

Que ninguém é verdadeiro.

 

 

Testemunho

 

Para o testemunho falso

Não é requerida a muda,

Diminuir, acrescentar...

Basta o sentido que eu alço

Mudar, a intenção que iluda,

Sem o entender mesmo, a par.

 

Palavra de intenção sã

É corrompida de modo

Que um louvor vira em agravo,

Confiança em injúria vã,

Galanteria em engodo,

Uma graça num tal cravo

 

Que só chispa labaredas

Donde só virão desgraças.

E estes dizem o que ouviram...

Que será quando as veredas

São do imaginário traças,

Ou do que nem sonhos viram?

 

 

Cruzam

 

Os homens cruzam governos,

Revolvem reinos e o mundo,

Em demanda dos internos

Sonhos que os movem do fundo,

Cada qual a introduzir

Desejos que definir.

 

E todos aos encontrões

Uns sobre outros vão pisando,

Olhos abertos, tições,

A porta à vista, acenando,

E ninguém, maldita sina,

Com aquela porta atina.

 

Andam a honra a buscar

E, sendo que é da virtude

A porta por onde entrar,

Não há quem nela se grude.

Compram honras a dinheiro,

Finda a honra por inteiro.

 

Desvelam-se por riqueza

Com mais olhos que barriga.

Crescer fazenda é o que a lesa,

Diminui cobiça a liga.

E, afinal, que é que isto importa?

Nunca atinam com a porta.

 

Matam-se por encontrar

Boa vida, sempre à busca.

E é vida boa gerar

A via que lá vai, brusca.

Porém, ninguém já se inclina

À porta que nela atina.

 

Cansam por achar descanso

E o descanso verdadeiro

É se conformar ao lanço

Que Deus quiser, por inteiro.

Mesmo quem a tal exorta

Nunca atina com a porta.

 

 

Distrai-nos

 

Distrai-nos o pensamento,

Prende a atenção o cuidado,

O desejo de momento,

O afecto que for roubado...

 

Vendo a vaidade do mundo,

Vamos após ela embora,

Com passo muito jucundo,

Tal se bem sólida fora.

 

Vendo o engano da esperança,

Dela fio, de alma aberta,

Tal se o que dela se alcança

Fora meta muito certa.

 

É a vida fragilidade

E quanto castelo afirme

Tal se fora a eternidade

Que nela encontrara, firme!

 

A inconstância da fortuna!

E quanta promessa apura

A mão que se lhe coaduna,

Tal se ela fora segura!

 

Todas as coisas humanas

São mentiras em carreiras

E nelas cremos, profanas,

Por santas e verdadeiras.

 

 

Cego

 

Quem alguma coisa vê,

Não como aquilo que for,

Mas como quanto não é

É mais cego observador,

Em tudo quanto ali mente,

Que o que não vê totalmente.

 

 

Avessas

 

Aquele que não vê nada

Da vista tem privação.

O que às avessas, de entrada,

Vê quanto ocorre no chão

Sofre dum erro na vista:

Maior cegueira é a que alista.

 

 

Equivocado

 

Anda em nós equivocado

Bem com mal e mal com bem,

Não por vista haver faltado

Mas de algum erro enganado

Da vista que então se tem.

 

 

Guia

 

Guia um cego um outro cego,

Qual o mais cego dos dois?

O guiado pede aconchego

E o guia, não. Ei-lo, pois,

Duplo cego: de não ver

E, após, de o nem conhecer.

 

 

Primeira

 

Das cegueiras a primeira

Tira a vista dum objecto.

A segunda é mais inteira,

Não vê sequer a cegueira:

Não vê não ver, em concreto.

 

 

Vilania

 

Vilania do invejoso

É que sente o bem alheio,

A glória dele ou o gozo

Mais que o mal de que andar cheio.

Então ao próprio tormento

Nem sequer nele anda atento.

 

 

Linhas

 

Como as linhas que do centro

Da circunferência partem,

Quando nos afectos entro,

Vejo que mais se repartem

E quão mais continuadas

Menos unidas são dadas.

 

 

Tira

 

Tira o tempo a novidade,

Descobre ao amor defeitos,

Ao gosto enfastia a idade,

Uso e são logo outros jeitos.

Se até ferro um uso o gasta,

Quão mais dum amor a casta!

 

 

Remediado

 

Um amor remediado

E que o tempo, enfim, curou

De doença foi traslado,

Não foi amor que findou.

Se um amor fora perfeito,

Ao tempo não era atreito.

 

 

União

 

Não é o amor união

De lugar mas de vontades.

Quando for aquele, então,

A distância que arrecades

Vai desfazê-lo no chão.

Se for este cada dia,

Nenhuma lonjura o esfria.

 

 

Contrária

 

Contrária à luz será treva

Se não fora de supor

Que às estrelas o que as leva

É luz acender maior.

E com o amor acontece

Que amor maior o arrefece.

 

 

Porque

 

Se eu amar porque a mim amam

Tem o amor sempre esta causa.

Ora, amores tais reclamam

Do amor, afinal, a pausa.

 

Se amo para que a mim amem,

É amor que procura o fruto.

Obrigações que além clamem

Cumpre-as, pagando o produto.

 

Busco, afinal, meu desejo.

Quem do fundo ama, em lugar,

Ama porque ama, no ensejo,

E ama apenas para amar.

 

 

Viso

 

O amor, dentro, são afectos,

De fora são os efeitos.

Se fiéis daqueles são tectos,

Destes crescem os trejeitos.

Além é perfeito o fito,

Aqui viso o Infinito.

 

 

Ausência

 

O não ver estando ausente,

É uma ausência numa ausência.

Não ver estando presente

É, na presença, outra ausência.

Nos termos contradição,

Nos afectos que violência

Nos vai fazer isto então?

 

 

Razão

 

“Amei-vos? Amai-me vós!”

- Diz a razão sem disfarce.

“Amei-vos? Amai-vos!” – voz

É de Deus que tudo esgarce.

Isto é amar, embora a sós,

E o mais, apenas amar-se.

 

 

União

 

É o amor sempre união

E dela a busca perene.

Para ali propende então,

Para ali caminha o chão

E só lá pára, solene.

 

Mas, se intenso for demais,

Produz o efeito contrário.

Pode a dor dar gritos reais,

No excesso muda os sinais,

Emudece no cenário.

 

Como a luz que nos faz ver,

Se for demais, encegueira,

É o amor que tem quenquer:

Une a quem o amor tiver,

Mas demais, divide a leira.

 

 

Morte

 

Toda a morte é morte e ausência:

Morte porque tira a vida;

Ausência, pela premência

Com que aparta, de fugida,

Da copa cortando os ramos,

Todos aqueles que amamos.

 

 

Conselheiro

 

O bom conselheiro

Não o faz o nome

Nem rosto fagueiro

Mas que voto tome

Dele na perícia

Vergando a malícia.

 

 

Escravo

 

Não houve nunca um escravo

Que não tenha decidido

Ser escravo alguma vez:

Pode a escolha ter o travo

De ou servir ou ter morrido

Mas sempre está lá que o fez.

 

 

Detrás

 

Tudo atrás nos vem detrás,

De mães, pais e de avós deles.

Sou marioneta incapaz,

Cordéis presos cá nas peles,

 

Dançando ao ritmo daqueles

Que antes de nós cá chegaram.

E os nossos filhos imbeles

Ei-los que um dia tomaram

 

Os cordéis de nossa mão,

Nossa dança dançarão.

 

 

Sobreviventes

 

Estes dois sobreviventes

Numa cela de prisão,

Sempre um ao outro presentes

Na comum amarração,

 

Não deve mesmo haver nada

Que os venha a surpreender...

- Porque me evoca a fachada

Dum casamento a correr?

 

 

Quiser

 

Quem quiser fazer amigos

- É num clube de leitura.

Se for dinheiro, pascigos

É o que o dia só lhe apura.

 

Apenas um imbecil

Confunde ambos no redil.

 

Amigo pelo dinheiro

Não é amigo verdadeiro.

 

Se for amigo é gratuito,

Recebe pouco, dá muito.

 

 

Abafar

 

A liberdade não é

Somente andar à vontade,

É deixar o outro de pé,

A ser quem é de verdade.

 

É não lhe abafar a essência,

Respeitar necessidades,

Das vontades a evidência

Que intui das profundidades.

 

Toda a individualidade

Respeitar noutrem e em mim

É a base da liberdade

De caminheiros sem fim.

 

 

Tiram

 

Não são os outros que tiram

A liberdade deveras,

Limitamo-la se miram

Deles quais nossas esperas:

Quero-lhes a aprovação

E assim me têm à mão.

 

 

Gaiolas

 

Preso em gaiolas da vida

Ou dos outros nas gaiolas,

Quem me pôs lá sem medida,

A ideia preconcebida

Ou doutrem as carambolas?

No fim serão sempre os medos

Mais que actos doutrem ou credos.

 

 

Ser

 

É no ser que há segurança,

Não no ter ou no fazer:

Nestes há sempre mudança

E na muda não se alcança

A segurança de ser.

 

 

Medo

 

Do medo surge a revolta,

A raiva, o ressentimento,

A crítica, o julgamento,

Qualquer egoísmo à solta,

Preocupação, mentira...

- No medo a vida delira.

 

 

Sintoma

 

Qualquer físico sintoma

Com padrão emocional

Como raiz, ou mental,

Inadequado ao que o toma,

Ou com ele num conflito...

- É doença que concito.

 

 

Sincronismos

 

Os anjos jogam connosco

Através dos sincronismos.

À esquina da vida embosco

Uma suspeita de abismos,

Eis que a casualidade

Já tal não é, de verdade.

 

O significado além

Vai então do que é aparente,

Do que a vista alcança bem,

Da coincidência evidente.

 

A coincidência é uma imagem

Onde então leio a mensagem.

 

 

Pedes

 

Tudo o que pedes te chega.

Porém, se ficas sentado

Ou a dormir acordado,

Nunca o milagre te pega.

 

Não é a vida contra ti,

Se te vem outra resposta,

É que tens a mesa posta

Para mudar desde aí.

 

É mudar de perspectiva,

Ou de objectivo mudar,

Ou então não é o lugar

Ou tempo do que aí viva.

 

 

Caindo

 

Só aprendemos caindo

E os erros compreendidos

São passos gigantes indo,

Que urge celebrar, rendidos,

Ao invés de os castigar:

- São um primeiro lugar!

 

 

Aprendizagem

 

Na aprendizagem na terra

Não há modo de aprender

Senão pelo engano que erra,

Por uma falha qualquer.

Porquê culpar-nos então

Do degrau que houver no chão?

 

 

Quotidiano

 

Desafio quotidiano

Será o dos gestos pequenos.

Convenço-me, por engano,

Que importância têm de menos

E, atrofiado e cinzento,

Eis como apodreço, lento.

 

 

Servem

 

Nem mestres nem dogmas servem,

Da ciência veredictos,

Só os ecos que em mim se acervem,

Do coração requisitos.

 

Quer escrito por alguém,

Quer ouvido em conferência,

Quer proveniente do além

Do imo em íntima evidência,

 

Pouco importa, ressoou

Em meu interior fundo?

Se fundo assim me tocou,

É aqui que começa o mundo.

 

 

Hábito

 

Hábito é comodidade

Em redes de segurança,

A rotina que te invade.

Se quebras o que te alcança,

Os medos são gritaria

Mas ganhas força, alegria.

 

 

Simplicidade

 

Havendo simplicidade,

O sorriso vai mais fundo,

As ideias mais verdade

Desabrocharão no mundo,

Serão flor que despoleta

Voos duma borboleta.

 

 

Direcção

 

Ver a direcção correcta

É saber onde chegar

Ou que operar como meta.

Coração-razão, o par

De, sem asas, pôr-me a voar.

 

 

Semente

 

És a semente inquieta,

Fechada e cheia de vida.

Queres correr pela recta

E ouves logo de seguida:

 

- “Não vás de pressa, aproveita

O tempo de alimentar-te

Da energia a que és atreita,

Frui do dia a tua parte.

 

Ao obstáculo, atenção!

Aprende com todos eles.

Amas com o coração?

Não te esqueças do que apeles.

 

Se fizeste o teu percurso,

A tua vida a se encher,

Não te detenhas no curso,

Segue em frente até morrer.

 

Que importa o mundo não crer

Que morrer é renascer?”

 

 

Unem

 

Tu e teu anjo, se se unem,

Não te vês abandonado,

Nem apoios se reúnem

Nos amigos a teu lado.

Jamais a verdade apuras

Fora de ti nas procuras.

 

 

Levo-me

 

Sou quem mora neste abrigo,

Levo-me sempre comigo.

 

De noite ele é quem me guia,

Guio-o eu durante o dia.

 

Sempre assim emparelhados,

Sós, vamos de braços dados.

 

 

Migalha

 

Se a migalha do defeito

Alguém descobre nas obras,

Que a ser homem sou atreito

Descobre em meu jeito e sobras.

 

Não é, pois, o fim do mundo:

- Sou como os demais, no fundo.

 

 

Erro

 

Ninguém foge ao próprio erro,

Basta uma escorregadela

E alguém sofre ao peito um ferro

Tal que uma infernal sequela

Pode ser perder a paz

- E não há mais volta atrás.

 

 

Estranho

 

Muito estranho é o ser humano!

Algo é feito, não dá certo,

E, em vez de pôr fim ao dano,

De o rumo mudar, desperto,

Não, julga ter feito pouco:

- Fará mais no rumo louco!

 

 

Dormir

 

Se alguém com alguém dormir

Para subir na carreira,

Nunca então irá sentir

A receita verdadeira

Da merendeira da glória:

- O gostinho da vitória.

 

 

Arte

 

Qualquer arte com as gentes

O que faz é comovê-las,

Fá-las sentir, entrementes,

O que jamais hão sentido:

O êxtase das caravelas

A entrar no desconhecido.

 

 

Cume

 

Todo o cume é solitário.

Quão mais só alguém se viu,

Feito trepador primário,

É que mais alto subiu.

No bem tal como no mal,

Sempre igual será o sinal.

 

 

Foge

 

Nunca ninguém foge à vida

Porque ela sempre nos segue

E o que tem de ser vivida

Sê-lo-á onde prossegue.

Tece a rede de retrós

Muito mais forte que nós.

 

 

Destino

 

O destino são vectores,

Fixos uns, outros variáveis.

E, em nossas mãos, dois pendores:

Aceitar os imutáveis;

Mudar o que não confere

Comigo e faz que o altere.