ALÉM   DE   SOFIA

 

 

BARTOLOMEU  VALENTE

 

 

 

 

 

 

 

AROEIRA, 2019

 

 

 

 

 

 

              Chão de Vivos, 5 de Junho de 2018

 

              Caro Luís:

              Estranhaste encontrar, numa obra de síntese acerca das vivências dos meditadores, que tanto se salvam os que crêem na reencarnação como os que não crêem. Indiciado pelo facto de se haverem contactado dois deles, um crente, outro descrente, recentemente falecidos, e ambos confirmarem que estão igualmente bem, do lado de lá da vida.

              Como é que é possível? – perguntas-me.

                   Também eu me perguntei durante muitos anos e só muito recentemente encontrei resposta. Como sabes, sempre fui muito céptica relativamente à reencarnação, mormente quando entendida nos termos da cultura oriental. Deixa de fora demasiados vectores, ignora os avanços da ciência e, principalmente, a repugnância visceral que sempre senti de eu não ser eu mas ser outra pessoa, perdida algures pelos recantos da História. E que anda em bolandas pelos séculos e milénios fora, reencarna aqui, morre acolá, sempre à procura de si e sempre a perder-se, num pesadelo interminável. Isto nunca me convenceu, nem com a adenda de que, de cada vez, pode e deve ir-se purificando até à perfeição final, onde quebrará este ciclo interminável, não reencarnando doravante mais, identificada definitivamente com a espiritualidade, com a luz interior, com o mundo divino (como quer que se lhe chame).

                   Vamos por partes.

 

                   1 – Quando estudámos em Coimbra, tive oportunidade de contactar, no âmbito do Curso de Estudos Judiciários, com vários presos da Penitenciária. Curiosamente, todos acreditavam que os actos que os haviam levado à condenação eram deveras condenáveis e, portanto, como os haviam praticado, agora cumpriam consequentemente a pena. Havia um desajustamento notório, uma contradição, entre a crença no juízo de valor e a atitude que haviam tido. Esta é que os condenou, aquela fora inteiramente indiferente para o julgamento (do tribunal e deles próprios).

                   Mesmo quando acompanhei um deles à saída, uma vez cumprida a pesada condenação a sete anos de prisão, ele me confidenciou que o polícia que atropelara fora uma vítima da sua própria cabeça esquentada, porque, na tarde do atropelamento, havia rompido com a namorada e estava tão furioso que explodira daquela maneira. Nem sabia quem o homem era! Tudo fruto das circunstâncias e da falta de controlo. O que era altamente condenável, entendia ele.

                   Na justiça o que conta são os actos, portanto, não os intuitos nem as crenças. “De boas intenções está o inferno cheio” – diria o povo. Válido, portanto, tanto na justiça de aquém como na de Além.

                   Até aqui parece tudo pacífico, mero bom senso. Todavia, não é de todo.

 

                   2 – A História mostra sempre o contrário disto.

                   Logo nos “Actos dos Apóstolos”, S. Paulo é chamado a Jerusalém porque tem uma concepção do cristianismo diferente dos outros: não liga aos rituais judaicos, nem à circuncisão, nem ao resto. Cristo ressuscitou, o que conta é a caridade, mais nada, para podermos ser também ressuscitados. Ora, os restantes não pensavam assim e toca de encostá-lo à parede. Felizmente, ele logrou convencê-los. Estavam a cometer o erro permanente de todos os revolucionários: entram pelo Ano Novo fora a escrever datas do Velho. E ignoram o fundamental: as teorias levam a mais e melhor comunidade ou não; a mais e melhor solidariedade ou não; a mais e melhor fraternidade ou não; a mais amor gratuito e incondicional ou não? Se sim, é o que importa, tudo o mais (todo o conceito) é instrumental e secundário: vale, se levar àquilo; de nada vale, se não levar; é de banir, se o impedir, frustrar ou nos desviar.

                   Foi sol de pouca dura. Depois do “Concílio de Jerusalém”, todos os outros, até à excepção do Vaticano II, se destinaram fundamentalmente a definir dogmas e a excomungar quem com eles não convergia nem os acatava. Como se o amor se reduzisse a um conceito! E o pior é que excomungadores e excomungados se regeram sempre pelo mesmo equívoco: o que importa é a teoria; os actos, não, são meros derivados, inócuos neles próprios. Daí chegarem às Cruzadas, à Inquisição, às guerras de religião: o roteiro foi sempre motivado pelo mesmo. Até que muitas pessoas começaram a fatigar-se e a questionar e tudo redundou no indiferentismo e no ateísmo que hoje grassam pelo mundo. É no que resultou o “vede como eles se amam” (critério-base do cristianismo), ao fim de dois milénios: foi ficando esquecido e posto de lado, neste itinerário multimilenar.

                   Todas as igrejas têm dogmas práticos que perdem o tempo a atirar à cabeça umas das outras, mesmo quando são teorias infantis que infantilizam toda a gente e que nada têm a ver com espiritualidade nenhuma: a proibição das transfusões de sangue e das festas das Testemunhas de Jeová, a vasectomia dos pastores da Igreja Universal do Reino de Deus, a imposição do sábado como dia do Senhor pelos Baptistas, o banimento de qualquer imagem pela Igreja Maná... Não há ecumenismo que nos valha: o erro que todos combatem é o erro que todos cometem! Não faz sentido nenhum.

                   Nas outras religiões é o mesmo. Os judeus continuam a encarar-se como “povo eleito” e quem quiser salvar-se ou se converte a eles (e se lhes submete, na versão mais radical) ou é um réprobo irremediável. No limite, só um Estado sionista planetário cumpriria a promessa de Iavé. E de nada vale quantos místicos e teólogos deles pelos milénios têm denunciado a perversidade disto, a violência, o ódio que milenarmente tem vindo sempre a gerar, como demonstração definitiva de quão erróneo é tal caminho. Isto pouco lhes importa, o que interessa é aquele modelo que têm em mente, definitivamente inconvertível: mais uma vez, a teoria inteiramente alheada dos efeitos práticos e sempre à frente deles, sempre prioritária e nunca ao serviço da amorização do homem e do mundo.

                   Os muçulmanos há milénio e meio que vêem sunitas a assassinar xiitas e xiitas a assassinar sunitas e ambos a escravizar e aterrar povos inteiros, tudo a coberto do Alcorão e em nome de Alá e do seu Profeta. Hoje em dia é o terrorismo. Também aqui nenhum protagonista destas tragédias se questiona sobre se resultados tão horríveis não comprovam que algo de erróneo tem de haver na prioridade às concepções que aqui conduzem. Não, o dogma que têm na cabeça é que manda. Os actos, benéficos ou maléficos, não contam senão para o cumprirem. Sempre a mesma asneira, portanto.

                   Em todo o lado é assim. O pecado não é propriedade privada de ninguém. Nem de nenhuma crença, nem de nenhuma instituição. Todos compartilhamos do melhor e do pior.

 

                   3 – Aqui chegados, não admira que tanto o descrente como o crente na reencarnação ambos se salvem. O que conta é o teor de vida que levaram e não em que é que creram ou não. Se ambos se dedicaram a ajudar tudo e todos em redor a vida inteira, a replicar o amor de Deus por todos e tudo, crendo nisso ou não, é óbvio que morrem em comunhão com o Espírito do Universo. Aí prevalecerão.

                   É, aliás, o critério bíblico: “vinde, benditos de meu Pai, porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, estava nu e vestistes-me...” E os incréus: “mas quando é que te vimos assim?” “Quando o fizestes mesmo a um dos mais pequenos, a mim o fizestes”(Mt. 25, 31-46). Como no tribunal humano, o que conta são os actos, a crença é indiferente.

                   E nós que passámos o tempo anatematizando-nos mutuamente por mor dum “filioque” qualquer, como há mais de mil anos entre Católicos e Ortodoxos, como se tivesse qualquer relevância prática que o Espírito Santo proceda só do Pai ou do Pai e do Filho (seja lá o que for que isto deveras signifique, não é?)! E nem hoje tal dislate se logra ultrapassar... Andamos sempre a discutir o sexo dos anjos enquanto qualquer Constantinopla cai sangrando a golpes de cimitarra. Isto é que é dedicar a vida ao amor universal!

                   Pior é que nem nos arrependemos nem reconvertemos: mesmo quando hoje levantamos uma condenação de há séculos a Galileu, é que isso já está morto e enterrado. É fácil. Mas continuamos denodadamente a condenar à morte os galileus actuais, claro. E sempre em nome de teorias. Que lá o amor não interessa para nada, evidentemente!

 

                   4 – Que fazer então à teorização? Ignorá-la e tornarmo-nos irracionais? Não. Primeiro porque seria impossível. Somos racionais e pretender elidi-lo é apenas largar a razão à rédea solta: a perversão é que então se extremaria e ninguém teria mais mão nas tragédias provocadas. Depois porque as concepções têm uma força tremenda, como vemos atrás. E nem sequer aludi aos milhões e milhões de massacrados na Sibéria estalinista, na China, na Birmânia... Sempre a coberto duma ideologia messiânica qualquer, religiosa ou ateia. Ora, como não utilizar isto ao serviço da harmonização universal, da realização da plenitude humana? Como não tentar inverter o rumo histórico catastrófico em que caímos até hoje, a fim de torná-lo construtivo, fermentador duma humanidade cada vez mais realizada, mais plena?

                   O itinerário é tão simples de entender como difícil de executar.

                   Em primeiro lugar, a razão tem de estar ao serviço da acção e nunca a acção ao serviço da razão. A nossa racionalidade é o instrumento privilegiado para tornar eficaz a actividade. Tem de lhe ficar inelutavelmente subordinada. Temos de auscultar bem no íntimo o que é que nos abre caminho para a realização cada vez mais conseguida de nossas potencialidades, o que é que fará o mesmo para cada um dos outros, para toda a Humanidade. Agora e sempre. É uma tarefa interminável, permanentemente com apuramentos cada vez mais finos, tanto a nível individual como familiar, comunitário e planetário. A cada hora, cada dia, todo o ano: o caminho não terá termo nunca.

                   Parece óbvio mas não é: a inversão desta prioridade é a norma histórica, pelos milénios fora, como constatamos. Porquê?

                   Tudo deriva da maneira como encaramos o deslumbramento da revelação. Sempre que enfrentamos um problema, mal vislumbramos a explicação e o modo de o resolver, a luz encandeia tanto que não reparamos em mais nada. Cometemos o erro dos discípulos no Monte Tabor: é tão bom que montamos tendas aí e desligamos doravante do mundo externo. E não temos nenhum Jesus Cristo que nos diga: “não, tem juízo! Vamos mas é descer o monte e tratar da vida lá de baixo!”

                   É donde decorrem permanentemente os dois desvios interligados: a dogmatização da teoria e a fanatização das atitudes. Quanto mais no íntimo nos brilhar a luz do esclarecimento da dificuldade e de como superá-la, mais tendemos a encará-la como definitiva e, portanto, sem alternativa, bem como completa, logo, sem requerer mais complementaridade nenhuma. Tornou-se uma revelação sacralizada: tão intocável no campo dos crentes como no dos descrentes, sob pena de sacrilégio a condenar à morte, quer na fogueira inquisitorial, quer no crematório do Holocausto, quer no campo de concentração siberiano... O erro é o mesmo em todo o lado. Quem encarar a revelação como um dogma logo se fanatiza, torna-se um extremista: de facto, se contempla uma verdade absoluta, como encarar quem não lhe adere? No mínimo, integra-o no hospital psiquiátrico soviético. E nem sequer admite discussões: atingida a luz definitiva, resta apenas obedecer-lhe!

                   E eis como se consuma história além a inversão das prioridades: doravante é a actividade que fica ao serviço da ideologia, a acção sujeita à razão. E aí temos o desvario, porque é fatalmente uma razão desvairada. Em qualquer que seja o campo. Inverter as prioridades mata-nos há milénios. A verdade absoluta é absolutamente inatingível: é apenas indefinidamente aproximável, em todos os domínios. Na decorrência disto, é de nunca se deixar fanatizar: por mais convicto que alguém esteja da verdade, pode estar sempre errado; e, por mais evidente que a verdade se lhe antolhe, há sempre mais verdade a descobrir, que a realidade não se deixa apanhar de vez jamais, seja qual for o pendor por que a abordemos.

 

                   5 – Chegada aqui, fez-se-me luz. Tinhas-me escrito que vos causava algum desconforto no vosso relacionamento conjugal a forma diversa como encaravam a reencarnação. É natural: é menos uma área de comunhão mútua, não é? Esta é outra das razões porque vale a pena esforçarmo-nos para chegarmos a entendimentos comuns, seja lá qual for o domínio: identificamo-nos com quem pensa como nós, o que é gratificante. Reforça a nossa própria identidade, reforça os laços e aumenta a mesa da partilha entre os que contam com tal afinidade. Não é nada de deitar fora.

                   Pois bem, ambos têm razão: a reencarnação existe e a reencarnação não existe. Embora pareça, não é um paradoxo. É que estamos sempre habituados a encarar-nos como um todo, num simplismo que ignora a enorme complexidade e contradições de nossa vida interior. Ora, nenhum de nós está nunca interiormente unificado nem harmonizado. Cada qual é ele próprio e muitos outros, numa perene contraposição íntima que tem de gerir.

                   Herdamos geneticamente o corpo característico da espécie humana, com todas as capacidades e limitações que nos identificam. Herdamos culturalmente mundividências, valores, escolhas familiares, linguagens, modos de ver e de agir... Estamos sempre numa relação com o meio ambiente que respiramos, donde comemos e bebemos e que tanto nos cura como nos atinge com todos os factores de doenças, vírus, bactérias e por aí adiante. E todos estes vectores observáveis que, fazendo parte do mundo sensível, são percepcionáveis e compartilhados por todos, são por cada um vivenciados interiormente na dimensão íntima a que só ele acede: só eu sou eu, só eu acedo ao eu que sou e ninguém tem acesso directo a mim senão eu própria.

                   Pois bem, é aqui que bate o ponto: tenho permanentemente de me confrontar comigo mesma. Ora tenho de travar apetites, se quero escapar a doenças ou manter a linha, ora alimentar-me até sem ou contra eles, para sobreviver ou me curar. Tenho de dominar emoções para escapar ao crime ou manter laços. Tenho de optar entre sentimentos e afectos, a evitar a mútua destruição ou a optimizar a alegria e a gratificação pessoal. Tenho de reflectir em problemas, superar dúvidas, desvendar caminhos no meio de obscuridades. Tenho de agir ou manter-me quieta para evitar perdas ou atingir melhorias.

                   É um nunca mais acabar. Passo a vida a fazer escolhas. E todas elas são, na interioridade, actos de gestão desta legião íntima que me habita, que também sou eu mas numa dimensão diferente desta faculdade de os governar, harmonizar, unificar em prol dum todo por que respondo, que sou eu também, agora na configuração que vou alcançando deles todos, mais ou menos coerente, fruto de minha intervenção.

                   É nesta distinção entre o eu e mim própria que radica a solução do aparente paradoxo da reencarnação. O eu enquanto faculdade de gerir toda a pléiade de elementos da vida interior e, por isso, de responder pela pessoa inteira, é uma realidade completamente diversa daquele resto (riquíssimo) que tem de tomar em mãos. Vive a vida toda num permanente confronto com quanto intimamente se lhe depara diante e que, por seu lado, o desafia a domá-lo, para o utilizar a contento (sentimentos, afectos, emoções, utopias, desejos, instintos, inteligência, memória, intuição, ponderação, escolha, decisão, actividade, intervenções...).

                   O eu, enquanto realidade tomada neste sentido de gestor da íntima harmonia, nunca reencarna. É uma participação individual única de cada um no Espírito do Universo. Alimenta-se e radica na última instância do inconsciente, o que a Psicologia Analítica refere como o “deus-em-nós”. É a marca de Deus em mim, o sopro bíblico que do barro gerou um Adão vivo (Gén. II). É criatura divina e, como tal, destinada a espelhá-lo: a ser um consigo, com os outros, com o Cosmos. Uno na infinita multiplicidade do trino. Deus não passa a vida a morrer e a renascer, o eu de cada um também não: uma vez gerado, vive para a imortalidade, é um eu para sempre. Para sempre alimentado da energia íntima de Deus, a intimidade do Universo.

                   Quando opero em consonância com minha raiz última, o deus-em-mim, cresço como um Eu, cada vez mais transparente ao Infinito, cada vez mais Um e o Todo. Quando o ignoro e rompo com a minha matriz vital, sou cada vez mais um Ego, de convergência e unificação rompidas, cada vez mais um quisto isolado no corpo do Universo. Todos somos sempre uma mistura de ambos, já que ninguém consegue a perfeição, numa tensão dinâmica permanentemente a refazer-se.

                   Ora, é aqui que aflora a outra face da moeda. A fonte de energia vital, quando jorra em mim gerando meu eu, presenteia-me com a multiplicidade dos pendores da vida interior, correspondentes a indivíduos que vivem doravante no espírito de Deus, íntimo do Universo, com quanto conseguiram e com quanto falharam, na vida terrena e após ela, e que vêm reviver tudo comigo, partilhando a minha quotidianeidade. Não deixam de ser outros eus que não eu próprio, mas eu assumo-os como sendo eu, na medida em que vou gerindo todos os desafios e conflitos que eles protagonizam por dentro de mim, na expectativa comum de que eu logre sempre mais e melhor pela vida fora. Neste sentido, toda a complexidade da minha vida interior além do eu são reencarnações do passado, nada anónimas mas com os respectivos protagonistas, deste modo herdados de antanho. Então, encarando-me por dentro, não sou tanto um eu mas mais um nós, à semelhança do Nós divino trinitário: eu, os outros e deus-em-mim a atrair todos rumo ao Infinito.

                   Entendamo-nos, todavia. Nesta comunidade interior eu poderei ter tanto a propensão para o sublime do Anjo da Guarda como a possessão infernal do Diabo e, pelo meio, toda a gama de misturas de Eu-Ego, num continuum entre os extremos. Cada aspecto reflecte o ponto onde o respectivo protagonista ficou. É isto que a irlandesa Lorna Byrne vê em cada indivíduo, desde criança, nascida como foi com o dom particular de ver os falecidos, como relata em “Anjos nos Meus Cabelos”. Cada um de nós é acompanhado por vários. E, no caso dela, o guia preponderante que se lhe revela como o arcanjo Miguel, não só ela o vê e com ele fala, como por vezes ele assume um corpo físico visível para toda a gente, que cumprimenta quem ela cumprimenta, o que leva os outros a perguntarem-lhe quem era aquele cavalheiro muito bem-posto com quem a tinham visto e que lhes é desconhecido. É igualmente o que permitiu que a companheira de infância de Jesus que revive em Alexandra Solnado pudesse ser reencaminhada para a Luz que rejeitava, em virtude da revolta pela morte dele. Não só subiu para a Luz, após horas de renitência em meditação, como isso não fez mal nenhum a Alexandra que continua viva e de saúde. Não poderia ser assim se tal companheira espiritual fora ela própria. Ao abandonar esta vida, não poderia cá ficar uma enquanto a outra se ia embora, se fossem a mesma. É o que decorre do “Voo Sensitivo”, onde a experiência é relatada. Numa dimensão íntima somos um sujeito único, nas outras somos outros, tudo dentro da vivência privada da interioridade, directamente inacessível a terceiros que não eu própria.

                   Não admira, pois, que em ti reviva o malogrado puritano P. Dimesdale, há quatro séculos morto quando a úlcera gastro-duodenal se lhe perfurou. Dele a herdaste mas cicatrizaste-a, bem como o que a provocou e alimentava: uma crise interminável de escrupuleira, decorrente duma visão do cristianismo e da espiritualidade dogmatizada, extremista e culpabilizante, sem qualquer esperança de remissão. Cometido o pecado, só restaria a condenação eterna. Grande passo em frente vem ele dando contigo, ao ultrapassar tudo isto com uma espiritualidade atenta, actuante e humilde, que nunca pretende saber nem mandar em nome de Deus, que lhe respeita intransigentemente a definitiva inacessibilidade. Que procura apenas ir cumprindo a lei do amor, como queria Sº. Agostinho: “ama e faz o que quiseres.”

                   Não admira que em tua esposa reviva a Ester, a vilipendiada amante adúltera daquele, com quem teve uma filha que se afogou acidentalmente no rio que então atravessava a floresta junto de Salém (facto alterado por Nathaniel Hawtorne, em “A Letra Encarnada”, para efeito romanesco, ao romancear o caso dois séculos depois). Daquela condenada herdou a obsessão pela justiça, pela equidade com que ela nunca foi tratada por uma comunidade de extremistas dogmáticos. Bem como a tendência para exigir relações humanas impolutas, sob pena de corte radical irreversível. Grande avanço tem a Ester feito, na medida em que tua esposa constata que nada em sua e vossa vida pode justificar aquela obsessão justiceira, pelo que a pretende e vai pondo de lado, bem como vai suavizando o extremismo com que puniria relacionamentos, à mínima falha. É toda uma gradual reconciliação com os outros e a comunidade, bem como com o amor cósmico, inviável por inteiro de viver entre puritanos há quatro séculos atrás.

                   E a empatia espontânea entre tua esposa e a melhor amiga? Melhor amiga que impôs para si um casamento de amor contra a vontade da própria família e que de imediato tratou de ti quando perdeste os sentidos, num almoço, em pleno restaurante. Nela revive o Roger, o malogrado marido à força de Ester, vítimas ambos dum casamento de conveniência que nunca foi real, apenas formal mas impossível de denunciar e reconverter numa antiga comunidade fanática. Agora, no íntimo desta amiga, construiu uma família com filhos e netos, um casal que vive distante, entre continentes, como outrora, mas que os afectos unem e que cimenta a solidariedade entre todos. Grande salto em frente aqui também.

                   E acabastes por descobrir a filha afogada daquele pobre casal incompreendido na professora da piscina (evidentemente, só podia sê-lo: tinha de estar ligada às águas que a mataram!). A mútua atracção espontânea entre vós todos escapa a toda a compreensão (todos os mais são indiferentes) e ela tem aquela esfusiante alegria de viver que irradia para todos em redor que a criança ancestral também tinha. Agora vive a vida adulta que outrora lhe ficou truncada pelo acidente: casada, com filhos, com trabalho, com família... É decerto o Anjo da Guarda no íntimo da professora, a Pearl tão precocemente ceifada da vida.

 

                   6 – “Todos somos feitos do pó das estrelas” – afirmava Carl Sagan. Herdamos tudo de antigamente. Resta compreender o quê e como, em concreto. Entendermo-nos aqui também estreita laços e partilha afectos. E cimenta a identidade humana, para além de continentes e culturas. É assim que tanto têm razão os que acreditam que o Dalai Lama é a reencarnação do anteriormente falecido como os que não acreditam: tudo depende do que entendem por aquilo. O Dalai Lama enquanto sujeito individual com um eu único, irrepetível, esse não reencarnou, acolheu em si o anterior para fazer as suas próprias escolhas e refazer os caminhos espirituais-temporais que os desafios da vida lhe requerem. Mas o Dalai Lama enquanto pessoa que lidera espiritualmente milhares doutros, que acolhe em si tradições, perfis de vida, itinerários históricos que lhe vêm de trás e do meio ambiente e trata de gerir tudo isto, está a reencarnar nele tudo o que lhe vem dos ancestrais: este reencarna nele o líder que o precedeu como decerto todos os mais que a ele chegam na mesma linha. Nele revivem e continuam a aventura de espiritualizar o caminho dos homens, tão pessoalmente empenhados como quando em vida terrena. Constituem com ele o nós íntimo que ele, o que hoje é corporalmente vivo, gere como primeiro protagonista, mas todos estão com ele empenhados na aventura humana. Nenhum deles fica dissolvido, reduzido a nada, nem é o eu, a egoidade do actual, todos se integram mutuamente e buscam harmonizar-se, harmonizando-se com tudo e com todos, no desafio cósmico da identificação do Uno no Múltiplo, a estrutura final do Amor Infinito.

                   Este entendimento refaz a ponte entre a cultura ocidental, predominantemente não reencarnacionista, e a oriental, reencarnacionista.

                   No ocidente cristão (mas com paralelos judaicos e muçulmanos) sempre se creu no poder dos anjos e santos para nos ajudarem, intervindo em nossa vida interior e exterior, bem como no poder de Jesus ressuscitado como salvador da humanidade inteira. E o anjo da guarda, permanentemente com cada um, a velar pelo melhor durante toda a vida? É óbvio que está infatigavelmente a reencarnar em nós e na realidade material, através de nosso agir em conformidade com ele. Não fica de fora nem nos substitui, mora em nosso íntimo de mãos dadas connosco, a nos inspirar o rumo à plenitude. Mas onde melhor se surpreende o resquício da crença ocidental na reencarnação é na vivência negativa: na possessão diabólica, a requerer o exorcismo, para expulsar o espírito maléfico. Aqui não há dúvida: há uma entidade perversa a tentar dominar a vida interior dum sujeito, contra ele e sem se lhe subordinar (é um eu contra outro eu, tudo no domínio da interioridade vivenciada). A diferença é apenas de que aqui há uma ruptura, não um trilho para a harmonia; uma rebelião a ameaçar de morte o sujeito, não um apelo e solidariedade para lhe realizar todas as virtualidades. Ora, sejam os espíritos benéficos ou maléficos, a situação é a mesma: reencarnam em nossa vida interior com suas egoidades intactas e activas, para o bem ou para o mal. E eis como o Ocidente anda, afinal, tão próximo do Oriente, sem reparar embora.

                   Mas este também não anda tão distante daquele como parece. Na cultura ocidental teorizou-se tanto um deus transcendente que o judaísmo lhe aboliu milenarmente o nome (como é o Inominável, salta de palavra em palavra: Iavé, Jeová, Eloim, Emanuel, Deus...), o muçulmanismo aboliu-lhe qualquer representação figurativa e o cristianismo remeteu-o definitivamente, na teoria, para o Além, o Outro Mundo, tornado Deus Abscôndito. Culminando esta linha de rumo, o Oriente aboliu a divindade, protagonizando o que se tem denominado como “uma religião sem Deus”. Também aqui a mútua convergência é inequívoca, os dois mundos são, afinal, um só. E todos neste rumo tendemos a ignorar por igual a intuição basilar dos místicos de todas as tradições que Sº. Agostinho resumiu no axioma lapidar: “o transcendente é o imanente.” O que viria a culminar na agostiniana definição de divindade: “Deus é o mais íntimo que o meu íntimo”. É a primeira intuição, já no séc. V d. C., do “deus-em-nós” experimentalmente conferido pela Psicologia Analítica contemporânea, na fundura do derradeiro patamar do inconsciente colectivo (claro que acolá, milénio e meio atrás, era tanto o Deus em si como o Deus em nós, sendo que aquele permanece sempre como o eterno inesgotável, inacessível em definitivo, portanto: a prova experimental é a das manifestações no mundo sensível, não no mundo vivencial de nossa interioridade, muito menos para além dela).

                   O curioso é que isto, intuído e explicitado no Ocidente (mais precisamente, em África: Sº. Agostinho, bispo de Hipona, na actual Tunísia), é onde radica a espiritualidade universal do Oriente, quaisquer que sejam os pendores: tudo é dotado de espírito, de vida interior – nós, os animais, as plantas, a Terra, o Universo. Todos somos afloramentos desta realidade íntima que tudo permeia, desde os múltiplos deuses do politeísmo hinduísta à espiritualidade difusa, indefinida do Budismo, Xintoísmo, Taoísmo e assim por diante. E é em virtude da vaguidade e indefinição que qualquer conceito de Deus finda secundarizado, preterido. Pela mesma razão fica difícil descobrir e assumir um eu como sujeito protagonista duma vida, ficando tudo diluído numa reencarnação indiferenciada, confusa, em que se não distinguem campos diversos na complexidade de nossa vida interior.

                   Não é, todavia, tanto assim. Predominando embora a indiferenciação sincrética, a verdade é que até no politeísmo hinduísta há um deus dos deuses que nestes manda, tal como no antigo Olimpo greco-romano. O que o aproxima do Deus com os anjos e demónios que lhe estão indefectivelmente subordinados, todos integrando o mesmo reino espiritual, divino por excelência. Todas estas divindades subalternas são representativas de características humanas ou forças da natureza e não anda longe da múltipla legião que nos habita a interioridade e que temos de gerir a contento, no contexto das surpresas do meio ambiente, próximo e planetário. São mais divergências de tónicas e de linguagens do que diferenças de fundo.

                   Como as palavras são mera criação humana para serem instrumentos de comunicação, não vale a pena discutir sobre elas: importa é saber em que sentido estão a ser utilizadas, aceitar tal uso e partir daí para o diálogo, partilhando quanto for substancialmente pertinente. O mais é perder tempo, desperdiçar oportunidades, esbanjar vida.

                   Temos aqui, portanto, um enorme campo de partilha entre mundos, em prol dum mundo uno e múltiplo de alcance planetário.

                  

                   Já vai longa a conversa. Aonde a reencarnação nos pode levar! Espero ter ajudado nalguma coisa. Pergunta sempre quando quiseres, o que eu souber contar-to-ei. E muito obrigada, porque isto me ajuda deveras a arrumar as ideias. Não imaginas quão grata te fico!

                   Para todos vós, os melhores votos da Sofia.

 

 

                   Chão de Vivos, 1 de Julho de 2018

 

                   Caro Luís:

                   Não comungas da ideia, já perfilhada por Platão há dois mil e quinhentos anos, de que cada indivíduo reencarna constantemente até se purificar, terminando fundido com a divindade, sem mais ter a ver com este mundo. É a crença multimilenar de todo o Oriente, ainda hoje em dia, e compartilhada pela generalidade dos meditadores e do movimento Nova Era, em todo o Ocidente. Mas causa-te engulhos, não é?

                   A mim também. Mormente quando crêem que, se alguém se portar mal em vida, então reencarnará num ser inferior, num animal qualquer, numa planta, sei lá... Rio-me disto como o contemporâneo de Pitágoras se riu dele, ao escrever a sátira em que conta que o vira a chorar por reconhecer um amigo morto no ladrar dum cão! Que raio de amigos mais rasteiros teria o grande matemático!

                   Perguntas hilariante que indivíduo terá sido tão perverso para reencarnar no enorme pinheiro que tens aí diante do escritório. Boa! Só dá para rir, não faz sentido nenhum!

                   Ficas perplexo quando Alison Dubois (com o dom de ler a mente dos criminosos e que por isso colabora com a polícia criminal, desvendando uma série de casos insolúveis) remata cada episódio da série televisiva “Medium”, inspirada na actividade dela, remetendo os assassinados para a Luz onde se dissolvem. E pronto, fica tudo resolvido, não sabemos mais deles! Sentiste o mesmo quando leste, no “Voo Sensitivo”, que Alexandra Solnado enviou para a Luz a amiga de infância de Jesus (que a acompanha desde o nascimento) e, uma vez conseguido isto, não há mais problema, foi-se embora de vez. Parece que emigram sem notícias. Ou então desintegram-se, assimilados pelo Nirvana, como a gota de água no oceano, metáfora muito querida e comum a toda a cultura mística do Oriente.

                   O que te causa perplexidade é que depois lês e vês na televisão, entre outros, John Edwards a partilhar recados e comunicações de falecidos com familiares e amigos e, todavia, estão os mortos todos bem, não são condenados a viver num inferno qualquer. E partilham da vida de toda a gente do lado de cá, mormente dos mais íntimos, com quem chegam a interagir fisicamente e a brincar. Por falar em brincar, divertes-te com Teresa Caputo (por livro e por episódios televisivos) porque ela faz tudo em clima de divertimento, quando põe em interligação mortos e vivos, em qualquer conjuntura do cotio, mesmo as mais inesperadas e, porventura, inadequadas. Chega a ser cómico (o que tem o condão de irritar a tua filha, não é?).

                   Aliás, referes que Teresa Caputo, a medium de Long Island, é a única destes mediadores que confessa recusar-se a mediar comunicações negativas que também lhe vêm de Além: ou é construtiva e gratificante ou ela não lhe dá voz, não quer nada de negativo do outro lado. E avisa os falecidos disso, antes de os pôr em contacto com os vivos, como mediadora. Todos os mais indivíduos que têm e usam este dom agem decerto como ela. Por isso nos parece que está tudo no Céu, o que não é, portanto, a verdade inteira. Há um outro lado que é por eles silenciado propositadamente. De qualquer modo, contudo, as almas não desaparecem, nem na Luz nem na escuridão. Andam aqui com toda a gente, seja numa condição, seja noutra.

                   Relembras bem a visita de Lorna Byrne (“Os Anjos nos Meus Cabelos”) à casa da escuridão, ocupada por um espírito terrífico que a pôs tão em pânico que ela nem tentou comunicar com ele nem reencaminhá-lo: foi fugir e mais nada! Isto recordou-te um episódio reconstituído para televisão acerca duma casa assombrada por um assassino serial que nela fora abatido num cerco da polícia. A limpeza da moradia por um meditador demorou horas porque o assassino resistiu e tentou agredi-lo, ingloriamente (claro, não tinha corpo nem armas, não é verdade?). No fim, exausto, o exorcista confessou a tremenda dificuldade daquele confronto e mais: que tinha conseguido que ele abandonasse a casa mas não garantia que não retornasse, tão renitente e agressivo se lhe revelara. Por outro lado, ao invés deste, Alexandra Solnado reencaminhou para a Luz os suicidas judeus da fortaleza de Masada que resistiram até quase ao derradeiro (duas sobreviventes) ao domínio romano, apesar da perplexidade que isto lhe causou: estava convicta, como é crença generalizada entre cristãos, de que o suicídio praticamente não tem perdão (é uma teoria platónica que se vulgarizou em todo o mundo ocidental como se fora revelação divina, aqui peremptoriamente negada). Intui então que o pior são os espíritos egípcios presos à crença de que serão imortais enquanto a múmia se não desfizer: tão agarrados andam a ela há milénios que não há quem os reencaminhe para a Luz.

                   Todos estes é que teriam de refazer ciclos de vida para ascenderem a espiritualidade mais depurada? Apenas estes? Os restantes, não, que já subiram mais alto? Nada disto bate certo: convivemos, afinal, com eles todos.

                   Creio que há outro entendimento possível para sanar as contradições.

 

                   1 – É crença generalizada entre cristãos de que há quatro estados após a morte: o céu, o limbo, o purgatório e o inferno.

                   O céu é dos santos que aí vivem felizes para a eternidade, na plena comunhão com Deus. O limbo é das crianças que morrem sem baptismo, nem feliz nem triste, uma espécie de estado de suspensão indefinida. O purgatório é um inferno temporário, lugar de sofrimento até a alma se purificar de seus pecados e trepar rumo ao céu. O inferno, finalmente, é a condenação eterna, onde não há remissão. Este é o esquema vulgarizado.

                   Entretanto, a crença no limbo foi caindo em desuso, à medida que cada vez mais gente foi tomando consciência de que aquilo era colocar Deus (e o mundo espiritual) nas mãos arbitrárias do acaso ou na dependência do que faremos ou não. É um deus à trela, comandado pelo pulso prepotente dos humanos. É o espírito comandado pela matéria animada pelo espírito. Há claramente aqui uma inversão de prioridades e valores. É a eterna confusão fisicalista de que temos o céu na terra e, portanto, a terra é que é o céu e ele não tem mais autonomia nenhuma perante os nossos ditames. Nós é que mandamos em Deus, não o contrário e ai dele se nos não obedece, que o crucificamos de novo no Calvário! Não são apenas os contemporâneos de Cristo que cometem esta asneira, cometemo-la todos, pelos milénios fora, em mil e uma frentes, individual, colectiva e institucionalmente. O “Grande Inquisidor” de Dostoievski não é uma lenda, infelizmente.

                   É o mesmo desvio que leva S. Francisco Xavier a baptizar massivamente hindus e japoneses, sem que isto implique qualquer conversão de vida à amorização universal. Como “fora da Igreja não há salvação”, toca de os meter todos cá dentro, de qualquer maneira. Nem reparam que isto é confundir e trocar Igreja por instituição eclesiástica, esvaziando o corpo místico de Cristo, a comunhão fraterna e solidária entre humanos (crentes ou não, é indiferente), reduzindo tudo ao formalismo duma organização legal.

                   O esvaziamento da vivência espiritual e da correspondente exigência permanente de reconversão (a caminhada ao Infinito é infinita, seja qual for o grau de aproximação atingido), concentra um poder tremendo nas mãos das hierarquias de poder: elas é que então salvam ou condenam. Arvoram-se, ao fim e ao cabo, como o tribunal de Deus (não é só o Sinédrio judaico, são todos os sinédrios da história, crentes ou ateus).

                   É o declive que leva directamente a reivindicar todo e qualquer poder temporal, já que é divino. É a pretensão da Cristandade (com as guerras de religião, as Cruzadas, a Inquisição, os autos de fé...). É o Califado Islâmico (com todos os crimes feitos virtude em nome de Alá...). É o Estado Judaico (como evitar a discriminação religiosa, o ostracismo racista?...). É o Tibete, com o Dalai Lama como reencarnação suprema e acabada do Espírito (então e o resto do mundo e os restantes humanos?).

                   Como fruto espúrio e discreto deste pendor de corrupção, o limbo caiu em desuso. Os bebés e crianças morrem em comunhão com o Universo e nesta comunhão se mantêm do lado de lá da vida. Como, aliás, qualquer animal ou planta, solidários como ficam permanentemente com a respectiva marca no Cosmos, qualquer que ela tenha sido (aqui não há baptismo nenhum, ninguém se lembrou!).

 

                   2 – Restam o céu, o purgatório e o inferno. Quanto a este, Dante, na “Divina Comédia”, colocou-lhe à entrada o lema: “vós, os que aqui entrardes, perdei de vez toda a esperança.” É a marca da condenação eterna. Só que isto levanta problemas insolúveis.

                   Se há um Diabo eterno contra um Deus eterno, então há dois deuses, logo, nenhum deles é Infinito, nenhum é Absoluto: não é, portanto, deus nenhum. O dualismo persa esbarra sempre neste muro intransponível. O maniqueísmo, historicamente sempre renascente, o mundo do Bem contra o mundo do Mal, enferma da mesma letal fragilidade. Não logra nunca logicamente sustentar-se. Mas poderíamos conviver com esta dualidade, como os actuais crentes nela, não fora isto contrariar a nossa estrutura de ser.

                   É que a nossa inata apetência de Infinito não é nunca do infinitamente mau mas do infinitamente bom. Isto, que na vida emocional é assim, tem uma correspondência idêntica na vida intelectual. A razão humana, por natureza, cria pontes, unifica os díspares e contrários, reduz sempre o múltiplo ao uno. Enquanto restarem dois, ela não descansa enquanto os não harmonizar, encontrar o traço de união que os torna um único todo. Curiosamente, o nosso agir procura infatigavelmente a paz perpétua: de mim comigo, com os outros, entre países, no mundo inteiro e para sempre. Embora um fito mais ou menos frustrado permanentemente, a verdade é que ninguém busca como ideal a guerra perpétua. Isto é o que os pré-socráticos da Grécia clássica resumiram na fórmula lapidar: “tudo é Um”.

                   O Universo assim nos fez: como é que ele pode ser dual? Nem sequer o podemos conceber como tal: repugna à razão. Só nos pode ter gerado assim porque é assim. Só podemos conceber Deus como Uno. Então que raio é o inferno?

                   Confrontado com isto, já Sº. Agostinho (séc. V) propôs que apenas o Bem é realidade, tem substância. Chamamos mal a uma ausência dum bem qualquer, ao vazio deixado. E também é a falta dum bem maior, quando ocorre um menor. Se prolongarmos o raciocínio agostiniano, então é sempre este segundo caso: mesmo no crime mais hediondo, num holocausto, numa purga racial ou religiosa ou noutro qualquer de idêntico teor, há sempre um minúsculo bem remanescente: o poder e a liberdade de escolha que estão a ser (mal) aplicados, a existência, por último, dos que erram e que bem poderiam protagonizar outro rumo. Num cataclismo cósmico é o mesmo: o mal para os dinossáurios foi o nosso bem.

                   Esvaziado de qualquer substância, que é que resta do inferno? Nada.

                   Ora, é isto que defende justamente o teólogo Hans Urs von Balthasar (“Só o Amor é Digno de Fé”). De facto, se Deus é o Amor Infinito que do íntimo do Universo o sustém como descomunal ser cósmico, bem como todo o seu dinamismo até cada ser individual, na dimensão invisível, meramente vivencial, que é a interioridade de tudo, então o próprio diabo não é mais que uma manifestação disto. Também ele é um afloramento do Amor que o que quer que seja, afinal, exprime: “os céus proclamam a glória de Deus” – já lá canta o Livro dos Salmos (S. 19). O inferno, portanto, não pode prevalecer contra o Amor, porque não é nada, nenhum afastamento do Espírito poderá ser eterno, qualquer ser só se realiza no trilho da espiritualidade e o que quer que efectue é já espírito a caminho: basta ser para já ser Amor. O diabo, como eterna e completa ausência de Amor, é o nada, não chega a ter ser – não existe, portanto. Todos os condenados estão, por conseguinte, a caminho e poderão qualquer dia plenamente realizar em si o projecto universal do Amor Infinito, do Espírito que anima o Cosmos inteiro e cada ser individual dele.

                   O conceito de inferno é, portanto, uma hipérbole (exagerada ao infinito) daqueles que se recusam indefinidamente a pôr-se a caminho, como os egípcios mumificados, milenarmente agarrados à múmia e nem para trás nem para diante, como o burro teimoso no meio da ponte. Claro que isto pode teoricamente eternizar-se mas é um mero fruto dum equívoco que, a qualquer momento, pode clarificar-se e ser posto de lado. O alcance de fatalidade definitivamente irremediável (implícita no conceito) não existe de todo, portanto. Logo, não há na realidade inferno nenhum. Jesus Cristo, diz o credo, “desceu aos infernos e ao terceiro dia ressuscitou dos mortos” – logo, ninguém tem de lá ficar preso para a eternidade. Só se quiser aí vegetar... Não lhe louvo o gosto!

 

                   3 – Resta-nos, portanto, o céu e o purgatório. Isto, porém, tem muito que se lhe diga.

                   A “visão beatífica” dos santos, ver Deus face a face, é liminarmente recusada nas leituras de Neal Walsh (“Conversas com Deus”). Não é nada disto que ocorre após a morte, mesmo ao mais santo dos santos, de acordo com a revelação que ele tem: o itinerário do desvelamento é gradual e prolonga-se ao infinito. É novo e outro todos os dias. Mais: é definitivamente inesgotável, portanto nunca mais tem fim. Não há jamais nenhum face a face com ninguém: tudo é, no melhor dos casos, uma itinerância arrebatadora interminável. É uma viagem turística ao Infinito que continua tão Infinito como sempre. Isto tem outro efeito inesperado: não há visão exclusivamente contemplativa, todo o contemplar é agir, melhor ainda, é criar. A paisagem que extasia o turista interminável é também produto do empenhamento dele em concordância com o dinamismo do Espírito Cósmico a que se entregar sem reservas (na melhor das hipóteses). É um engenheiro paisagista do Universo que tanto é arrebatado por toda a obra fabulosa doutrem com que comunga, como entra entusiasmado na aventura de reinventar tudo e todos, à escala planetária e cósmica, em conformidade com a inspiração com que a Grande Luz perenemente o estimula e alimenta. Deus não é paragem, é movimento. E não rumo a uma qualquer meta longínqua, não: cada gesto cria uma obra-prima, cada acto é uma infinidade de amor compartilhado, cada passo abre a porta a uma iluminação deslumbrante que todo o mistério clarifica. E é assim ao infinito, perenemente inesgotável.

                   Têm, pois, toda a razão os que afirmam que não há céu nenhum com tudo perfeito e acabado: ali, afinal, toda a gente morreria de tédio. Que grande seca! Este céu, que é o que se generalizou entre a multidão dos crentes, de facto não é nada. É como uma mera superstição conceptual, mais um ídolo a abater. Fez a sua época e acabou.

                   Provém da projecção do ócio requerido na vida para filosofar, como referia Sócrates, há dois mil e quinhentos anos atrás. Ele que morreu em paz, envenenado com cicuta por uma decisão legal da cidade, crendo que ia finalmente encontrar-se com os sábios que o esclareceriam de quanta dúvida lhe escurecia a vida. Nunca lhe passou pela cabeça que o esclarecimento, embora em constante plenitude, cobriria um itinerário eterno, ainda por cima eternamente renovado.

                   E aquele céu estático sempre correspondeu ao ideal inatingível de quem vive no limiar da sobrevivência, em permanente stresse, constantemente esgotado. Poder finalmente parar, recuperar energias, descansar, sem mais aguilhões de fome, de doenças, de ameaças da natureza, de animais nem de inimigos – que céu mais bendito! Ora, tal condicionamento sempre se verificou e ainda infelizmente verifica com a grande maioria da humanidade. Daí o acolhimento àquele céu acabar universalizado e multimilenar. É, porém, uma idealização da ultrapassagem dum constrangimento da maior parte do povo humano, mais nada. Nem sequer tem em conta a propensão radical da energia íntima em todos os domínios como em todos os indivíduos (os excluídos mais os privilegiados): a apetência de infinitude, também no âmbito do poder de agir e de criar.

                   Aliás, nunca o céu poderia ser do modelo vulgarizado. Então não é verdade que Jesus Cristo se desdobra diariamente em mil e uma tarefas para salvar os humanos de escolhas reprováveis e maléficas (Alexandra Solnado, “Luz”)? Não fica para ali estático, numa visão beatífica qualquer, é eminentemente activo e interveniente. E os anjos da guarde será que estarão em greve, refastelados a gozar a face do Eterno? Se nos acompanham e estimulam permanentemente, que céu era então o deles se o céu fora aquilo (Doreen Virtue, Lorna Byrne)? Seriam era mesmo uns grandes condenados. E os santos de que invocamos ajuda e nos correspondem? Deveriam era atirar-nos com a porta na cara, estaríamos a perturbar-lhes a felicidade perpétua.

                   É assim em todos os pendores e com todos os que vivem do lado de lá da vida. Estão imbricados com o lado de cá de mil e uma maneiras, tantas e tais que nem logramos imaginá-las. São o infinito desdobramento da interioridade do Universo, cuja intimidade é Deus (o Deus que é o mais íntimo que o meu íntimo). Um Deus abscôndito não é um Deus alheio a nós, é apenas inabarcável pela nossa pequenez. E, se Deus é alma do Universo, por sua vez corpo dele onde ele se manifesta, como é que os espíritos, meras faúlhas de sua fogueira infinita, poderiam andar ausentes, enclausurados num céu hipnotizado qualquer? Um céu de alheamento não é um céu, é uma palermice.

                   O Amor é eminentemente activo: unifica permanentemente todos com todos e com tudo. Deus é isto. Como é que o mundo espiritual que dele emana poderia ser doutra maneira?

                   E pronto, quanto ao céu estamos entendidos: é outra realidade, infinitamente mais fascinante e provocadora. E mesmo esta leitura quão longe ainda andará da factualidade!

 

                   4 – Parece que agora temos de dar cabo do purgatório, não é? O entendimento comum é que é um estado de expiação temporário, para remir os pecados, até a alma se purificar, ascendendo então à plenitude da comunhão com Deus.

                   Este estádio final, enquanto de vez acabado e definitivo, já vimos que não existe. Tudo está, todos estamos, cá como lá, permanentemente a caminho.

                   Então nunca se atinge a plenitude? Atinge, sim. Ainda por cima, permanentemente. É que uma coisa é viver em pleno as próprias potencialidades, outra inteiramente diferente é esgotar a infinitude de Deus. Esta é impossível, aquela é exequível. O santo que plenamente santo for vivencia tudo até ao limite das respectivas potencialidades e capacidades. Não as pode exceder porque não tem mais nem outras, não as verifica frustradas porque a cada momento se realizam integralmente. Mas constata simultaneamente a inesgotabilidade do Infinito que o alimenta e renova interminavelmente. A todo o momento o santo é diferente do que foi, mas sempre em pleno, não resta nunca nada por efectivar do fito de sua energia, em qualquer que seja o domínio.

                   É aqui que ele é transparente a Deus, membro executor fiel dos desígnios do Infinito. É tão Deus nele próprio que os orientais conceberam o Nirvana como a dissolução do sujeito no Espírito do Universo. É-o no sentido de que o indivíduo não preserva nada em si que não seja o projecto divino, nada o diferencia, nada o distingue. Apenas resta que é ele que o vive, é o Espírito Universal nele, não o Espírito em si, independentemente dele. Ele é tão ele próprio como jamais antes de atingir tal nível de qualidade. Aliás, é doravante plenamente ele mesmo, um eu em si como nunca o poderia ter sido noutras anteriores circunstâncias, sempre nalgum nível alienadas de sua própria matriz, o Espírito do Universo. É doravante a janela aberta à paisagem do Infinito, a fonte rasgada na rocha donde borbota a energia da eternidade permanentemente.

                   A dificuldade do acolhimento desta abordagem deriva directamente do erróneo conceito de perfeição que o mundo inteiro herdou da Grécia clássica: perfeito é o que é completo e acabado nele próprio, duma vez por todas. Daí a simbolização pela circunferência: a linha equidistante do centro, em si mesma fechada. Ali parada de vez, fixa para a eternidade, definitiva.

                   Foi isto que levou à condenação à morte de Galileu (séc. XVII): a Lua, um ente celestial, portanto perfeito em seu círculo, nunca poderia ter montanhas e vales, logo irregularidades, como mostrava a luneta galilaica. Isto só poderia ser obra do diabo que nela punha tais anomalias para nos ludibriar. Galileu, como porta-voz impenitente do demo, só poderia ser, pois, condenado. Parece uma anedota, não fora o facto de ter sido real.

                   A perfeição é uma proposta inteiramente distinta: é a perene equilibração dinâmica de todos os factores vitais, rumo à realização em plenitude de todas e quaisquer potencialidades, naturais e humanas. É uma interminável peregrinação rumo ao Infinito, definitivamente inalcançável, permanentemente aproximável.

                   É assim antes da morte. Depois da morte é o Infinito definitivamente alcançável mas permanentemente inesgotável. Para os eleitos, é definitivamente alcançado, permanecendo inesgotável indefinidamente.

                   Parece simples e óbvio. Qual então a dificuldade em acolhê-lo e generalizá-lo? É que há milhares de anos andamos a cometer crimes e asneiras em nome da mentalidade tradicional, conscientes ou não da teoria de perfeição que lhes subjaz.

                   As perseguições religiosas de hoje e de outrora são-no porque alguém considera que atingiu a fé perfeita e, portanto, dá cabo das demais para acabar com a imperfeição.

                   Os Estados confessionais de hoje e de outrora são-no porque crêem deter a verdade religiosa acabada para todo o sempre. O império dos mil anos anda constantemente na cabeça deles, há milénios, e, por mais que a história os contradiga, voltam permanentemente a renascer.

                   As ditaduras nazi-fascistas e comunistas, todas tinham a verdade perfeita na mão e em nome desta asneira massacraram a humanidade.

                   Assim continuará a ser enquanto aquele conceito não for mondado de vez das ervas daninhas de todas as culturas e substituído pelo mais realista e humilde da permanente procura da livre harmonização consigo, com os outros, com o mundo inteiro, cada dia a ter de refazer-se, reinventar-se, reformular-se mais e mais, num itinerário ao infinito. E que é tanto do lado de cá como de lá da vida.

                   O purgatório como expiação temporária é um derivado da velha mentalidade da perfeição estática. O purgatório era imperfeito desde logo porque implicava mudança. Isto, para aquela concepção, é sinónimo de imperfeição. Ora, como vemos, não faz sentido. Ir permanentemente à aventura, com os olhos maravilhados de descoberta em descoberta, isto é que é do Deus de Amor, isto é que é Vida. Isto, a viver-se perenemente em plenitude, é que é a perfeição.

                   E ao sofrimento da expiação temporária? Também não se lhe encontra lugar. É um entendimento derivado da vida em stresse da maioria da humanidade, em que qualquer tentativa de repouso é punida, quer com um castigo, quer com uma carência e um risco aumentados. E, portanto, urge continuar a lutar pela vida num sofrimento sem esperança, interminável. Aqui, no trabalhador esgotado, é que tentar sobreviver é uma dor permanente que até pode levar à morte, como é norma no mundo concentracionário (no Gulag soviético como nas câmaras de gás nazis). Neste contexto é que todo o trabalho é uma pena e cumpre a condenação de Adão e Eva: “comerás o pão com o suor do teu rosto” (Gén. 3, 19).

                   Não é nada disto que sente o cientista quando a investigação culmina com uma descoberta. É euforia. E é o mesmo quando o pintor, o escultor, o escritor, o arquitecto... - coroam o itinerário com uma obra acabada. É igual com o agricultor na época das colheitas, é a adiafa da boa safra. Até o vosso obstetra, ao que me contas, vos narrou, aquando do nascimento dos vossos filhos, que a experiência constante dele era que as parturientes se queixavam: “não quero mais isto, é a última vez...” E, mal o bebé nascia, comentavam: “Snr. Dr., da próxima vez...” – e ele já não queria ouvir mais nada e desatava a rir. É assim permanentemente em tudo.

                   Todo o esforço, todo o sacrifício para alcançar um ideal é tudo menos sofrimento: é a alegria antecipada da festa final. Por isso é que vale a pena. O treino dum campeão olímpico, a vigilante disciplina dum campeão mundial são expiação temporária? Andam a expiar o quê?! Nenhum deles sente nada que se pareça, pelo contrário: vivem na expectativa da vitória e cada degrau em tal rumo a antecipa. É uma alegria permanente, premonitória da explosão eufórica do fim. Pode custar muito, implicar imensa dor, pode até pagar-se com a vida, mas é a alegria final visada que justifica tudo, que compensa e é muito melhor que o custo daquilo, por isso se arrosta com todos os perigos e riscos e os pagamos logo sem pensar duas vezes.

                   A leitura desviada do purgatório (até o termo é desviado: quem é que é doente para ter de se purgar?) é uma projecção e simultaneamente projecta-se em múltiplos pendores da vida. É o “vale de lágrimas” em que vivemos, nós, os “degredados” na Terra (como é que os privilegiados de todos os tempos e lugares se revêem nisto? Tivemos de inventar que é assim por contraste com a beatitude do céu...). Faz-me lembrar as palmatoadas que apanhámos na escola primária, cada erro, uma. E contavas-me da tua vizinha Clara, em criança tratada permanentemente à bofetada, como tantos, País e mundo fora. Conheci bem as tuas aulas como conheço os teus filhos: nunca precisaste de nenhum estímulo negativo para educar, antes todos foram sistematicamente positivos: foi sempre pelo entusiasmo, pela celebração das vitórias, pelos ideais nas metas a atingir. E que resultados tão à frente dos mais! E que festa de vida foi tudo permanentemente! Para ti e todos eles, não é verdade?

                   As ideias deturpadas não são indiferentes, têm, como as outras, muita força: dão-nos cabo da vida. E dão-nos cabo do purgatório, claro.

                   Deus não tem palmatória à mão, nem sequer sabe ou pretende castigar. Pelo contrário, quer é premiar com a felicidade inefável da comunhão integral. Durante a vida inteira sugere a cada um, no segredo da intimidade, o melhor itinerário para atingi-la. Das escolhas de cada qual depende o resultado: umas acertam, outras desviam, outras recusam, outras contradizem. O balanço final deste imbróglio é o que o indivíduo leva para o lado de lá, quando se integra de vez no Espírito do Universo. Nuns aspectos em harmonia com ele, noutros nem tanto, noutros de costas, noutros eventualmente ao contrário. Acolá em plena comunhão feliz, aqui no isolamento da solidão. Deus não faz de facto nada: cada qual escolhe o que quer em cada pendor e é o que tem: se quer o Amor, partilha o amor com toda a euforia que lhe é própria; se não quer, Deus respeita-lhe a vontade e o afastamento, mantendo-se, todavia, disponível incondicionalmente para quando mudar de opinião, eventualmente. E em todas as graduações é assim. Aqui, no mundo, cada um talha o próprio destino; lá, talha a própria condição. Cá e lá, Deus limita-se a atrair e premiar. Castigos? Não: o que castiga e bem é a falta de atractivo dum estado qualquer, a ausência da gratificação da plena comunhão amorosa. E é tanto mais violento quanto aquilo que faltar for mais feliz, mais eufórico, mais maravilhoso, mais inefável. Isto é que pune, mais nada.

                   Deus só premeia. Se não há prémio, é que o caminho não levou até Ele, terminou num vazio solitário. E andamos perdidos nesse descampado, em tal vertente de vida.

                   A psicologia experimental logrou identificar o reflexo disto na estrutura do nosso comportamento (e no dos animais igualmente). Skinner (“Walden II”) descobriu as leis de como modelamos as respostas em função de prémios aguardados (condicionamento operante) e de como isto é incrivelmente mais eficaz do que educar através de castigos. Foi tão longe que, quando condicionou um pombo, em plena II Guerra Mundial, a corrigir na quadrícula o tiro dos canhões do navio onde era oficial e o iria conseguir rapidamente com precisão instantânea (quando eram precisos morosos cálculos então para tal acerto), os comandantes o recusaram porque isto só poderia ser obra do diabo! Teve muita sorte em não o condenarem à morte, como outros haviam feito a Galileu com o mesmo argumento. Hoje em dia é tudo aplicado nos jogos de computador, nas redes sociais, nas técnicas de venda, nas campanhas eleitorais, no ensino programado, na didáctica activa...

                   Ora, Deus sabe muito mais do que todos os skinners deste mundo. E é certamente infinitamente mais eficaz ainda.

                   Este é o purgatório aonde eu consigo por ora chegar no meu entendimento. Haverá para além muito mais e mais fascinante, como é óbvio. A minha pequenez dá para o que dá, pobre embora, mas aponta já estes vagos vislumbres, para mim de sentido deslumbrante.

 

                   5 – Como é que então corre a vida para além da vida? O Infinito é eternamente inesgotável, mas na vida terrena é aproximável indefinidamente e, na vida posterior, é atingível pelos que forem ainda a caminho e atingido em plenitude pelos que a ele se tornarem finalmente transparentes, irradiando a inspiração e energia infinitas por todos nós e pelo Universo inteiro. É o Amor infatigável que do baú das surpresas tira a cada momento prendas novas, distribuindo-as a rodos. Em sintonia perfeita, finalmente, Deus e o santo. É a meta final onde a verdadeira corrida, em vez de findar, principia: é o deslumbramento do Espírito em acto, revolvendo o Cosmos, no todo, em cada astro, em cada ente individual, em cada partícula... É nisto que o Universo inteiro manifesta a glória de Deus: é ele agindo, interioridade que se revela no corpo cósmico. E com Ele, nele, todo o eleito, em plena sintonia.

                   Até chegar aí há um caminho a percorrer. E pode-se ficar parado algures, temporária ou indefinidamente. Cada um escolhe o rumo, em cada domínio da respectiva interioridade. Vai até ao fim num, fica a meio noutro, bloqueia-se num terceiro...

                   Lembras-te da Silvina, dos antigos tempos de Coimbra? Numa dramatização de “O Anúncio Feito a Maria”, de Paul Claudel, comoveu-se até às lágrimas de emoção religiosa, com a mensagem do grande poeta e dramaturgo católico. Pois ficámos depois a saber, pela biografia dele, que nas relações humanas era um homem intratável. O espírito dele comunga decerto com Deus na arte poética e dramatúrgica com que o vislumbrou, solidário com quantos hoje inspira, iluminando-os com fagulhas do Espírito do Universo. Se aqui atingiu a plenitude eventualmente, nos laços humanos restar-lhe-á porventura uma caminhada a empreender quando quiser. Neste pendor não estimula ninguém para a plenitude, será um tropeço, já não é porta-voz de Deus mas dos limites ou deturpações que tiver, a meio caminho do amor incondicional a que se orienta a comunhão humana.

                   Na interioridade que compartilhar com alguém, será um modelo pobre que lhe trará para os relacionamentos, na expectativa de juntos lograrem ir cada vez mais longe, até ele se fundir com a infinitude do Amor Cósmico e daí continuar então a atrair quem for seu parceiro peregrino. Até lá terão ambos de ir aprendendo e reformulando, com a festa derradeira adiada neste pendor de vida. Não lograrão vivê-lo em pleno até à última reconversão. A partir daí, sim, ele, vivendo a integralidade do amor humano, sempre a caminho, atrairá todo e qualquer caminheiro do lado de cá para a esfusiante romaria da partilha da ternura infinita. E as aproximações à Infinidade continuarão indefinidamente, por parte de nós deste lado, em particular de quem com ele é solidário e com quem ele partilhar a personalidade.

                   Só que ele tem de o querer e o indivíduo de cuja interioridade compartilha tem de operar as mediações correctas, adequadas ao rumo à plenitude. Doutro modo nunca mais ultrapassa o estado em que estiver. É que ele não manda nunca no eu de cuja personalidade faz parte: o eu de cada um é que manda e determina o que fazer de cada propensão que em seu íntimo constata, para bem ou para mal. Até na possessão diabólica o eu nunca perde a autonomia: por isso pode sempre ser resgatado. Tudo irá depender dele, das respectivas escolhas, portanto. Antes, porém, o espírito de além tem de decidir o que quer, senão mantém-se alheado, estranho a tudo e todos. Todavia, vivendo sempre por aqui. Não num outro mundo, que é inexistente. É na intimidade deste, queira-o ou não, que nisto não tem escolha: é-lhe imposto o facto de existir, nas condições que o Universo que o criou determina, em termos absolutos. Neste aspecto não existe alternativa.

                   É o que deriva da permanente visão de tua vizinha Inês, nascida com essa faculdade de os ver a todos, aos falecidos, mesmo em vigília, no decurso da vida normal. Não admira o medo que tinha em criança de olhar para o teu terreno, cortado como é por um antigo trilho de escravos que ia dar à Casa da Aroeira: estes continuam a vadiar por aí aos montes. Qualquer criança ficaria aterrorizada: só ela os vê e mais ninguém e são uma multidão de miseráveis desnutridos, rotos, descalços e sujos... Para uma miudinha, que incómodo e que medo! Felizmente tem desde que nasceu a companhia da Maria Teresa, a criança espiritual que toda a vida a acompanha, com quem brincou desde bebé e que opera como o anjo da guarda dela, o permanente refúgio e inspiração para todo o rumo de vida que vai protagonizando, agora já como mãe e profissional de restauração em Inglaterra.

                   Verificamos nela o efeito das escolhas do lado de lá: os escravos continuam vadiando pelo pinhal há séculos e nem para trás nem para diante em termos de mudar de vida. Interiorizaram tanto a escravidão que não há maneira de se libertarem dela e crescerem na comunhão com a Infinidade. Em contrapartida, a criança anjo da guarda faz-lhe companhia (a Inês nem se importava de ficar sozinha no lar, em miúda, porque ia brincar com a Maria Teresa, como dizia sempre à mãe). Ora, este espírito infantil vive agora com ela a vida terrena que nunca pôde viver enquanto menina humana duns sete, oito anos, altura em que terá morrido. Doravante acompanha, inspira, fortalece e ajuda a resolver a vida inteira duma adulta, a protagonizar um lar, uma profissão, uma vida comunitária, uma função maternal – enfim, uma vida em todas as vertentes. Crescem ambas interiormente em conjunto, a caminharem rumo ao Infinito, uma como um eu, a Inês, a outra como tendências e ideais no íntimo partilhados, a Maria Teresa.

                   É curioso com quantos cambiantes isto opera. A tua filha, quando aí medita, encontra os escravos a tentarem refugiar-se dentro de casa, nos recantos, escondidos, por trás das traves... Quando os convida a caminharem para a Luz, eles recusam-se, agarram-se às madeiras: continuam na lógica do escravo apanhado em flagrante a tentar fugir, não acreditam que a escravatura já findou há séculos nem que alguém os queira ajudar e libertar. Com a continuidade, acabam por ir, mas sempre assustados e de pé atrás.

                   É elucidativo o episódio da varanda em que tua filha os vê em baixo, no trilho, donde se destacou uma escrava com um bebé ao colo. Aproxima-se e atira-lho para os braços para ela o salvar, enquanto a mãe dele como os mais continuam a recusar ir para a Luz. Não crêem merecer tal benefício, a criança, sim. O que a escravatura fez (e faz) a tantos infelizes! Nem sequer se livram dela depois da morte. Do lado de cá como do lado de lá, o livre arbítrio é respeitado integralmente: a escolha faz lei. Aliás, uma meditadora americana narra o episódio em que se depara com o espírito dum jovem vítima de violência doméstica que se lhe recusa a ir para a Luz por temer encontrar lá os que em vida tanto o martirizaram e que, se dão com ele, irão de certeza continuar as sevícias. Então mantém-se escondido em sossego num cantinho protegido. Onde as traições ao Amor nos podem levar, aquém e além da vida terrena!

                   Mas há outras atitudes ainda: a tua filha vê grandes damas com vestes setecentistas a passearem muito senhoris pela rua em frente, acima e abaixo. A grande vida da classe dominante de outrora. Inteiramente indiferentes à Luz, satisfeitas com o próprio estado há séculos, sem abertura para mais longe nem melhor. Aí continuam arrebanhadas no estreito redil de seu pequeno mundo. Escolhem-no, têm-no e não irão mais longe enquanto não mudarem de rumo. Só que, enquanto os escravos sentem temor, elas revelam satisfação acomodada. E as situações variam ao infinito, cada qual vive a sua própria.

                   O outro mundo não é noutro mundo, mas neste: é a vivência da interioridade dele, diferente de indivíduo para indivíduo, conforme as íntimas escolhas de cada qual. Variam num continuum desde o santo que interioriza o projecto divino e o protagoniza no Universo, no mundo, nos outros, em cada um em cujo interior incarna pendores da personalidade; até ao egoísta extremo, refechado no respectivo isolamento, a figura-limite do diabo, e que rejeita violentamente qualquer intromissão na estreiteza de seu ego soberano. Não há camadas, não há estratos, apenas há graus diferentes de comunhão com a intimidade do Cosmos, uns mais distantes, outros mais próximos da plenitude. E todos desafiados, aguilhoados para se porem a caminho, para não pararem nunca, que os prémios compensarão e bem.

                   Também não há lugares de almas, que aqui não existe espaço. Isso é para o corpo. A interioridade não é assim. Por mais ideias que eu tenha, nunca a cabeça transbordará: o saber não ocupa lugar, como dita a popular sabedoria imemorialmente. No domínio da vivência, tudo é apenas temporalidade. E assim como quando mudo de ideias, descubro novas teorias, troco de projectos de vida, me converto a outras crenças... - vivo tudo isto neste meu corpo, não emigro para outro qualquer, assim quem morre continua a viver neste mundo, embora doutra maneira. Não há outros mundos, há outros modos de ligar a este: “na casa de meu Pai há muitas moradas” – já lá dizia Jesus. Poderíamos afirmar que são inúmeras, não faz sentido pretender agrupá-las e menos ainda classificá-las. A cada um a sua, conforme a respectiva atitude. Aqui ou lá, o sujeito é o mesmo: em qualquer relacionamento pode ter a atitude de amor, de ódio, de empenhamento, de indiferença, de raiva, de alheamento, de compromisso, de violência, de apreço, de desprezo e assim indefinidamente. Ainda por cima, sempre a mudar... Após a morte, tudo pende da atitude que tiver: não haverá dois indivíduos exactamente iguais, como aqui em vida. É donde penderá a respectiva ligação à intimidade cósmica, com a marca única que a distinguirá: na morada de cada um não viverá nenhum outro. O Infinito é inesgotável, embora não haja maneira de nos convencermos de vez disto. Daí as tentativas de dividir à régua o que é um continuum interminamente mutável, indefinidamente dinâmico, sem soluções de continuidade.

                   Estou mesmo a ver a tua perplexidade agora: que é que eu fiz do karma (e do darma), permanentemente presentes no entendimento oriental e tão recorrentes no ressurgimento actual da espiritualidade no Ocidente? Não há também nada daquilo?

 

                   6 – O karma é o desvio da comunhão integral com o Espírito do Universo, desvio que finda impresso no mundo, que cada um herda por via genética e cultural e que é interiormente incorporado na sua personalidade por qualquer alma que o protagonizou durante a vida terrena dela. O darma é a comunhão integral com o Espírito do Universo impressa no mundo, que cada um herda por via genética a cultural e que é interiormente incorporada na sua personalidade por qualquer alma que a protagonizou durante a vida terrena dela.

                   O karma é fruto dos actos dum ego cujo sujeito agiu à margem ou contra o apelo íntimo do Infinito nele, preferindo afirmar-se a si e não a Deus.

                   O darma é fruto dos actos dum eu cujo sujeito agiu em conformidade com o apelo de Deus em seu íntimo.

                   Somos todos uma mistura disto sempre, em algum grau, e podemos i-lo transformando permanentemente. É o que marca o itinerário rumo à plenitude: a gradual reconversão dum ego num eu, até devir num Eu no Nós de Deus. A partir daqui protagoniza o plano do Espírito Cósmico e nunca mais um próprio.

                   Agora repara bem: em quantos orientais encontras o conceito de darma? Nalguns gurus indianos e, mesmo assim, esporadicamente. No resto é o silêncio. E cá no Ocidente? Praticamente em ninguém, senão nalgum académico a estudar o fenómeno cultural do movimento Nova Era e derivados.

                   Em contrapartida, o karma inunda tudo e todos, lá como cá. Não há um autor que o não tome como eixo central, nenhum mentor espiritual que por ele se não guie.

                   É o que dá que pensar.

                   O karma é quanto há de negativo em nós, ao redor, na comunidade, no país, no mundo... O darma é o que há de positivo. Como é que todos se concentraram na negatividade? Oriente e Ocidente cometem há milénios o mesmo erro: estimular pelo castigo, motivar pela punição. Foi o Deus dos exércitos veterotestamentário, o inferno no horizonte, o purgatório do sofrimento, o karma de todas as dores. A tónica foi comum. Ora, o medo duma pena nunca foi tão repulsivo como é atractiva a expectativa dum prémio, duma prenda. Aquele leva ao recuo resmungão de má vontade, esta leva à correria entusiástica. Aquela escolha em ambos os mundos gerou, quando muito, o mínimo de perdas, jamais o máximo ganho. Quer dizer, esta própria atitude milenar da crença oriental é um karma nela mesma, requer uma reconversão que jamais foi feita. Ao seguirmo-la, caímos em igual derrapagem. Que é do Deus que é Amor? Jogado ao lixo? Ainda por cima, “ser é amor” (Emmanuel Mounier, O Personalismo) e “tornar-se pessoa é relacionar-se” (Jean Lacroix, Le Sens du Dialogue)...

                   Segundo a crença milenar, todos terão de reencarnar para superar karmas, só findando estes ciclos quando de vez os superarem, na comunhão plena com o mundo divino, como Platão já referia, há dois milénios e meio. Isto implica que reencarnar é um castigo, somos os “degredados” neste “vale de lágrimas”, tanto os vivos como os mortos. Enquanto desviados do plano cósmico do Espírito, metemo-nos em tal beco, dessintonizados da energia universal e respectivos rumos. E quando estamos em acordo? Continua a ser isto? Se o fora, então Deus seria uma projecção dum sado-masoquista qualquer que teria um gozo infinito em flagelar e auto-flagelar-se. Se um doente sado-masoquista se identifica com tal imagem, é lá com ele, mas continua a ser um doente e com isto não se cura, só prolonga indefinidamente a doença. É que os degredados são, afinal, filhos de Deus e o vale de lágrimas é, afinal, terreiro de romaria para toda a celebração.

                   A reencarnação não é, nunca foi castigo nenhum: é o fruto do apelo íntimo à plenitude, é o itinerário para a ressurreição. Jesus ultrapassou os karmas todos que lhe couberam em sorte e culminou vencendo a morte. Foi punido com o degredo terreno por mor dos karmas? Nunca se assumiu como tal em vida e muito menos após ressuscitado: o empenhamento dele com todos e toda a humanidade é para a festa final em plenitude. Isto é que supera todo o esforço, toda a dor, toda a crucifixão. É muito mais fantástico que tais ninharias, é o deslumbramento sem palavras. Como encarar a reencarnação dele em qualquer de nós (há milhares de meditadores que o contactam) como uma condenação ao degredo? Como é que Ele não fica definitivamente no mundo divino, sem andar por cá mais? É novamente o preconceito da leitura fixista (o perfeito como acabado e fechado em si) que já vimos não corresponder à realidade do Espírito do Universo e, portanto, mais uma vez aqui desmentido. Não andamos, por conseguinte, por cá para superar karmas, isto é apenas um mero efeito derivado dum ideal muito mais atractivo. “O Universo sofre em dores de parto à espera da revelação dos filhos de Deus” – já lá apontaria a tradição paulina.

                   Também não é verdade que todos os que tiverem karmas a superar terão de reencarnar. Isto seria outra vez uma condenação, de acordo com a crença tradicional. Os salvos não reencarnariam, o que já vimos que também não é verdade: todo o santo vive entusiasmado o projecto do Espírito do Universo. Não tem é nenhum seu, independente nem aparte daquele.

                   Não há condenação nenhuma, no sentido dum castigo: o castigo é o que a escolha que fizer lhe não trará de fascinante, mais nada. As damas setecentistas que se pavoneiam nas ruas do teu pinhal andam há séculos, pelos vistos, satisfeitas, conformadas com sua limitada situação. E não reencarnam em nada nem ninguém, permanecem aí, naquele estado, indefinidamente, há centúrias, frustrando permanentemente a apetência própria pela infinitude. Com os escravos é o mesmo: embora não satisfeitos, não dão com melhor alternativa, convictos do próprio demérito. É requerido um esforço descomunal para convencê-los. Os das múmias egípcias, então, é há milénios que nelas vivem enquistados e nem para trás nem para diante. Portanto, não são de modo nenhum os maus, os condenados, os réprobos que são forçados a reencarnar como pena pela respectiva perfídia. Bem pelo contrário, são os que já descobriram que há por aí um bem indescritível a conquistar que se jogam na aventura com os vivos, para irem cada vez mais longe na concretização do deslumbramento. É o contrário da leitura tradicional.

                   Quando muito, poderíamos afirmar que os que não se jogam em frente se impõem manter-se em condição inferior (um inferno) e aí ficam indefinidamente, até abrirem a intuição e a mente, qualquer dia. Os demais abrem-se a novos mundos de fruir maravilhas e correm à descoberta e concretização deles (um purgatório doutro tipo), até convergir com o Espírito do Universo e viverem o Céu, de fascínio em fascínio (o Cosmos não pára nunca).

                   A leitura tradicional é um colossal travão ao nosso desenvolvimento e libertação de potencialidades. Mais grave ainda se antolha porque é mundial e imemorial (tanto no Ocidente como no Oriente).

                   A Física de Partículas descobriu que o observador altera o dado observado a este nível: as partículas subatómicas orientam-se em função da orientação da consciência de qualquer um de nós. Se nos fixarmos na negatividade, nos castigos, no sofrimento, em tudo o que nos mói e desgraça, então elas viram para quanto o provoque e aumentam e agravam todos e quaisquer eventos que aprofundem este pendor da vida. De nada importa que o façamos para impedi-lo. O que conta é onde fixamos a mente, sendo inteiramente indiferente se é para o apoiar ou para o rejeitar. O Universo não quer saber disto: segue o trilho da consciência, ignorando o da vontade.

                   A pretexto de combater o mal, andamos, pois, milenarmente a promovê-lo, em todas as religiões e culturas. Até fisicamente, no mundo à volta, como a ciência comprova. Somos degredados num vale de lágrimas porque andamos há milénios a erigi-lo afanosamente, para nossa desgraça. Só pensamos nisso: logo, obedientemente, o Universo entrega-no-lo sistemática a gratuitamente. Nós é que criámos e servimos o inferno à humanidade, Deus não tem nada a ver com isso. Agora até a ciência o sabe, nem é preciso religião nenhuma.

                   O padre puritano de Salém que revive em ti, na tua interioridade, porventura paralisado há quatro séculos por morrer convicto de ser um réprobo imperdoável, não reencarnou em ti por castigo nenhum, mas por vislumbrar uma libertação inesperada por tuas escolhas. Reviveste a escrupuleira dele oriunda duma visão cristã dogmatizada, fixista, dum fanatismo intolerante que enfiava tudo no inferno. Nele como em ti provocou uma úlcera que perfurou e o matou a ele e te levou a ti a uma cirurgia de urgência: sobreviveste sem qualquer sequela, o que para ele é inacreditável, é como um milagre espantoso da vida hodierna. Libertaste-te da visão extremista, culpabilizante, da fé – outro milagre! Mais: lês a espiritualidade de modo bem mais profundo, atractivo, amorizador, sem perder nada da autenticidade da vida interior, antes a projectando rumo a uma infinitude inacreditável – muito mais milagroso ainda! Tens e animas uma família à margem de formalismos e legalismos, centrada na procura permanente de autênticos afectos a revitalizar laços e comprometimentos humanos – como é que ele algum dia poderia imaginar semelhante revelação e libertação íntima? E por aí fora, ele passa o dia a vislumbrar o Paraíso. Isto é que o livrou do inferno a que se condenara e é o eufórico itinerário do (mal denominado) purgatório rumo ao darma de sua própria plenitude.

                   É assim com ele e com a Humanidade inteira. Até os paralisados um dia abrirão os olhos.

                   O mal não se combate, promove-se, em vez dele, o bem – já propunha Dominique Pire, prémio Nobel da Paz, na sua Universidade. Se o praticarmos, o mal cai por si, por falta de protagonistas. Ele mantém-se, não apenas por mor dos que o promovem como negro projecto de vida, mas também por quantos perdem energias e recursos a combatê-lo, em vez de erigirem o mundo novo que seria, no lugar dele, a desejável alternativa construtiva.

                  

                   Que longo vai todo este palavreado! Entusiasmei-me, olha o efeito... Ainda por cima tudo isto deve distar infinitamente do que a realidade for deveras. Esta, porém, como já sabemos, é a regra do jogo, caminhamos até onde nos for dado. E é sempre às apalpadelas, mesmo quando o vislumbre é mais que lindo. Espero nunca me deslumbrar, que então é que me enganarei a sério. “Alcancei o Infinito” – creria. Mas que grande asneira!

                   Um abraço muito agradecido a todos vós da Sofia.

 

 

                   Chão de Vivos, 7 de Agosto de 2018

 

                   Caro Luís:

                   “Graça e Coragem” – (Ken Wilber) fascinou-te, afirmas. Curiosamente, a mim também, embora por razões diferentes. O que mais me tocou (vais achar-me meia parva) foi o cuidado de ele declarar que aquela era a imagem de Treya que ele conservou, qualquer outro indivíduo que com ela conviveu em vida teria decerto outra. Claro que é a minha preocupação permanente por garantir a vivência da relatividade do nosso conhecimento, a atitude coerente com a intangibilidade da verdade, em qualquer que seja o domínio, da partícula subatómica ao Universo, da fome do jantar à fome do Infinito. A verdade é aproximável, jamais se domina, nem sequer na Eternidade. É a novidade inesgotável do real, quer sensível, quer vivencial.

                   Isto, aliás, lembrou-me página a página o itinerário de “Paula” (Isabel Allende), a filha da escritora que acabou por falecer na vizinha Espanha, também vítima de cancro como Treya. Seguimos ali passo a passo o aprofundamento gradual da vivência espiritual da vítima e dos familiares que a acompanharam até ao desenlace final. São degraus de descoberta que trepam de patamar por uma infinda escada de Jacob que se perde na Infinidade. Nunca mais se chega ao termo, de deslumbramento em deslumbramento. E tudo isto em meio ao sofrimento mais cruel, o da perda irremediável. Naquilo logrei vislumbrar uma figuração no lado de cá do que ocorre do lado de Lá (aqui sem a dor, claro).

                   Mas adiante. O que mais te tocou foi o desassombro de Ken Wilber ao contestar a permanente teoria de que a doença é fruto de asneira nossa. Registas que não encontras um único autor de auto-ajuda que, ao referir a dor, o sofrimento, o mal-estar, a doença ou a morte, não os atribua a práticas, atitudes, escolhas, actos de nossa responsabilidade. Parece-te uma cegueira esquisita, mormente pelo facto de não encontrares excepções, aparte esta. A mim também me admira. É uma generalização apressada e insensata. Entra pelos olhos dentro que não é assim, a ciência ri-se deste disparate abstruso: o surto anual dos vírus gripais é fruto duma atitude de quem? E as infecções bacterianas, mormente as pestes de antanho, anteriores à descoberta dos antibióticos? E as doenças hereditárias? E as genéticas? Pior: teríamos um corpo imortal se não foram as nossas asneiras?! Então e o relógio celular dos radicais livres? É tão idiota que quase nem apetece responder. Mas como não, se toda a gente embarca na idiotia? Isto descredibiliza a redescoberta da espiritualidade que hoje galvaniza o mundo inteiro, mormente o Ocidente. Todas as generalizações superficiais, infundadas, todas as contradições na interpretação de vivências e factos, toda a ignorância da ciência, só servem para tolher o passo e desanimar quem disto tanto urge para reconstruir a própria identidade e dar sentido à vida. É uma perda grande demais para a ignorarmos.

                   Tudo isto é fruto acrítico, acéfalo, da importação de crendices, ignorâncias e atrasos do mundo oriental, pré-científico, e das suas vulgaridades, alheias mesmo ali às profundezas, tantas vezes inesperadas, dos grandes mestres, gurus e místicos deles.

                   Isto faz-me recordar um pormenor de “Sete Anos no Tibete” (Heinrich Harrer): conta ele que os camponeses tibetanos interiorizaram tanto o respeito pela vida que ela se tornou um tabu. Quando tenta ensinar-lhes como cultivar mais eficazmente o terreno, eles hesitam e recusam: não podem cavar o chão porque podem matar alguma minhoca! Então preferem morrer eventualmente de inanição para não correrem o risco de lesar um ser vivo e assim afrontarem o Espírito da Natureza! Parece uma anedota mas infelizmente não é: realmente vivem assim (ou melhor: morrem assim!). Para não matarem as minhocas matam as pessoas! Que grande espiritualidade! Ora, a verdade é que o autor fica maravilhado com semelhante respeito pela ecologia que, segundo ele, nós teríamos de aprender. Claro que temos, com a destruição do Planeta a que andamos a proceder. Mas nem uma palavra a respeito dum extremismo tão fanatizado que se revela suicidário e assassino? Isto não é desprezar a vida?! Que raio de ecologia é aquela?

 

                   1 – Há importações destas que revestem características pretensamente nobres, escondendo o fundo inaceitável, inadequado. É por esta via que nos chegou todo o vegetarianismo, nas múltiplas perspectivas que reveste: como a vida é intocável mas, sem nos alimentarmos, nós morremos, então ficamo-nos pelos vegetais (e vá lá que não nos limitam aos frutos, folhas, rebentos e sementes, para não matarem as plantas, que também são seres vivos!).

                   Como a crendice subjacente é racionalmente impossível de justificar, então toca de forjar justificações pretensamente científicas convincentes. Vai daí inventa-se logo uma pléiade de médicos e de investigadores que juram, com toda a fingida seriedade, que este é que é o regime alimentar deveras garante de saúde. Mesmo que a prática clínica alerte para a quantidade de vegetarianos que findam com carências proteicas e mazelas graves delas derivadas. O fanatismo é tanto que eles vão logo corrigir as dietas com proteínas vegetais, sem nunca confessarem que o que os nove é um preconceito pretensamente religioso sem qualquer fundamento, muito menos de bem-estar humano. Se for apenas a saúde que conta, então qualquer fonte proteica vale o mesmo. Porquê apenas a vegetal?

                   Mas há mais: aliada a tal publicidade há a pregação pseudo-espiritual de que tal regime alimentar levaria à paz. Já viste? Os vegetarianos são todos uns paz-de-alma?! E por mais que os factos demonstrem que isto é inteiramente irrelevante, o preconceito continua: contra os argumentos não há factos que resistam! Que é do juízo desta gente?

                   Também durante séculos matámos pretensas bruxas a torto e a direito, por esse mundo fora, só porque tal crendice se generalizou e encontrou logo inúmeros protagonistas prontos a assassinar inocentes em seu nome, desde o altar ao tribunal – gente da mais alta. Muito credível, portanto... “As Bruxas de Salém” foram vergonhosamente paradigmáticas. Ora, basta recordar que as dezenas de milhões de vítimas e de carrascos das purgas maoístas, como as dos Khmeres Vermelhos, dum lado e do outro eram predominantemente vegetarianos. Bendita paz que tanta vala comum abriu! Mas os factos não contam, a crendice é que importa...

                   O mais divertido é que até os ateus e indiferentes embarcam na esparrela, tão grande é a fome de espiritualidade e de sentido para a vida. Está na moda, então embarca logo nisto a carneirada toda, é a primeira alternativa que encontram, como podia ser outra qualquer. É a irracionalidade descontrolada.

                   Nem todos são isto, evidentemente. Lembras-te do Vaz, com quem cheguei a trabalhar em Beja? Desde os tempos da Faculdade escolheu tornar-se vegetariano. Um dia tínhamos tido uma reunião de programação no Ministério, em Lisboa, e calhou irmos almoçar juntos com vários outros. Aquando dos pedidos, não havendo na ementa pratos a contento, ele e uma colega perguntaram se não era possível um arranjo a partir dos listados. Como eu estava atenta a ouvi-los, ele sentiu-se desconfortável e precisou de justificar-se:

                   - Eu sou vegetariano mas não sou radical, é só uma preferência minha, sempre que for possível. Mas não tenho nada contra outras escolhas. E nem vou por ali muitas vezes. Sinto-me bem, mais leve com este regime, mais nada. Por isso o mantenho.

                   Assenti, nem comentei, era lá com ele. A colega da frente, porém, interveio em termos radicalizados. Achei piada ao contraponto do Vaz, em conformidade:

                   - Pois, eu também não gosto de comer cadáveres.

                   Ri-me interiormente da contradição. Nem eles, gente de formação superior, se davam conta de que comiam cadáveres de vegetais (inteiros ou em partes deles, estão tecnicamente mortos). Mais: mesmo ingerindo minerais, estão sempre, no mesmo sentido, a comer cadáveres – é que o Planeta Terra é um ser vivo, como o Cosmos inteiro o é igualmente. Não existe nada de morto deveras no Universo, duma ponta à outra. Não é metáfora, é a realidade: “Teoria Gaia” (James Lovelock) – fundamentando a tese aqui apenas relativamente à Terra, à cautela. Há toda uma corrente de astrónomos que investigam as novas descobertas a partir deste pressuposto, o que se vem revelando, segundo eles, cada vez mais elucidativo e clarificador (e comprova cada vez mais a teoria: tudo, afinal, é vivo de raiz).

                   Evidentemente que isto anula por inteiro a pretensão de qualquer fundamento espiritual, radicalizado ou não, em todo este pendor herdado do Oriente, seja qual for a vertente por que se manifesta. É mais um dogma, mesmo envergonhado e mal disfarçado, a jogar pela janela fora.

 

                   2 – Mas não vamos jogar fora a criança com a água do banho: resta a justificação razoável por que já então o Vaz se orientava, após abandonar os demais falsificados fundamentos. Sente-se bem, mais leve com dieta de vegetais, o que é comprovado por quenquer que seja, até recomendado pelos médicos e dietistas, mormente em situações de digestão difícil, obstipação e obesidade. Desde que não haja exageros nem contra-indicações, é o caminho correcto para qualquer um.

                   Eis a fórmula justa da espiritualidade bem entendida e assumida. É corresponder à nossa pulsão vital, ao apetite de preservar, melhorar, desmultiplicar a vida (tudo constatações de nosso íntimo, o nosso espírito), socorrendo-nos de quanto em redor o puder atender da melhor forma: a principiar na nossa própria experiência individual (com rotinas e inovamentos), os hábitos e recursos do meio, as mensagens e valores da cultura (nossa e mundial), até aos peritos e especialistas... E irmos fazendo as melhores escolhas que nos forem sendo possíveis, dia a dia, idade a idade, num perene reajustamento dinâmico a cada condição de vida.

                   Não há soluções absolutas, não há nada endeusado, não há dogmatismos. É o itinerário interminável, fruto da interminável procura e da inesgotável descoberta. Rumo à inatingível (mas aproximável) plenitude que nos negaceia da lonjura, eternamente a desafiar, convidativa. Nascemos sem livro de instruções e sem ele continuaremos até à morte. E os livros de cozinha espirituais com que deparamos pela vida fora são meros auxiliares para aguçarmos o sabor e apurarmos a destreza e a criatividade. Quem o não encarar assim está-se alienando, feito escravo da vontade e iluminação (que é também escuridão) alheia. Trai o espírito próprio (que nele quer revelar-se e murmurar-lhe ao ouvido da alma), atando-lhe uma venda aos olhos. Vai andar a vida inteira em apalpadelas trôpegas, ele próprio vendado pelas próprias mãos, num intérmino jogo das escondidas, convicto do contrário, muito embora.

                   É deste modo que crentes ou descrentes terminam respeitando e repetindo rituais completamente inócuos, em qualquer religião ou moda cultural, até em movimentos revolucionários, convencidos de que assim salvam a Humanidade, um povo, uma tradição ou a eles próprios. E tudo são meras superstições mascaradas de modernidade, em que todos iludem todos e a fome de autenticidade fica indefinidamente por responder, enganada por este falso substituto que acaba impedindo toda a gente de auscultar a frágil voz do próprio coração.

                   É o espectáculo triste dos parlamentos aqui e pelo mundo fora, a votarem propostas oriundas de religiões organizadas, velhas de séculos ou milénios, insensíveis a novos contextos, potencialidades e sensibilidades, e dando voltas desesperadas à procura de justificações razoáveis que não encontram, tanto porque não existem como porque a única real, persistente por trás das atitudes, sempre inconfessada, é aquela subserviência escrava, por definição acéfala e enganada. Julgam-se muito espirituais e andam a defender e implementar cadáveres há muito desfeitos em pó pelo tempo. É o materialismo mais grosseiro. No extremo, abrem um mercado de escravas em Mossul onde vendem raparigas aprisionadas, em nome de Maomé, e julgam isto muito fiel ao Alcorão e cumpridor da vontade de Alá, como fez o Estado Islâmico. Os demais não chegam porventura ali mas vão no mesmo caminho, a asneira é a mesma: demitem-se de si, de seu íntimo, e desatam a cumprir um mandato doutrem, qualquer que seja, mesmo criminoso como aquele. Os facínoras dos campos de concentração nazis e do Gulag soviético também se justificaram porque cumpriam ordens. As seitas religiosas suicidas e assassinas seguem o mesmo critério, quer se matem para “ir para a cauda dum cometa”, quer porque rejeitem o mundo exterior pretensamente corrompido e irremediável.

                   Quem cumpre o mesmo rumo, embora não se extremando, ainda comete idêntico erro, ainda se não reconverteu. Só pode asnear, por conseguinte.

                   E não chega a boa fé nem a boa vontade, que de boa vontade está o inferno cheio, diz o povo.

 

                   3 – Isto leva-me a evocar o episódio que me contaste da missa de aldeia a que foste e onde te encontraste com o teu amigo Quim. No fim da celebração, à despedida, ele desabafou contigo dum modo, em meu entender, exemplar:

                   - Nunca mais venho a uma coisa destas! Já viste? São só asneiras. Este padre, mal abre a boca, é disparate atrás de disparate. Passei o tempo a rogar-lhe pragas. Não concordo com nada, não posso. Ora, para isto é melhor ficar em casa. Vou daqui mesmo revoltado. Para que é que serve uma celebração assim? É muito pior do que se eu não pusesse cá os pés. Para mim acabou. Nunca mais!

                   É o exemplo rematado da deserção generalizada do chamado “povo fiel” em todo o mundo ocidental, comum a todas as religiões, mormente as mais organizadas e populosas. O que cresce são pequenas seitas, alimentadas por algum carisma particular, e, mal ganham dimensão, volta a tendência para ocorrer o mesmo fenómeno de decadência rotineira desiludida. Isto vem sendo assim pelo menos desde há quatro séculos para cá. E vai continuar sabe Deus até quando, porque os dados que o alimentam não mudaram nunca. Os pequenos surtos de renovação pautam-se pelo princípio de mudar tudo para que tudo fique igual, são pequenas superficialidades para encher o olho, os desvios substanciais nem sequer são tocados. As esperanças morrem à nascença, toda a planta nova murcha em breve no velho solo estéril dos desertos de antanho.

                   O trágico disto é que os milhões que desertam para o ateísmo, o agnosticismo e mais ainda para a indiferença não têm alternativa para o vazio que isto deixa na fundura das vidas. Uns colmatam-no com a adesão às ideologias, desde a da Revolução Francesa (“Liberdade, Igualdade, Fraternidade”) à do socialismo (da “Utopia” de Thomas Morus a Marx) até ao desespero dos sucessivos fracassos (na busca de equidade, “todos são iguais mas uns são mais iguais que os outros”, diz o “Triunfo dos Porcos” - George Orwell). Este “Admirável Mundo Novo” (Aldous Huxley) é o do pesadelo do “Big Brother”, qualquer que seja a alternativa. É pior a emenda que o soneto, portanto.

                   Há, porém, a derivação para a espiritualidade e todo um movimento mundial (“Nova Era”) na tentativa de renovo. Poderia ser a saída (e é-o de facto para muitos). A maioria comete aqui, todavia, a mesma asneira de quando praticava uma religiosidade infantil, acrítica, sem interioridade nenhuma, todo o contrário duma vivência espiritual radicada no próprio íntimo. Era previsível, uma reconversão a sério mexe muito do fundo, não vai assim do dia para a noite e é um itinerário interior que dura anos, dura uma vida inteira, ao fim e ao cabo.

                   Então, como aqui, na religião de partida, se não vai dos místicos e teólogos mais inspirados e autênticos, antes se fica pelas banalizações que se popularizaram, superficialidades inócuas, lugares-comuns, frases feitas – tudo destituído de qualquer conteúdo vivo, meros cadáveres da religiosidade, assim também no pretenso mundo novo das alternativas. Importam do Oriente, não as grandes lições de vida interior dos mais autênticos, mas o que se generalizou nas grandes massas. E ficam muito galvanizados pela novidade, sem reparar se tem algum fundamento vivo ou não. É o deslumbramento perante uma nova paisagem, não notam se está pejada ou não de miséria, ignorância ou estupidez. Se é ou não mais uma crendice, a obrar com mais uma bateria de superstições.

                   A própria designação de “Nova Era” é significativa disto: é a retomada crendeira dos signos do zodíaco e do respectivo cálculo do encadeado das eras. Ignora por inteiro o desenvolvimento actual da astronomia: recolhem-se cada ano mais dados que em toda a anterior história da Humanidade. Caíram todas as teorias de antanho, desmentidas pelos eventos, mesmo as dos últimos séculos (quanto mais as de há milénios donde os signos são oriundos). E estes obscurantistas cegos continuam a repisar velharias inteiramente caducas e sem sentido algum, contrariadas por todos os factos: a cegueira é que conta, a realidade, não. Isto é tão hilariante que até a posição dos astros hoje em dia já não tem nada a ver com as datas herdadas das mudanças dos signos: a translação da Terra ao correr de vários milénios alterou tudo. Se os horóscopos tivessem alguma validade, teriam de ser reajustados em função disto e então a cadeia dos doze signos teria um calendário que nada tem a ver com a tradição herdada. Mas nem a isto se deram ao trabalho. É mais simples acreditar numa asneira qualquer.

                   Também aqui, porém, nada de jogar fora o bebé com a água do banho. É evidente a influência do Sol e da Lua em toda a vida na Terra: sem eles ela nem existiria ou seria completamente outra. Os desastres com meteoritos, igualmente: não fora um deles ter extinguido os dinossáurios nem estaríamos aqui. E, se não foram os cometas, não teríamos a chuva anual de estrelas cadentes, quando atravessamos a zona onde a cauda dum deles deixou as poeiras. Quanto à realidade da influência astral é tudo e basta. O mais é uma mentira grosseira ou uma crendice ignorante impenitente.

                   Nada impede, porém, que se utilizem metaforicamente os quadros zodiacais como figuras de pendores da personalidade, de tendências vitais que propiciam ou obstaculizam eventos de alcance individual ou colectivo. Nem que, a partir daqui, se alerte para riscos ou desvios comportamentais, se refiram maneiras de corrigir, recuperar ou prevenir caminhos de destruição pessoal, familiar ou comunitária. Neste caso, já não é preciso corrigir os quadros de referência pela astronomia actual: já não tem nada a ver com isso. É conferir um estatuto de mito aos signos do zodíaco e respectivas decorrências. E, como qualquer mito, simbolizam numa história uma vertente inteira da personalidade humana. É uma efabulação imaginária, não factual, disponível como um espelho para a reprodução do enigma que nos desafia. Está aí, como qualquer outro mito, pronto para qualquer análise clarificadora da imensa complexidade que nos constitui, a fim de podermos ir optimizando a nossa vida. Mais nada.

                   E deixemos os astros em paz, que não têm nada a ver com isto.

 

                   4 – Como as cerejas dum cesto, puxamos uma, vêm logo todas encadeadas. Mas não perdi de vista a objecção que referiste: toda a doença é fruto de nossa escolha errada. Até a morte o seria!

                   Como Graham Greene (“Contos”) riria disto com o caso do italiano que ia a passar por baixo duma varanda, quando dela lhe caiu em cima um porco que o matou! Está-se mesmo a ver que foi ele que atraiu o porco: devia estar a apetecer-lhe um presunto ou uma chouriça!

                   Há sempre um infantilismo ingénuo por trás destas generalizações hilariantes que tudo descredibilizam. Quem se desligou duma religiosidade tradicional, como é que pode apegar-se a uma coisa destas? Só se for para morrer de riso...

                   Já por trás do vegetarianismo se esconde uma soberba mal disfarçada: a pretexto de respeitarem o Espírito do Universo, eles pretendem é corrigi-lo. Eles são claramente superiores a ele – crêem – na pureza acabada do respeito pela vida. Efectivamente, em toda a natureza o regime alimentar estabelece uma cadeia, do mais simples ao mais complexo, a principiar no plâncton oceânico e a terminar no homem, em que o mais rudimentar alimenta o patamar seguinte, de degrau em degrau até chegar a nós: a vida primária é pasto da secundária e assim encadeadamente até aos predadores de topo, culminando connosco. Esta é a lei da natureza.

                   Eles, os vegetarianos, portanto, não a acolhem. Para serem lógicos deveriam então condenar todas as espécies a partir do plâncton – todas matam a vida para sobreviverem. Que mundo mais aberrante, não é verdade? Então toca de corrigi-lo, pelo menos no nosso caso, já que não logramos ir mais longe!

                   Ora, isto não é respeitar o Espírito do Universo, isto é traí-lo, isto é combatê-lo, violá-lo flagrantemente. O que o Universo montou no mundo, como tessitura da vida, é tudo o contrário do que pretendem. Podem estar de boa fé, podem crer piamente que isto é o que lhes dita a espiritualidade, todavia factos são factos. É tudo, nesta corrente, uma aberração, fruto duma ignorância impenitente. De espiritual não tem nada (quando muito salva-se a boa intenção mal informada e pior orientada), tem tudo de cegueira preconceituosa, de surdez temerosa de ouvir a verdade. Eles são superiores à Natureza, logo eles são melhores do que Deus – é a clássica imagem do Diabo acabado. Por mais humildes e simples que aparentem ser, estão na realidade a fazer isto. Ora, para a salvação ou perdição, o que conta são as atitudes e actos, não a crença.

                   Com a doença e a morte é o mesmo. Então os animais não têm doenças? Não morrem? As plantas não têm doenças? Não morrem? Será que isto deriva das escolhas que não podem fazer? Ou nós somos a excepção e as nossas opções é que ditam um mundo aparte do mundo?

                   A lei da vida é linear e simples: cada vivente nasce, eventualmente cresce, reproduz-se e depois morre. Não há excepções. Até o Universo é assim: daqui a cinco biliões de anos o Sol finda. As escalas temporais são as mais variadas, todavia não há fuga possível. O ciclo de vida é fatal e inexorável.

                   Que busca quem pretende o contrário? Há mentores espirituais que, tomando a Bíblia à letra, afirmam que poderemos atingir os novecentos anos de Matusalém. Há quem defenda que até poderemos ser imortais! Até somos, de facto, mas não biologicamente.

                   Longe de ter qualquer matriz espiritual, isto, ao contrário, esconde a pretensão também de corrigir a natureza: o Universo estaria mal feito e nós iríamos dar uma mãozinha ao Criador para o ajudar a endireitar. Mais uma vez, o diabo escondido com o rabo de fora: estes pretensos guias não aprendem com o Cosmos nem com o toque vital com que ele nos aflora, não vêem os céus e a terra a manifestarem a glória de Deus, ao invés, descobrem que a marca divina é coxa, Iavé será um maneta pouco destro e eles é que o vêm ajudar a atravessar a avenida da vida sem ser atropelado. Eles são, portanto, mais e melhores do que Deus: eles comandam o Espírito, não são por ele comandados. É no que resulta dar o mistério por acabado e convencer-se de deter a verdade absoluta.

                   Com a doença é mais capcioso: Deus é tão bom, tão apenas amor, que não pode ser por Ele que a doença nos vem. Logo, só poderemos ser nós os responsáveis. Sim, porque para estes a doença é um mal e, portanto, não pode provir do Espírito do Universo, o Bem Absoluto.

                   Nem sequer se perguntam que mal fazem animais e plantas para serem vítimas de tanta moléstia que inexoravelmente os atinge vida fora, eles que não têm discernimento nem livre arbítrio para optar. Ou isto para eles já não é um mal? E, se é um bem, então em que ficamos? Somos nós, mais uma vez, um mundo aparte? Um bem aqui é um mal acolá? É tudo uma arbitrariedade, é como nos der na veneta? Também um roubo é um bem para o ladrão e um mal para a vítima. É isto? Já não há bem nem mal nenhum, é tudo relativo?

                   É no que nunca pensam os actuais mentores da vida espiritual pelo mundo fora, ao atribuir-nos a causa das doenças tão levianamente e de modo tão generalizado. Não bate certo com os factos, estes contradizem-no maciçamente: as doenças, as malformações, a hereditariedade mórbida, os defeitos genéticos fazem parte da ordem da natureza em todos os domínios de todos os tipos de vida. Isto é que nos desafia a compreendê-lo cada vez mais e melhor e a geri-lo em conformidade com o que de válido formos discernindo e conseguindo.

                   O erro ali é o de crerem que já descobriram o que é o mal e o bem e o de transformarem tal crendice primária e rudimentar num dogma final e absoluto. Nem sequer se questionam se não estão entendendo tudo erroneamente. É um juízo infantil tomado por uma verdade acabada. “Mesa má!” -  grita a criança que acabou de lhe dar uma cabeçada dolorosa. E desata a bater-lhe, em lugar de aprender a desviar-se dela. É aqui que ainda estão estes gurus espirituais. Falta todo o itinerário da aprendizagem, fruto do desvelamento gradual do mistério que ali defrontamos inevitavelmente. Dá-lo por resolvido é apenas fechar os olhos à realidade. E depois pagamos os custos: continuaremos a bater com a cabeça nas arestas da mesa, irremediavelmente, que a natureza não muda para satisfazer as nossas asneiras. Nós é que nos temos de submeter humildemente à factualidade dela e tentar aprender, aprender indefinidamente. E ir-nos reajustando, reajustando também indefinidamente.

                   E eis como, por trás disto, continua um orgulho mal disfarçado que recusa submeter-se, a fim de ver, ouvir, aprender e crescer. Falta a humildade basilar que permita abrir as portas a tudo, ao Todo que, afinal, é Infinito. Mesmo na compreensão do que será mal ou bem numa conjuntura como a da doença.

                   É o contrário do que vemos no “Graça e Coragem” e no “Paula” e que é o mais revelador destes livros: aqui há uma caminhada tentando discernir que é que o Mundo Espiritual quererá com a sentença fatal que, após anos de sofrimento, mata ambas as biografadas. E todos os envolvidos avançam, degrau a degrau, no discernimento e na modelagem interior, desde a revolta e rejeição até à dúvida, à resignação e, por fim, ao acolhimento e à plena aceitação. Chega a ser quase entusiástica a semana derradeira de Treya, com a alegria do “regresso definitivo a Casa”, enfim liberta de toda a dor excruciante de cinco anos de luta inglória pela sobrevivência. Em lugar da busca duma vida prolongada aqui, duma imortalidade física, é a festa da entrada no portal da Infinidade. Sem nenhum medo da morte. Sem nenhum mórbido apetite de vida terrena, desvio inconfesso dum terror do fim, mera compensação disfarçada, sem nenhuma espiritualidade, tudo materialidade apenas, inteiramente alheia à voz última do íntimo.

                   Na mesma linha, aliás, “O Brilho de Sua Luz” (Danielle Steel, a escritora mais lida do mundo, luso-descendente) deixa entrever que Nick Traina, o filho da autora, vítima da incurável doença bipolar, é num gesto de amor pela família que se acaba por suicidar, a fim de não entravar nem contrariar mais a vida da mãe nem demais íntimos. Não só não há medo nenhum da morte como há a dádiva dela para libertar todos do pesadelo interminável de velarem por ele. “Ninguém ama mais os amigos que quem dá a vida por eles” – já lá afirmava Jesus Cristo. É claro que isto contraria o platónico dogma sacralizador da vida, mas este, como os demais dogmas, desde que entendidos como verdades finais, acabadas, absolutas, não fazem sentido nenhum, como já vimos (os judeus do suicídio colectivo de Masada puderam ser todos encaminhados para a Luz, por Alexandra Solnado, sem reserva nem condição nenhuma).

                  

                   5 – Resta, porém, o bom senso de nossa responsabilidade. É óbvio que quem não se precavê na vida que leva finda doente, quer porque não cuida de equilibrar a alimentação, exagerando nos excessos ou nas carências, pior ainda se renitente nisto, quer viciando-se em álcool, tabaco ou drogas, porventura em açúcar ou sal e assim por diante (basta pensar nas gorduras e na diabetes como efeito). Quem não se mexe finda tolhido...

                   De igual modo, quem recusa tratar-se quando doente ou prevenir as conjunturas que levam à morbidez ou morte, pode acabar antes do tempo e é de sua responsabilidade. Basta pensar na detecção precoce do cancro, nos vários domínios das vacinas, no recurso aos antibióticos, nas cirurgias, em toda a gama de recursos médicos, farmacológicos e de medicinas paralelas. E quem só trabalha e não liga a laços nem afectos?... Adoece e adoenta os mais em redor (a doença mental não é melhor que a física).

                   E não há só responsabilidade individual, ela é também familiar, comunitária, nacional e planetária.

                   Quem abandona os filhos ou velhos (até cônjuges) ao deus-dará pode matá-los de inanição, desleixo, falta de atendimento...

                   Quem ignora a miséria que eventualmente lhe morar ao lado pode levar os míseros à doença ou à morte (não é só esmola, é Estado social, organização laboral e por aí fora...).

                   Quem não vela por levar os recursos disponíveis ao País, podendo fazê-lo (ou, não podendo, podendo pressionar ou escolher quem possa), é responsável por quantos sofrerem ou se finarem por mor disto.

                   Quem não ligar a disponibilizar as condições de saúde e sobrevivência a todos os povos do mundo é co-responsável pela enorme morbilidade e mortalidade infantil terceiro-mundista, pelas baixas médias de sobrevivência aí constantes e assim sucessivamente. Até será também pelo graveto que nisto não joga que a eventual rebelião destes povos contra os ricos do planeta poderá deflagrar, semeando o mundo de cadáveres, deficientes e doentes, qualquer dia.

                   Há, porém, ainda outros níveis de responsabilidade de cada um. A descoberta de novos tratamentos (por via laboratorial ou pesquisa de campo) é dever dos que a protagonizam mas também de todos os mais que lhes têm de disponibilizar meios e recursos (ou escolher e pressionar quem os puder viabilizar).

                   E a produção e distribuição de novos medicamentos e tecnologias de saúde não pode ser apenas para lucro de laboratórios e empresas. Todos temos de velar por que a primeira prioridade seja o atendimento dos indivíduos que precisarem e só depois o rendimento que garanta a continuidade dum equilibrado funcionamento do mercado. É a economia ao serviço do povo, não o povo ao serviço da economia.

                   A listagem poderia continuar.

 

                   6 – O que isto quer dizer é que, de facto, não somos responsáveis deveras por doença nenhuma, somos responsáveis é pela cura. Nascemos já com a sentença de morte a prazo em cima, de que a doença é um caminho premonitório. O bebé, mal nasce, se não for atendido e alimentado, morre logo. Compete-nos, ao acolher o Espírito vital, desempenhar o nosso papel, lidando com esta situação em conformidade com a tendência para a preservação e implementação da vida que em nós igualmente sentimos como impulso e apelo íntimo, também na interioridade implantados pela natureza. No jogo dinâmico destes dois impulsos de sinal contrário é que a aventura existencial se tem de processar. Quebrar isto é, mais uma vez, recusar a realidade e pretender paralisá-la num ponto qualquer, bloquear a historicidade transitória, nossa marca de origem, como se fôramos imortais da imortalidade decaídos por culpa nossa. É sempre isto que anda escondido por trás da atribuição a cada um de nós da origem da doença (o que levaria, em última instância, a sermos responsáveis pela origem da morte).

                   Claro que todo o desvio radica na interpretação literal do 3º. capítulo do Génesis, o da queda, no mito de Adão e Eva: porque comeram da árvore da vida, do conhecimento do bem e do mal, ficaram condenados à morte. O texto bíblico é dos mais primitivos, remontará a uns 1500 anos antes de Cristo e transcreve tradição oral anterior, decerto bem mais milenar. Interpretá-lo à letra é tanto mais disparatado quanto (para além de mítico) ele situa esta afirmação no contexto da metáfora da árvore da vida donde se colhe o fruto do conhecimento. Ora, ninguém interpreta isto à letra, tão ridículo seria. Porquê então apenas a condenação à morte? Será que os animais e plantas do jardim do Éden não estariam condenados a morrer? Claro que estavam, como tudo quanto é vivo. A questão é não terem acesso ao conhecimento do bem e do mal, não havia discernimento ético: a morte para eles, então como agora, uma vez que a não logram conhecer, é tal qual como se não existisse. O mesmo ocorreu enquanto o homem não deveio racional: o australopithecus de certeza que não elaborou nenhuma teoria acerca da vida e da morte e, muito menos, de como as deveríamos enfrentar. Para quem ignora um dado qualquer da realidade é exactamente como se ele não existisse. Conhecê-lo é ficar com uma carga de trabalhos: teremos agora de discernir e escolher o que for mais conveniente para uma vida em plenitude. Acabou-se o automatismo inconsciente e espontâneo dos instintos. Doravante está tudo por fazer, está tudo nas nossas mãos, dependente para bem e para mal das nossas escolhas e da lucidez com que as operemos. Ou do obscurantismo, como os que vão por aqueloutro rumo, dando corpo à irresponsável ignorância e prestando-lhe vassalagem.

                   Não são nisto, portanto, mentores espirituais mas mentores duma ignara estupidez.

                   A nossa missão é a de curar as doenças com que a natureza nos desafia desde sempre e para sempre. Não para atingir qualquer imortalidade terrena, mas para gerar condições para uma vida plena, quer dizer, uma vida tal que atinja a ressurreição, o fito final de toda a espiritualidade.

                   Ao demitir-nos disto, apressaremos a morte, em qualquer vector como os atrás listados. Ao acolhê-lo, ao invés, criaremos tempo para visarmos a maior lonjura possível em qualquer domínio da vida que poderá então ser protagonizado apontando à Infinidade.

                   Fá-lo-emos com recurso a todos os níveis e planos como os acima reportados mas também com o nosso dom particular de curar (I Cor. 12,9). Nalguns casos, este vem-se manifestando, hoje em dia, de forma individual muito poderosa e surpreendente. Vai desde a identificação do diagnóstico onde os recursos médicos não chegam, até à transmissão de energia vital que reconstitui tecidos, anula dores, refaz articulações e assim por diante (“O Dom de Curar” – Ambrose e Olga Worral), entre o curador e o curado. Doravante, alguns casos mais singulares estão encontrando eco mundial através de canais internacionais de televisão e de divulgação via internet. Graças a Deus, até que enfim!

                   Tudo indica que o número e os poderes se vêm multiplicando cada dia mais, agora que a caça às bruxas parou, pelo menos em grande parte do mundo. Vão nascendo crianças cada vez com mais inesperadas faculdades e capacidades, nos quatro cantos da Humanidade. Tudo isto visa, todavia, como já insistentemente escrevia S. Paulo há dois milénios atrás (I Coríntios), não o prolongamento indefinido da vida terrena, mas antes a vida ressuscitada, como a que Jesus então já protagonizava e ele havia verificado por experiência própria, à semelhança de centenas doutros, a maioria dos quais eram então ainda vivos.

                  

                   Vou terminar por aqui esta deambulação, senão nunca mais acabo. Será que não fui muito confusa, no meio de tantas reviravoltas? Desculpai-me, se for o caso. Isto tudo fascina-me tanto que quase nem me apetece parar nunca. E então quando imagino que ainda não é nada perante o que a realidade for mesmo...

                   O meu abraço muito grato para todos vós da Sofia.

                   P.S.: manda-me mais perguntas, não imaginas a alegria que isto é para mim! Sofia.

 

 

                   Chão de Vivos, 20 de Agosto de 2018

 

                   Caro Luís:

                   Ris-te ironicamente do debate televisivo em que uma professora universitária de Filosofia comentou que a religião é que tem resposta para tudo, sendo logo contestada por um padre que afirmou que até o Papa há tempos comentara que não tinha certeza nenhuma. “Não sei onde foi buscar tal ideia!” – rematou ele, bem farisaicamente. E lembras que, em tempos de João Paulo II, a cúria romana o apunhalou pelas costas (quando tentou reatar laços com a Igreja Ortodoxa), enviando para leste uns tantos missionários a pregar a desautorização da fé de lá, porque só a Católica era detentora da verdade. Queixa, aliás, permanente, no Conselho Ecuménico das Igrejas, porque “é inviável avançar no ecumenismo com uma Igreja permanentemente triunfalista” – reafirmam.

                   E perguntas-me uma coisa muito curiosa: até à derrocada do comunismo na União Soviética e países satélites, a crítica mais comum que encontrávamos em opositores, mesmo de esquerda, era a de que eles tinham transformado a ideologia numa religião. Era tudo sagrado, intocável: as ideias, as soluções, os personagens... Com um culto final do chefe (Lenine,_Estaline, Mao...) mais papista que o Papa e mais dotado do que este do dom da infalibilidade, ninguém sabia garantido por que raio de espírito santo! A verdade é que todos os intelectuais e analistas, pelo mundo inteiro, convergem nesta interpretação, todos convencidos de que é mesmo assim. E mais: tal ocorre por referência a todas as religiões e não apenas à Igreja Católica. Como foi entre os comunismos, aliás, quando mutuamente concorrenciais: ruptura entre Moscovo e Pequim, ou então a linha jugoslava, a albanesa... Que é que isto tem de religioso?! – questionas. Dá para rir, de facto: todos tinham a verdade absoluta e todas as verdades absolutas eram mutuamente contraditórias! Estamos no reino da loucura e os loucos tomaram conta do poder, não há hospital psiquiátrico que nos valha, não é?

                   Claro que isto nada tem a ver com religião nenhuma, é a perversão dela: a corrupção do óptimo que dá o péssimo. Na crença ou noutro domínio, a mesma atitude produz os mesmos efeitos. Por outro lado, é verdade que é universal e constante a leitura de que isto é a marca distintiva da religiosidade, o que não abona nada a favor dos crentes. Ainda bem, todavia, que tal ocorre também no mundo ateu, militantemente anti-religioso: a praga atinge qualquer um, independentemente da respectiva atitude no domínio espiritual. E demonstra que a fé tem de ser deveras outra coisa, uma vez que isto toca a todos, crentes ou não.

                   Curioso, contudo, é que ninguém identifica em que é que consiste a maleita. Nem para crentes nem para descrentes. Ora, sem diagnóstico, a cura devém inviável, como em qualquer outra moléstia. E vem sendo assim desde há milénios, das cinzas de cada derrocada renascendo nova epidemia, com novos nomes, novas utopias, novas teorias e, ao fim e ao cabo, redundando sempre no mesmo deslizamento para um turbilhão de assassínios, até serem postos de lado. À espera dos seguintes. É um verdadeiro pesadelo histórico, perfeitamente paralelo ao das pestes. Com a diferença de que estas foram dominadas, com o respectivo diagnóstico e descoberta do antibiótico ou vacina de prevenção e cura. Aqueloutra pandemia continua a aguardar estes passos, para nos podermos ver livres dos correspondentes malefícios milenares incontroláveis.

 

                   1 – Tenho-me lembrado muito, nestes últimos dias, de “O Zero e o Infinito” (Arthur Koestler) que correu mundo como a primeira grande denúncia romanesca dos processos estalinistas de lavagem ao cérebro, feita por um jornalista-escritor convictamente de esquerda, a vida inteira com os mesmos ideais. Segue dia a dia o itinerário de prisão e tortura sistemática, até à destruição da personalidade inteira, dum militante sonhador, sempre fiel ao sonho, que finda, após confissão falsa forçada pela violência, condenado à morte ou ao Gulag concentracionário siberiano, como milhões doutros. “A equação não se tem nas pernas” – é a conclusão a que o autor chega, perplexo. E não logra ir mais longe.

                   A pergunta subjacente, jamais respondida, é: que é que leva a isto? Como é possível a utopia do céu gerar o inferno? Como é que a grande aurora finda, na prática, na noite mais negra, sem vislumbre sequer duma pontinha de luar?

                   Na grande alegoria de “O Triunfo dos Porcos”, George Orwell tenta um passo além: os líderes deixam-se corromper pelo poder, arrebatam tudo para si, estão-se nas tintas para os ideais igualitários, uma vez vencedores. E é também um facto em todo o mundo comunista e totalitário: a classe burocrática que domina o aparelho do Estado e do Partido monopoliza tudo primeiro em benefício próprio e, quanto aos mais, logo se vê, embora logre muito mais partilha generalizada de benesses no mundo comunista que na generalidade dos outros regimes idênticos, em vários casos (China, Cuba...).

                   Isto é, no fundo, a ilustração do princípio sócio-político bem conhecido: todo o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente. Ditaduras, seja qual for a cor ou a tendência, de esquerda ou de direita ou de mera ganância pessoal, findam sempre apodrecidas por isto, em maior ou menor número de domínios. E os direitos humanos em todas ficam pelo caminho.

                   Esta última constatação é que leva Simone Weil a rejeitar esta via durante toda a sua vida militante e de intervenção político-cultural, apelando a todos os que têm por ideal um mundo igualitário, equitativo, para que abram os olhos: qualquer que seja a esperança deles, ir por ali será sempre um caminho inconvertível, repetir-se-ão inexoravelmente os mesmos erros, trair-se-ão sempre os mesmos sonhos, será sempre um pesadelo atrás doutro. É irremediável.

                   Milos Forman, o cineasta leste-europeu refugiado na América, denuncia em “Voando sobre um Ninho de Cucos” o que já se sabia generalizado então nas leste-europeias ditaduras comunistas: o internamento forçado dos opositores em hospitais psiquiátricos. Perante o escândalo mundial das purgas concentracionárias que mataram muitos mais milhões de indivíduos que a II Guerra Mundial, os ditadores morigeraram a atitude derivando para esta alternativa do mesmo. O motivo resumia-se então nisto: quem não aceita a verdade é porque é doido; logo, hospital de malucos com ele! Como isto é dum infantilismo disparatado que daria para rir se não fora a tragédia humana que arrasta, a busca das motivações para tal leva o cineasta a atribuí-lo à ganância das pessoas que querem apoderar-se dos bens dos internados, manipulando então as instituições em benefício próprio, dêem ou não conta disto os responsáveis hospitalares, sempre coniventes com o desmando, a bem ou a mal. Nesta interpretação, portanto, a corrupção do poder vai mais longe que os poderosos, corrompe o tecido social inteiro. E ninguém está livre disto, mesmo em democracia: a história ocorre num hospital de alienados americano.

                   É curioso que este efeito de corrupção colectiva é confirmado pelos estudos históricos acerca do regime nazi alemão, enquanto foi vencedor, nos primeiros anos da II Guerra Mundial. Os alemães em geral não se rebelaram contra a espoliação de famílias nem povos inteiros escravizados e exterminados, na guerra ou nos campos de concentração, claramente por isto: o produto do saque era também distribuído pela generalidade da população germânica. Como era beneficiária, tornou-se conivente. É o mesmo itinerário, portanto.

                   Soljenitsine, em “Um Dia na Vida de Ivan Denisovitch”, confronta-nos com o totalitarismo mais descarado. Quando o chefe do campo de concentração chega atrasado à parada e lho fazem notar, limita-se a retorquir:

                   - Mas quem é que manda aqui? Quando eu digo que é uma hora, é uma hora. Ponto final.

                   A realidade, portanto, já não conta para nada. O poder pessoal é tudo. Até o tempo horário é o da arbitrariedade do comandante. Entrámos no reino da alucinação completa. Qualquer delírio de quem detém o poder é que é o real com que lidar. E nada mais há para além disto, na vida do povo aprisionado. Num regime concentracionário, o país inteiro é, de algum modo, assim. E toda e qualquer ditadura para lá caminha.

 

                   2 – Nada disto tem a ver com religião, não é verdade? O problema é que tem. “O Judeu”, de Camilo Castelo Branco, reconstrói o processo da Inquisição que levou ao auto de fé onde foi queimado vivo António José da Silva, o maior dramaturgo português do séc. XVIII, no Pátio das Cebolas, em Lisboa. Os autos foram instigados e conduzidos por frades dominicanos. Tudo apenas a pretexto de que ele era um judeu encapotado, o que nem sequer se provou, pelo contrário.

                   Toda a sequência é acicatada e o populacho incendiado por aqueles que pretendiam ficar-lhe com os bens e a fortuna, falseando os factos, forjando depoimentos, com o assassinato dele a coberto da lei e de instituições judiciais, pretensamente muito respeitáveis. É um poder eclesiástico de cariz totalitário instrumentalizado por corruptos que corrompem organismos e populações, sem nada mais ter em conta que o benefício material próprio. Como é que o céu se torna inferno? Aliás, como é que se pode considerar crime ter outra crença, senão pelo princípio de que quem recusa a verdade (oficial) só pode ser maluco? Vai parar à fogueira como podia ir para o hospital de alienados. Num caso e noutro, é o mesmo.

                   Acolher uma verdade como verdade absoluta leva a estes efeitos inacreditáveis. Aliás, acaba por levar mesmo ao extremo: aceitar como verdade absoluta a mentira, o erro, a falsidade. Basta serem protagonizados por quem manda (pressuposto ou declarado como infalível).

                   Nem precisamos de recuar muito. Havia entretanto já findado a caça às bruxas, perante a rebelião social contra tal crendice e consequente criminoso disparate, assassino de inocentes em cadeia durante séculos (“As Bruxas de Salém” – Arthur Miller e filme com Winona Rider; o episódio real ocorreu em 1692-93 em Salém, Massachussetts, EUA).

                   Tinha bastado, porém, que a comunidade tivesse acreditado durante séculos em tal obscurantismo (de que haveria bruxas) e que tal acabasse sancionado por hierarcas, para logo atrás disto se arrebanhar um exército de fiéis, muito empenhado em extrair-lhe as consequências. Até com peritos sado-masoquistas a ensinarem como levar as vítimas às confissões (falsas) mais alucinadas, através das torturas mais diabólicas (“Malleus Maleficarum” – “O Martelo das Bruxas” – Heinrich Kraemer e Jacob Sprenger – dominicanos – 1487). Passa a ser uma hora a qualquer hora do dia, em qualquer dia do ano, basta que o superior o dite. E quem não o acolher e não confessar a sua inaudita perversidade, vala comum! É um réprobo, porta-voz dos infernos. As purgas estalinistas tinham mentores bem antigos e bem qualificados.

                   Isto evocou-me uma conversa que tivemos no Café República, à entrada do Jardim da Sereia, em Coimbra. Lembras-te do Telmo? Contava ele, divertido:

                   - Referiram-nos hoje que Hegel, convencido, após ter descoberto a dialéctica da tese-antítese-síntese, de que isto explicaria tudo, não havendo futuramente mais nenhum lugar para a Filosofia, dedicou-se a partir daí à estética, como um contemplativo. Alguém nesta fase o terá questionado: “parece que há uns factos quaisquer que não encaixam bem na sua teoria...” Ao que Hegel terá retorquido: “ai sim? Tanto pior para os factos!”

                   Anedota ou realidade, crer que se tem uma verdade acabada leva logicamente ao alheamento do real, doravante inútil, o alheamento produz a alienação e esta culmina na alucinação. E é apenas o imaginário que é tomado pelo factual, sendo este por inteiro abolido, no limite. O resultado é o louco, já que, longe de ser o que perdeu a razão, é, no dizer de J. K. Chesterton (“Ortodoxia”), o que só tem a razão, perdeu foi os factos, não tem mais contacto com realidade nenhuma, senão a do seu permanente delírio acordado.

                   A convicção de se ser depositário da verdade, combinada com um poder totalitário, longe de nos salvar, condena-nos, primeiro por dentro, depois por fora, em corpo e alma, portanto. Na religião ou fora dela, o resultado é o mesmo: quem escorrega pelo trilho do precipício termina precipitando-se.

                   Por muito venerável que seja uma tradição, quando é uma tradição mortífera, temos de aboli-la. Não foi nada fácil, no nazi-fascismo, o custo do derrube duma falsa verdade absoluta dotada dum poder totalitário: dezenas de milhões de mortos e estropiados de guerra, mais as dores do parto da liberdade, nos povos submetidos a tais regimes e aos neles inspirados. O mesmo custou e continua custando a falsa verdade absoluta dos regimes comunistas, hoje tombados ou debilitados, mas ainda e sempre sem eliminarem a raiz do cancro: a crença de que detêm a verdade absoluta, servida por um poder totalitário. Dêem as voltas que derem, nunca se atinge ali verdade nenhuma (que teria de ser fatalmente relativa, é da natureza dela), nem nenhuma humanidade (os direitos humanos ficam inelutavelmente pelo caminho, a principiar pelo de aderir ao que se entender e crer).

 

                   3 – Se isto foi (e é) assim nos regimes políticos, que dizer do das religiões? Guerras de religião há permanentemente a pontuar a história, mais extensas ou mais limitadas. Perseguições, igualmente. Excomunhões mútuas, nem se fala. E assim por diante.

                   A vocação de religar o zero ao Infinito também aqui, portanto, não se tem nas pernas. Cada confissão é detentora duma qualquer verdade absoluta que é diferente da verdade absoluta das outras. Conseguintemente, toca de malharem todas nas cabeças de todas as mais.

                   Neste domínio acresce uma dificuldade: é que as religiões falam em nome de Deus ou, pelo menos, do Espírito. Como contestar a palavra de Deus, a voz do Espírito? O crente acredita que é assim, mais ainda o sacerdote, os responsáveis do culto e toda a massa aderente.

                   Ora, com semelhante chancela, não resta alternativa. Quem é qualquer de nós para pôr em causa o que quer que seja? Quer substituir-se a Deus, é mais esperto que o Espírito? Isto soa a blasfémia. Daí a tendência a ficarem todos tolhidos perante qualquer dúvida ou alternativa, qualquer inovamento que soe a atentado à herdada vontade divina: o mais seguro é deixar tudo como está, não vá o diabo tecê-las... E vem daí o conservadorismo mais petrificado.

                   Por outro lado, esta tendência geral facilita muito a vida a quem pretenda pôr debaixo do chapéu da vontade divina seja lá o que for: desde o bem-intencionado ao oportunista, desde o ignorante ao culto, desde o santo ao criminoso, desde o espiritualista ao materialista – basta que se apresentem como vozes de Deus a clamar no deserto, têm à partida grande probabilidade de acolhimento acrítico, automático, mágico e largamente supersticioso por parte dos fiéis. Então se o que propuserem vier carregado de ameaças e desgraças contra quem o não acatar, é fatal: o rebanho cola-se-lhes aos calcanhares, esperançoso e timorato. Todas as seitas são peritas nisto, história além.

                   Com mais ou menos escrúpulos e abusos, este é o pedregoso trilho de todas as religiões. Como evitar a dogmatização de tudo como vontade de Deus, como voz do Espírito? Como não acolher como definitiva, intocável, a palavra divina?

                   Foi o mal-estar deste ambiente que gerou a corrente da Teologia da Morte de Deus: será que, deixando de falar de Deus, viramos a atenção para a Humanidade, que é quem tem de se salvar? Deus não precisa de que o salvem, esta pretensão é um equívoco permanente, sempre a renascer das cinzas. Nós é que precisamos, nós é que enfrentamos problemas intermináveis, quando nos propomos amorizar todas as relações humanas à escala planetária, desde o “Eu e Tu” (Martin Buber) ao entendimento familiar, entre povos, regiões, continentes, o mundo inteiro... “Um Deus Diferente” (Robinson) apresenta-nos Deus a tratar das dificuldades humanas, não de si, não dos dogmas, não das teorias, não das crenças, mas das preocupações e dos caminhos que nos ajudem nos confrontos do dia-a-dia. “Deus Morreu em Jesus Cristo” (Jean Cardonnel) elimina Deus da equação, deixa-nos Jesus, o homem cuja pista nos permite ir retraçando o itinerário que a todos nos conduzirá até à ressurreição. Ele é que é a inspiração e o fermento do que de divino sair das nossas mãos, nós é que teremos de construir céu no cotio de nossas lidas. Jesus é o guia, ele é que logrou lograr a morte, sem pregar nenhuma teologia, sem definir nenhum dogma: pregou e protagonizou mudanças de atitude, rumo à plena realização em plenitude de cada um e de todos. O resto não lhe importou nem importa, é indiferente. Claro que o “Grande Inquisidor” (“Os Irmãos Karamasov” – Dostoievski), ignorando Sº.Agostinho que defende que “todo o transcendente é imanente”, condenou o autor de imediato por ser um horizontalista onde se não vislumbraria o sobrenatural. Todo alinhado, este juiz, portanto, com a mentalidade do depósito a guardar, coberto pelo escudo da palavra de Deus – o dogmatismo mais inerte, o cadáver da fé.

                   A propósito dos oportunistas e criminosos que espertamente se acobertam com a invulnerabilidade da mensagem divina, a história do cristianismo é cheia de casos desconfortáveis, impossíveis de ignorar mas jamais assumidos: desde a eventual (se calhar inexistente) papisa Ana, ao papa que manda assassinar o rival preferido pelos eleitores, até Alexandre VI que torna o Vaticano em pouco menos que um prostíbulo, ao papa excomungado e assim por diante, a findar nos crimes de pedofilia em massa, doravante na ordem do dia... “Acuso a Igreja” (J. Cardonnel) denuncia o que lhe parece ser o momento em que gente desta (e esta mentalidade) se apodera de vez de todo o aparelho eclesiástico, desde a Idade Média até aos nossos dias. E sabe Deus até quando...

                   Derrubadas as verdades absolutas do nazismo, dos fascismos, dos comunismos, do anacrónico genocida Estado Islâmico, quando ocorrerá o mesmo nas religiões? Isto de ficar a coberto do divino revela-se, história além, afinal, letalmente diabólico. Ora, é pelos frutos que conhecemos a árvore – é o critério que Jesus nos legou. Nenhum outro o deve superar nem preterir, sejamos cristãos ou não, é mera questão de bom senso. E de sobrevivência.

 

                   4 – Mais uma vez, como vemos, o problema não é um exclusivo da fé, da religião, da espiritualidade: é de todos, crentes, indiferentes ou ateus. O problema é da humanidade inteira. Apenas agravado no domínio dos crentes por causa da cobertura pretensamente divina que os demais não têm. Mais nada, não há mais diferença nenhuma. A doença mortal é da atitude e esta é susceptível de ser compartilhada por todos.

                   Lembras-te de meu irmão David que já se finou? A loucura com que faleceu principiou à nossa frente. Ele acabara de ler “A Profecia Celestina” (James Redfield) e desatou a interpretar o fim da história como real: a vibração dos perseguidos tornou-os invisíveis aos perseguidores. Portanto, afirmava ele, vivemos rodeados por indivíduos tão espirituais, com uma frequência interior a vibrar de tal modo que nem os vemos. O que era uma grande alegoria, maravilhosamente sugestiva, foi para ele uma realidade indiscutível. Nem admitia outra leitura. Era matar toda a mensagem do autor, mas ele nem o via nem o acatava.

                   Fiquei tão perplexa que nem tive resposta. A tua filha (que ouviu aquilo) sentiu-se tão mal que virou costas. Mais tarde comentámos entre ambas e ela, com pena manifesta, limitou-se a sublinhar: “ainda bem que foi só ali! No resto mantém os pés na terra.”

                   A imagem que me ocorreu na ocasião foi a da metáfora poética antiga: “o queijo da Lua”. Será que alguém defende que as viagens à Lua foram para cortar nacos de queijo do satélite e que os queijos mais caros que compramos são, afinal, selenitas?! E que andamos para aqui todos ludibriados pela informação oficial?...

                   Por mais hilariante que isto seria, dado o gritante dos factos perante a alucinação ou o imaginário fantasista, a verdade é que o caso se me antolha exemplar porque é a norma comum a todas as afirmações absolutizadas. A realidade, seja em que domínio for, excede por natureza qualquer conhecimento que dela possamos atingir. Mais: é inesgotável ao infinito, abordemo-la por que via (e por quantas vias) a abordemos.

                   Basta recordar que, por exemplo, Lorna Byrne (“Os Anjos nos Meus Cabelos”) vê cada indivíduo acompanhado pelas entidades espirituais que lhe animam a vida interior e eu não as vejo. Que Marta Guerreiro (“Conversas com Animais”) fala com todo o tipo de bichos (em criança até com formigas se entendia!) e eu não falo. Que John Edwards, Teresa Caputo e tantos outros (são milhões pelo mundo fora!) comunicam com os falecidos e eu não. Que a tua vizinha Inês vê antigos escravos a cruzarem o teu quintal e eu nem imagino o que isso é. E poderíamos continuar a lista por aí além. É óbvio que para cada um deles a realidade do que quer que seja é diferente do que é para mim. E, se tivéssemos outros sentidos e outras faculdades, outra seria igualmente a nossa imagem do real e a leitura correspondente.

                   Aliás, quando comparamos a fotografia do Universo dum telescópio espacial com a do mesmo em infra-vermelhos nem nos parece que estamos a ver igual Cosmos. Que visão tem duma pessoa quem, por exemplo, comunica com outrem telepaticamente? Pergunto-me isto desde que encontrei um par de alunos nas minhas aulas de Psicologia que inter-comunicavam deste modo com acertos de 100% (controlado experimentalmente). Para eles um indivíduo não é o que é para mim, evidentemente. Que imagem forma dos familiares a filha de Allison Dubois que lhes lê o pensamento à distância desde miúda (nasceu com tal dom) como a mãe lê o dos assassinos que ajuda a descobrir e condenar, colaborando com a polícia?

                   Por mais real que seja o pendor da realidade que meus sentidos e minha vivência captam, só me pode dar notícia do que meus receptores me permitem captar, de fora e de dentro de mim. Se fora dotado doutros, outras vertentes captaria. Desde o infinitamente grande até ao infinitamente pequeno, esta é a natureza dos dados a conhecer e a estrutura do meu confronto com eles, na procura do conhecimento.

                   Já Immanuel Kant (“Crítica da Razão Pura”, séc. XVIII) nos alertava para isto: o que conhecemos é o que nos aparece na consciência, nunca a realidade em si para além e fora dela. O dado transcende-me de modo absoluto a dois níveis: primeiro porque só lhe apreendo as vertentes para que tiver receptores; segundo porque só lhe apreendo imagens, representações na minha consciência – por mais fotografias que tire duma pessoa, são sempre figuras dela, nunca são ela própria, não é verdade?

                   Tentamos ir colmatando o primeiro fosso apurando indefinidamente mais longe os receptores de que dispomos (que distância da luneta de Galileu aos telescópios espaciais!), sabendo, todavia, que é um itinerário ao infinito. E nunca mais pararemos.

                   Tentamos ir colmatando o segundo desmultiplicando indefinidamente as abordagens, com modelos cada vez mais apurados, com precisões cada vez mais finas, sabendo, igualmente, que é um itinerário ao infinito. E também aqui nunca mais pararemos.

                   A aflição Kantiana porque isto não lhe permite atingir a coisa em si,   confundida com a realidade, é fruto dum equívoco. Aparência na consciência, no sentido do que aparece, de aparição, dá-nos notícia da realidade exterior ou interior, e a própria consciência requer o controlo de que é assim, a fim de o distinguir de qualquer alucinação, ao mesmo tempo que o reafirma, na intencionalidade, como outro que ela própria (mesmo na nossa vida íntima). Aparência na consciência mas tida como irrealidade, falsa imagem dum real inatingível, é o fruto kantiano contaminado pela visão da perfeição entendida  como o que é fixo, acabado, definitivo, o círculo fechado nele mesmo. É efeito da leitura falseada da ordem estabelecida como plenitude acabada, para a eternidade, com a temporalidade abolida. É uma vez mais a infiltração da concepção greco-latina do perfeito, incompatível com a historicidade, nossa e do Universo. A perfeição é a do itinerário interminável rumo à realização em plenitude de cada um e de todos que, após a morte, continua até se consumar na comunhão plena com a inesgotabilidade do Infinito, sempre a inovar-se pela eternidade além. É todo o contrário da visão fixista, anti-histórica, anti-religiosa herdada da cultura clássica. Corrigido o ponto de vista, não há nada de angustiante em vermos as coisas como são, pelo contrário. É bem mais empolgante até uma perpétua aventura à descoberta, cada vez mais gratificante, até gratificar em plenitude, sem nunca esgotar as surpresas da festa pela Infinidade fora.

 

                   5 – Isto, contudo, elimina qualquer pretensão duma verdade absoluta, tanto para si próprio como para outrem: toda a verdade é uma verdade-a-caminho, em qualquer que seja o domínio, profano ou sagrado, natural ou sobrenatural, exterior ou interior, sensível ou vivencial.

                   Nem poderia ser doutro modo. Se Deus é energia de inesgotável dinamismo (e não pode ser doutra maneira, senão não é Deus), não pára num estado acabado em momento algum, fixo, limitado, determinado, totalizado. Deus não é totalidade, é Infinito (Emmanuel Levinas, “Totalité et Infini”): é, perenemente, por inteiro outro por toda a eternidade.

                   Aliás, é o que nos manifesta através do Universo, o corpo de Deus, desde sempre. A nossa miopia é que só o conseguiu ir descobrindo desde há poucos séculos, porventura decénios: tudo é um interminável movimento, uma perpétua transformação, com novidades inesperadas todos os dias. Também neste sentido o Cosmos é sacramental: manifesta a glória divina, como canta o salmista. Desde a expansão do Big-Bang de há cerca de 13,5 biliões de anos ao seguinte eventual Big-Crash, até ao ciclo posterior e anteriores, nada pára, nesta respiração cósmica da eternidade, de era em era modelando o espaço-tempo. Este é o rosto visível da intimidade divina, através do qual nos fala, se a quisermos ouvir também neste pendor.

                   O que distingue a sensatez da loucura é a atitude que cada um tomar perante a verdade, qualquer que ela seja e seja em que domínio for: se for verdade a caminho, é sensato; se for verdade acabada, é louco. Qualquer das atitudes inaugura um itinerário: a verdade a caminho culmina na sabedoria; a verdade acabada culmina no genocídio. Entre o ponto de partida e o de chegada há muitas posturas intermédias ou no trilho que trepa à montanha ou no que escorrega no abismo, uma vez que ambos operam na vida de cada qual como um gradiente. Daí ser viável sempre a reconversão, quer num, quer noutro dos sentidos (e há-as sempre em ambos).

                   O mais estranho, todavia, é que as conversões se dão, em norma, relativamente à teoria, ao modelo proposto (secular ou religioso) e praticamente nunca relativamente à atitude que se toma ao acolhê-lo, como se todas fossem iguais ou, se diferentes, irrelevantes. Quando, afinal, é aqui que bate o ponto: daqui é que depende ser para salvação ou perda, uma vez que são as práticas que o determinam, nunca as concepções nem as crenças, as teorias.

                   Já Lenine, antes da morte, desaconselhara a escolha de Estaline para lhe suceder, a pretexto de que ele se limitava ao aparelho do Estado-Partido, desinteressado e desligado das massas. Não se terá perguntado porquê. Ora, é um resultado óbvio: se ele detinha a verdade absoluta, não fazia mais sentido confabular com as populações. Era só esquematizar a teoria, reduzi-la a tópicos-esqueleto (toda a obra escrita estalinista é apenas isto) e tirar a lógica conclusão: todos os oponentes massacrados  às dezenas de milhões no Gulag siberiano, em intérminas purgas. O erro não estava na teoria, mas na atitude perante ela: tomada por verdade acabada, absoluta, leva directamente ao extermínio.

                   Os herdeiros, por mais revisões e condenações que fizessem disto, ficaram sempre pelo modelo teórico que ali levou, nunca chegaram à reconversão da atitude perante ele: uma vez definido o desvio, voltaram todos a aderir à revisão como uma verdade absoluta, mais intocável que uma revelação divina. A asneira não teve mais fim, por absurdo que pareça (e é), a culminar na declaração pouco menos que inteiramente louca de que já tinham alcançado o socialismo, doravante deveriam construir o comunismo. Completamente alheia à realidade, como à loucura compete, pouco depois ocorreu a derrocada, quando o povo foi chamado a pronunciar-se.

                   Quando o romancista inglês Graham Greene se converteu ao catolicismo, o comentário comum foi que isto causaria mais engulhos que congratulações, dado o carácter inconvertivelmente crítico do autor, o que não concordaria com a mentalidade romana. Não seria nunca um incondicional, como os contemporâneos J. K. Chesterton ou o Nobel francês François Mauriac (seu rival no escrutínio deste prémio). Nunca ninguém comentou que aquela é que era a atitude correcta que poderia ajudar a reconverter a predominante mentalidade católica de massas acríticas, acéfalas, perdidas em rotinas crendeiras, mais ou menos supersticiosas, na atitude errada perante a verdade: tida por intocável e acabada duma vez por todas.

                   O mesmo ocorreu aquando da adesão de Jean-Paul Sartre, no final da vida, ao comunismo: todos sublinharam o desconforto para os comunistas, ninguém referiu a achega decisiva que poderia ter sido a dum espírito eminentemente crítico a um acervo de gente com atitudes dogmáticas sacralizadas que por fim arrastariam à derrocada e ao descrédito mundial de hoje em dia.

                   Ainda agora a generalidade crê que qualquer erro nestes domínios é do modelo, da teoria, das soluções, quando, quaisquer que sejam as críticas a operar aqui, o problema de fundo desta doença é da atitude: a sacralização, a intocabilidade, a dogmatização definitiva, todos a fazerem vénias à verdade revelada, o que leva, por extensão, a fazerem-nas aos seus proclamadores e executores, doravante mudados em incarnações divinas (mesmo e até mais ainda entre os ateus). Este é o cerne da moléstia. Quando a atitude é generalizada, é uma epidemia, tão ou mais mortífera do que qualquer outra (aquela é da mente, mais difícil de diagnosticar, detectar nas ramificações e curar que as corpóreas).

                   Às vezes nem damos por ela. Quando acabei de vez com a minha intervenção na formação de professores não fiquei com saudades. Justifiquei para a maioria que já andaria fatigada. É verdade, mas havia outra razão de maior peso: cada vez mais os docentes mais novos me encaravam como um oráculo, fonte de revelações do outro mundo. Já não iam a um curso, a um colóquio, antes iriam à consulta duma nova pitonisa de Delfos. Ainda quando era um por acaso, vá lá, reconfortava-me no diálogo com a maioria, numa base saudável. Mas quando um curso inteiro, como ocorreu num que monitorei na Universidade Autónoma de Lisboa, embarca em tal atitude, é mesmo desconfortável, é doentio e eu fiquei sem fugas, só abandonando.

                   Entendi ao vivo como nasce o culto da personalidade: não fora sentir-me mal com a postura daqueles licenciados, ficaria lisonjeada e deixar-me-ia contaminar pelo desvio, findando tão desequilibrada como eles, com um ego descomunal duplamente errado e falso, primeiro por ser um ego e não um eu fiel à minha interioridade, depois por corresponder a uma ilusão inteiramente fantasista, sem base em realidade nenhuma. Seria uma deusa do Olimpo, com sabedoria absoluta, dispensadora única duma Luz que era apenas minha. Encheria o peito em cortejos de vitória, coroada como um César, como a Virgem num andor, até algum miúdo na rua gritar, impávido: “a rainha vai nua!” E findar na sarjeta, como todos os falsos deuses findaram. É onde os fanatismos acabam inevitavelmente, depois dos incontáveis danos humanos que perpetram pelo caminho.

                   Estes, aliás, manifestam-se desde logo por lesões bem pequenas. Quando o Partido Comunista perdeu a Câmara de Almada, os militantes fanáticos que ali o consideram como único partido, detentor e revelador da verdade absoluta, a “via correcta”, mobilizaram-se para ir de realização cultural em realização cultural (concertos, exposições, festas de rua...) para gritarem, por exemplo: “onde está a presidente?” e quejandos comentários agressivos. Incomodam toda a gente com os despropósitos e desrespeito, mas é onde a sacralização leva: se têm a verdade final, como tolerar o diferente? Ele é sempre, inexoravelmente, o erro. Os defensores dele estão, portanto, errados. Como são inteligentes, têm o dever de buscar e reconhecer a verdade: logo, como o não fazem, são culpados. Ora, vamos ter respeito por indivíduos culposos? Aguardar por momentos oportunos? Não! É rechaçá-los a torto e a direito, sistematicamente. Não merecem a consideração de ninguém. Só os não linchamos muito estalinistamente, muito maoistamente porque não detemos o poder, senão... É a lógica interna da morbidez, logo desde o militante de base. São todos psicologicamente doentes e podem infectar um povo inteiro, um continente inteiro, o mundo inteiro. As pandemias não são apenas de vírus e bactérias. Aquelas revelaram-se até agora bem piores e bem mais indomáveis. É ver o extremismo criminoso do Estado Islâmico, por exemplo: tudo crendices primárias absolutizadas a correr de mão em mão e, logo, uma série de bandos organizados de assassinos.

                   É preciso não esquecer que foi a mesma moléstia que alimentou as Cruzadas, a Inquisição, as guerras religiosas (de outrora e contemporâneas) e que hoje continua a alimentar a sistemática perseguição a todas as dissidências, crentes ou seculares (excomunga-se duma igreja, mesquita, sinagoga como se expulsa dum partido: é sempre em nome duma verdade estabelecida, como se estivera ali acabada para a eternidade). Temos o deus aqui aprisionado em nossa mão, é um deus metido no bolso! Mesmo se somos ateus, o que é divertido: todos ateus graças a deus, por conseguinte!

 

                   6 – Como é que isto, uma clara doença psicológica que pode até levar à loucura, é universalmente identificado como a característica típica da religião? Por um motivo evidente: é que todas as religiões acabam por cair predominantemente neste buraco, a nível da massa de crentes. Nenhuma lhe logrou escapar até hoje. E é tanto mais grave quanto maior o número de fiéis, daí que seja a Igreja Católica a mais atingida.

                   O pior é não se ficar só pela multidão anónima de crentes: é dificílimo resistir ao culto da personalidade. Todas as hierarquias findam por passear processionalmente a sua imponência (e opulência), a pretexto de que é homenagem a Deus (contra o que é a respectiva crença e o dinamismo da espiritualidade intimamente assumida e vivida). “Ama e faz o que quiseres” – resumia já Sº. Agostinho no séc. V: que é que aquilo tem a ver com amor? Disputam-se, aliás, lugares e primazias: que é que Jesus retorquiu aos que lhe pediram isto em vida? (“O Vaticano contra Cristo” – I Millenari).

                   A generalidade dos participantes processionais deixa-se levar pela consagração pessoal, é a marcha de triunfo do César. E toca a todos, do topo até à base, cada um colhendo simbolicamente os loiros que coroariam a divindade (afinal disto ausente, no alheado íntimo das participações). É a afirmação individual que conta na maioria dos casos, em busca do reconhecimento e veneração alheia. Ora, Deus, o Espírito não tem nada a ver com isto. É apenas o reverso do endeusamento do contexto religioso pela generalidade dos crentes, é o culto da personalidade disfarçado de homenagem a Deus. Não há aqui qualquer acto de amor por ninguém nem por nada: é, portanto, alheio em regra a qualquer vivência espiritual. É mera entronização própria, meio envergonhada por trás da máscara. E é difícil, mesmo individualmente, vivenciar outra coisa: cada qual sente-se incensado, partilha quase como se fora um deus deste culto divino falsificado.

                   Todos sentimos isto, aliás, quando visitamos, por exemplo, a casa dum grande escritor, músico ou dum desportista que admiramos: entrar lá é como partilhar da vida dele, ficarmos grandes como ele foi, fazer uma simbiose com a qualidade que o distingue. A minha colega Ângela foi a Paris e, quando nos encontrámos, a primeira coisa que me contou, de olhos a rebrilhar de entusiasmo, foi que visitara a casa de Victor Hugo! Como se isto lhe transmitisse algo da grandeza dele! Embora ilusória, todos vibramos com esta ilusão, é muito gratificante. É quase impossível distanciarmo-nos disto e, vivenciando a emoção que nos exalta e que nela não tem nada de mal, pormos os pés na terra e reconhecermos que em nós nada mudou, não se transfundiu para nós nada do nosso ídolo. Somos tão insignificantes, tão irrelevantes como antes fôramos.

                   Claro que seria inteiramente irrisório como é que cada um vivencia uma procissão, se fora apenas isto. O problema é que é um insignificante afloramento dum imenso icebergue: todas as hierarquias, aliando o culto da personalidade à vontade de poder, findam na prática por substituir a espiritualidade por rituais e instituições, legitimando-os como tradições sagradas. A vivência pessoal da intimidade com Deus fica de parte, trocada por praxes humanas que pretensamente a servem. De facto, em concreto, obstaculizam-na, na generalidade dos indivíduos, a todo o momento, operam como escudos contra ela: bastam estes, cumpridos à risca, para o comum das gentes acreditar que satisfez a exigência interior de espiritualidade. Aliás, chega a crer (e a tentar) manipulá-la em seu proveito por esta via, num proliferar de superstições ingénuas. Aqui, então, está tudo do avesso, portanto.

                   E já nem falo da feroz defesa do poder contra tudo e contra todos, até sem olhar a meios. É só ver a história...

                   O risco (e a queda) é tanto maior quão mais hierarquizada é a religião. No cristianismo é onde mais perversão se dá, pois só há um pouco de menos marca hierárquica na ortodoxia e nas igrejas orientais. Judaísmo e muçulmanismo têm mais facilidade, uma vez que não copiaram o modelo do Império Romano. O mesmo ocorre no Extremo Oriente com o hinduísmo, budismo, xintoísmo e demais correntes.

                   Importa sublinhar, todavia, que este traço da sacralização de concepções e práticas rituais e morais, com os correspondentes comportamentos e atitudes de subserviência cega, por parte dos fiéis, embora constatáveis em todas as religiões, não é o que as caracteriza no fito que visam, é o que caracteriza a corrupção delas, é, em concreto, o que em todas elas é anti-religioso, a degradação, a degenerescência da religiosidade autêntica. É a falência planetária.

                   Todo aquele que assentou de vez a espiritualidade numa teologia qualquer, num sistema de crenças, num credo de dogmas definitivos e intocáveis, em rituais milenares, não tem mais que procurar, tem a solução final, ficou definitivamente em paz. Será? A verdade é que trocou o Infinito por toda aquela teia de ídolos históricos, aprisionou-se dentro duma determinada temporalidade, não tem mais caminho a fazer. O seu deus é um conjunto de construções humanas que ele pretende que são a Eternidade. Com isto fechou-se aos apelos dela, tornou-se por escolha própria cego e surdo. É exactamente o contrário do que pretende qualquer religião: derrubar todos os ídolos, pondo cada um de nós a caminho do Infinito, por definição inesgotável, por definição inidentificável com qualquer ponto de passagem – tradição, revelação, crença, ritual, dogma, seja lá o que for – tudo marcos históricos, relativos e transitórios, mais nada.

                   Quem confunde a escadaria monumental do Bom Jesus de Braga com o santuário do cume da montanha, nunca chega a atingi-lo e leva os mais a ficarem pelo caminho. E quem define a religiosidade pela multidão perdida pelos degraus, a pagar eventuais promessas pelas capelinhas, ignorando aqueles que não vê porque estão invisíveis dentro das paredes do templo, não entendeu nada da espiritualidade e transmite dela uma visão antitética, inteiramente falsa. Ora, esta é a conjuntura dominante da cultura mundial. Se conseguirmos algum dia ser espiritualmente autênticos, talvez então isto mude. Por agora damos todas as (falseadas) razões para o engano.

                  

                   Meu Deus, onde isto já vai! Agradeço-vos muito a paciência que tendes tido em me aturar. Espero bem não andar para aqui a mandar-vos um chorrilho de asneiras. Se assim for, é fácil o remédio: joguem tudo isto para o caixote do lixo.

                   Como me dá, todavia, uma alegria inacreditável, continuem a remeter-me mais questões. Para mim é muito gratificante, nem que seja para depois se deitar tudo fora, não importa. É um gozo do outro mundo fazer esta caminhada, nem podeis imaginar! Só queria poder partilhar convosco tanta euforia.

                   Muito e muito obrigada por me permitirdes esta oportunidade.

                   Um abraço até ao fim do mundo da Sofia.

 

 

                   Chão de Vivos, 6 de Setembro de 2018

 

                   Caro Luís:

                   Também não conheço ninguém, em lugar oficial, entre cristãos, que tenha concordado (ao menos publicamente) com a proposta do perseguido perito conciliar Hans Kung (“O Islão”) para se reconhecer Maomé como profeta, ao menos como profeta para os muçulmanos. Claro que era pedir demais, no marasmo actual do ecumenismo, controlado por hierarquias todas muito ciosas... Pelo menos no movimento ”Nós Também Somos Igreja” não vejo como objectar, pois se ali, para alguns, até Karl Marx é canonizado e Che Guevara é mártir! Como recusar?

                   Mas sabes? Isto para mim é tudo muito irrelevante. Que é que aquilo muda na vida espiritual dos indivíduos, dum lado ou doutro? Porventura nada. E, quanto mais institucional, menos impacto: tudo são formalismos rituais. Se calhar nem os líderes se reconverterão em pendor nenhum. Quanto aos crentes, passa-lhes ao lado: se mutuamente se acolhiam, continuam a acolher-se; se se repudiavam, repudiam-se por igual. A quem tocaria tal evento? E até onde? Decerto não iria espiritualizar o fanatismo primário do Estado Islâmico ou da Al-Qaeda, nem findar-lhes os crimes contra a humanidade. Pelo contrário, cantariam vitória e agravariam a respectiva criminalidade organizada. Quem é que isto instigaria a virar-se para dentro de si próprio e a questionar-se acerca de que atitudes amorizam laços e afectos e de que atitudes os destroem, a quaisquer níveis (pessoal, familiar, comunitário, nacional, mundial...), de modo que, a partir daqui, desate cada um a transformar-se, transformando para melhor o Universo? É muito pouco provável... De algo valeria, mas...

                   Por mim, é de cavar mais fundo. Que importou retirar a condenação a Galileu trezentos anos depois? Nem sequer levou a anular as penalizações a Hans Kung e a tantos mais galileus contemporâneos, pelo mundo fora, só porque teimam em mostrar que não é o Sol-Deus que gira à volta da Terra, mas esta à volta daquele, queiram-no ou não os que afirmam servi-lo e, afinal, o pretendem ingloriamente aprisionar no dogmatismo das mentalidades, tradicionalismos, ritualismos, conceptualizações... Nisto não resta Deus nenhum, é um mecanismo de relojoaria que continua a rodar, mas a que perderam os ponteiros há muito, na poeira dos carreiros ínvios da história: não aponta a hora do Espírito a ninguém. Ao invés, tenta convencer toda a gente de que espiritualidade é aquilo, aquele vazio mecânico, a marcar passo na parada do mundo, prestando honras e apresentando armas a uma bandeira qualquer, mero farrapo no topo dum mastro, travestido de Deus vivo. O carnaval do Espírito...Só que não riem, tomam-no muito a sério. É pena.

                   Vou contar-te um momento meu de libertação interior. Quando fiz o Curso da Universidade da Paz (Bélgica), o mentor dela, Prémio Nobel Dominique Pire, que era simultaneamente padre e monge dominicano, ao apresentar-nos a instituição, na margem do Rio Mosa, indicou que dispunha na cave dum compartimento reservado ao culto religioso. Ali ocorreria, no mesmo espaço, em horários diferentes, o católico, o protestante, o muçulmano, só não tinha naquele momento garantido o judaico, mas continuaria a tentar encontrar alguém para a ele presidir, caso fora por nós pretendido. A desenvoltura com que simplesmente acolheu todos, a igualdade de trato, apesar de o sabermos frade católico, a partilha igualitária do espaço comum para cada qual poder ser quem era, a ausência de qualquer juízo de valor, de qualquer sectarismo, de qualquer prioridade, isto tocou-me fundo, jovem que era então, muito ingénua no meu infantil catolicismo. Foi de tal ordem que, deslumbrada com tão pouco, logo deliberei libertar-me da obrigação dos mandamentos da Igreja, não indo ali a nada, perante a evidência do abuso de poder, da manipulação de consciências que é, por exemplo, a imposição do culto dominical aos crentes, ainda por cima sob pena de pecado mortal (como se me inculcara criminosamente desde a catequese de criança).

                   Em que é que se tornara o convite para a Ceia, que é que era, afinal, a romaria para a Festa, em que derivara a celebração do sublime, o vislumbre do Infinito? Um arrebanhamento forçado por mercenários, armados do poder de coacção moral (quando não doutro bem mais letal, como história além e ainda hoje ocorre), a encarneirar todo o povo para a caserna-igreja, forçando-o à violência militarista de penitências, jejuns, abstinências, complexos de culpa, escrupuleiras e sei lá que mais, pior que qualquer treino de tropas especiais, porque ali orientado cinicamente a acorrentar a vida inteira.

                   Respirei fundo e senti-me libertada. Deixara-me algemar por uma mentira colossal. Ainda bem que o meu libertador anónimo era um frade: havia outra igreja na Igreja, nem tudo era a tropeada do rebanho domesticado, de cabeças cortadas e corações mirrados, no fumeiro herdado de velharias mortas.

 

                   1 – Tenho ouvido regularmente a notícia de que há um movimento de hierarcas para destituir o actual Papa Francisco, ultimamente acelerado por uma eminência qualquer, a pretexto da moleza dele ao enfrentar a pedofilia do clero americano. Isto tem-me lembrado insistentemente o momento em que Pedro é questionado pelos cristãos convertidos do judaísmo (Actos,11) por ter convivido com incircuncisos e comido com eles. Como Deus concedera a estes o mesmo dom que aos mais, Pedro pergunta quem é ele para poder opor-se a Deus.

                   O mais curioso é que isto, se no momento acalmou os circunstantes, foi sol de pouca dura. Logo depois o debate enfurece-se em Antioquia, com os judaizantes a exigirem a circuncisão e a subserviência à lei mosaica, o que obrigou Paulo e Barnabé a reunir com todos os outros em Jerusalém. Mais uma vez, Pedro argumenta que, uma vez que Deus dá o Espírito Santo generalizadamente, sem distinguir ninguém, então ninguém pode impor aos mais um jugo que nem Deus impõe (Act 15). Só importa preservarem-se de actos imorais, mais nada. Isto gerou e generalizou a alegria.

                   Parece que a partir daqui terá ficado tudo em paz. As perseguições são de fora, dentro prepondera a harmonia. Será mesmo?

                   Sempre me perguntei porque é que ninguém reparou naquela reincidência do problema: como é que os vencidos ficaram tão definitivamente convencidos? Isto na vida real não é nunca assim: a gente reconverte-se, abre os olhos, reajusta-se muito lentamente, com intérminos avanços e recuos, demora anos e anos, dura a vida inteira. O próprio facto de aquilo ressurgir noutro contexto o comprova. Como é que depois fica tudo em silêncio?

                   Por uma razão óbvia: é que, a partir daqui, eles, os opositores de Pedro e Paulo, venceram. E venceram definitivamente, já lá vão dois mil anos.

                   Claro que o contexto é insidiosamente outro: a lei doravante não vem de fora, do judaísmo e Moisés, vem de dentro, é da Igreja. Usos, costumes, rituais, concepções, acordos, teologias, entendimentos... – tudo, seja lá o que for, uma vez assente, tende a ser lido como vontade de Deus e como tal intocavelmente acatado. E provém daí todo um rio de dogmas e dogmatizações, “sem os quais não há salvação”. Isto é a Igreja onde se tem de entrar, senão não abrimos a porta do céu: é a confusão completa entre instituições eclesiásticas (cada vez mais complexas, século a século) e a espiritualidade vivida, o amor incarnado em concreto, a ponto de este findar por inteiro obliterado, não ser tido em conta para nada. E, é evidente, quem não entrar por aqueloutra porta fica lá fora, como em tempos de Pedro e Paulo pretendiam os opositores.

                   Como Pedro e Paulo já morreram há muito, ei-los de vez derrotados. Confrontos houve-os sempre pelos séculos além. Sempre com o mesmo resultado: excluir, nunca integrar nem acolher. O Concílio do VaticanoII foi excepção? Bastou esperar pelo pós-concílio, que logo os gentios foram todos corridos! O que importa é preservar a herança, nada de inovamentos em sentido nenhum: só mudar tudo para que tudo fique tal e qual.

                   O mais estranho destes dominadores cronicamente antagonistas é não se darem conta de que qualquer tradição principiou como uma novidade arrebatadora que entusiasmou em dada época e contexto cultural. Só porque foi o inédito libertador mobilizou e findou por se impor. Deixando de ser aquilo com o tempo, apela a que outro imprevisto idêntico lhe continue o itinerário de descoberta e plenitude. Consagrá-lo, ao invés, sacralizá-lo, dogmatizá-lo mata-o de vez: é um cadáver de antanho que arrastamos no presente e com que enfiamos todo o mundo num cemitério, a enterrá-lo, com muitos cânticos sagrados, nos túmulos por ancestrais abertos.

                   O que era um tesoiro de inúmeras riquezas inspiradoras para quantos queiram ir à descoberta de mundos novos, devém, por mão duma hierarquia totalitária zeladora dos mortos (que dominou gradualmente as igrejas desde há dois milénios, com a católica à frente, a servir de paradigma a todas, até a todas as outras religiões), devém numa interminável capela de ossos, fruto duma peste negra qualquer, onde pretendem obrigar-nos a prestar culto definitivamente. Sepultados em vida, portanto.

                   Curioso é que a peste nunca é dos ossos: estes evocam-nos os vivos que os utilizaram para protagonizarem sonhos, aventuras de vida, heroísmos. A peste é do uso que lhes dão: enterrar a vida exuberante num ossário e cantar-lhe loas, uma vez enterrada. A técnica é milenarmente a mesma: primeiro condenar à morte qualquer galileu que apareça, atar-lhe à boca uma mordaça e, eventualmente, aguardar que morra. Uma vez bem morto e definitivamente ultrapassado, trezentos anos depois levantar-lhe a excomunhão, se alguém insistir. É já de vez inofensivo para a ordem estabelecida, cada vez mais desordenada e desordenadora, por conseguinte, a nível dos corações, na razão inversa da cristalização institucional, o aparato e a aparência das exterioridades.

                   O efeito final é que isto acrescenta ao espólio mais uma gloriosa ossada, aumentando o peso e a força daquela hierarquia rumo à mortandade universal. É um pendor predominante que fatalmente se generaliza e vem mantendo pelas eras.

                   Qualquer vivência religiosa, uma vez institucionalizada, cairá nisto: os carismáticos, uma vez falecidos, dão lugar a funcionários e mercenários. Em nenhum destes é provável atear e menos ainda arder e prevalecer o fogo original. Ficam e mantêm os gravetos das fogueiras, todos os rituais, todas as palavras, até as teologias, doravante tornadas receitas divinas, momentos da aparição de outrora, grandes memórias onde já nada aparece. Com isto impedem qualquer outra teofania que aflore noutros termos, por outras vias, com outros protagonistas. E o pesadelo vai-se mantendo e repetindo, cada vez mais nos afastando da espiritualidade, do vislumbre do divino, da fermentação do céu na terra. É inevitável ontem, hoje, amanhã, para sempre.

                   Isto é comum a todas as religiões, foi-o e sê-lo-á perenemente nestes termos, história além: todos os profetas são mortos em vida e consagrados, uma vez mortos.

                   Em todas as confissões é tarefa crucial e vital combater e ultrapassar perpetuamente isto, se quiserem ir salvando a Humanidade.

 

                   2 – Quando visitei as catacumbas de Sª.Cecília, em Roma, ao caminhar pelos corredores entre as tumbas sobrepostas do chão ao tecto, dei-me conta de que aquilo é a imagem da igreja institucional e de qualquer religião: montes e montes de santos e mártires acumulados ao lado do estreito trilho por onde caminhamos, mortos e mortos a demarcarem-nos o estrangulado carreiro, sem nenhuma abertura para cima por onde respiremos, sem nenhuma alternativa para os lados por onde espreguicemos os braços, a tonificar os músculos. Vivemos naquela passagem exactamente o contrário do que eles viveram, cobrimos rigorosamente o itinerário do que os nega: a celebração da morte do que neles foi vida. É o que os judaizantes de todos os tempos pretendem: pôr os mortos a comandar os vivos, de modo a impedir de vez qualquer rebento novo de germinar e dar outros frutos. Nem que seja inspirado naqueles, como qualquer planta pelas raízes se alimenta da matéria morta enterrada. Não. Eles lavram o campo dos crentes com a charrua que dobra a leiva para soterrar toda a erva renascente, matando-a, feita estrume, na terra revolvida, de modo a que o arado deixe ao fim tudo lisinho, tudo na paz dum interminável cemitério. Tudo tornado num deserto morto. E acabou.

                   Quando deixamos a história correr espontaneamente é sempre aqui que desembocamos. Até hoje nenhuma religião logrou evitar o predomínio disto. Teria sido preciso muito Pedro corajoso permanentemente a interrogar: se Deus os não discriminou, quem sou eu para ir contra a vontade de Deus? Só que nisto o primeiro não deixou grandes herdeiros...

                   Lembras-te daquele bispo português que, numa entrevista, confirmou que passara todo o Concílio Vaticano II a rezar o terço, para não ouvir nada, pedindo a Deus que o deixasse morrer em breve, para ser ainda dentro da Igreja Católica? Parece uma anedota mas foi verdade. Daria para rir se não fosse tragicómico.

                   Até onde a cegueira judaizante nos pode levar! Mete-se-nos por dentro, molda-nos as convicções e a personalidade e, cheios de boa-fé, até de boa vontade, eis-nos por inteiro cegos e surdos a qualquer apelo do espírito, de coração insensível, de interioridade cristalizada em formulários engarrafados. E, pior, crendo piamente que isto é que é vontade de Deus, quando deixamos Deus lá fora, batendo insistentemente à porta e nós trancados e retrancados para lhe não deixar qualquer eco tocar-nos, não vá vir perturbar a nossa paz sepulcral.

                   Não valeu de nada ao nosso bispo que o Papa João XXIII, feito Pedro contemporâneo, abrisse os braços a todos os que pretendem trilhar as rotas do Espírito. Aquele, ao contrário, coríntio renitente, feito mais um Mons. Lefevbre anónimo mas que não rompeu às claras a comunhão com a Igreja, no íntimo fê-lo e excomungou de seu coração todos os que quiseram acolher a festa da espiritualidade a irradiar alegria pela Humanidade além.

                   E acabou por ser o protótipo de todos os mais, aqui e pelo mundo inteiro, a principiar pelos Papas que receberam o testemunho: em lugar de continuarem, com ele na mão, a corrida, jogaram-no ao chão, parando a estafeta, tomando rapidamente as medidas requeridas a tudo devir inócuo, imperturbável. Foi como se fora um sonho mau, para esquecer.

                   Para o esquecimento, aliás, ser mais fácil, uma grande lista de simulados inovamentos: uma infinidade de caiadelas ao sepulcro que doravante carregamos triunfalmente mundo fora. Ignorando o facto de que é o mesmo ossário, agora ainda mais apelativo, quer dizer, uma ainda mais brilhante vitória dos judaizantes contemporâneos que tudo dominam e talham a seu bel-prazer, tentando enfiar no mausoléu o mundo inteiro.

                   Quando não nos precatamos, faremos todos isto, instalados em qualquer passado onde encontrámos algo acolhedor. E faremos corpo com quem para aí virar. Não vale a pena ter ilusões: o pendor é universal, todos tropeçamos no erro, mal nos distraímos. E apelidaremos de virtude e vida o que é mero vício e rotina de cadáveres ambulantes. Por mais brilhante e espectacular que se nos antolhe e nalgum momento, outrora, eventualmente tenha sido.

                  

                   3 – Não pára de me espantar o facto de termos andado, na Igreja Católica, dois mil anos a celebrar a missa em latim, a orar em latim, a cantar em latim... Uma língua morta há séculos e séculos... Sem ninguém entender nada, quantas vezes nem o próprio celebrante. Ninguém teve um rebate de consciência? Ninguém viu que isto era trair tudo, que a espiritualidade é iluminação, não cegueira, obscuridade? Pior, quando os protestantes reivindicaram a partilha de sentidos na Bíblia, na celebração, em tudo, como é possível que os ouvidos tenham continuado moucos? Quando o nosso D. Frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga, no Concílio de Trento (séc. XVI), clamou que “os excelentíssimos e reverendíssimos participantes precisam duma excelentíssima e reverendíssima reforma”, alguém lhe deu ouvidos? Nada, no sentido em que ele, porventura, pretendia.

                   Claro que houve grandes alterações: enquistaram-se mais, segregaram-se do mundo, pegaram em armas e desataram a matar-se uns aos outros, em longas guerras de religião. Ora, a boa árvore conhece-se pelo bom fruto, já lá prevenia Jesus. Nem aqui, com tal desastre, foram capazes de abrir os olhos? O facto é que não!

                   De nada valeu a Fr. Luís de Leon traduzir para espanhol a Bíblia: apanhou cinco anos de cárcere da Inquisição, a pretexto de que se atrevera a traduzir o “Cântico dos Cânticos”. Apenas pôde depois retomar as aulas na Universidade de Salamanca com a célebre introdução: “como dizíamos ontem...”, anulando e votando ao desprezo os autores daquela ignomínia, como se tal quinquénio nem houvera existido. Hoje tem a estátua no pátio da Universidade e ninguém se lhe opõe, evidentemente. É que podem os hodiernos herdeiros de antanho continuar a perseguir e amordaçar impunemente qualquer luís-de-leon actual e ninguém repara que é o mesmo. É como opera o declive judaizante em todos nós, escorregamos todos.

                   Às vezes o latinório abstruso revestiu formas hilariantes. Quando eu era miúda e espirrava, a minha mãe dizia: “dom bisteco!” Ninguém fazia ideia do que aquilo queria dizer, mas era o uso da aldeia. Só quando estudei latim descobri que era a corruptela popular de “Dominus tecum” – o Senhor esteja contigo. Prendia-se à ideia de que o espírito podia largar a pessoa, ao espirrar, e ela morreria, uma vez que Deus o soprara em Adão (Gén. II) quando o criara e assim o tornara vivo (a criança que nasce e não respira fica morta, claro). O primarismo básico destas interpretações é confrangedor mas a ingenuidade inocente e ternurenta leva a sorrir.

                   De igual modo, quando vejo um celebrante paramentado, fico confrangida. Vá lá que já largaram a batina! Mas nem naquilo seremos capazes de deixar os mortos enterrar os mortos? Teremos mesmo de nos escravizar uns aos outros, permanentemente, atados à circuncisão mosaica, seja ela qual for, em todos os domínios e em qualquer sentido? Ninguém ausculta o coração? Ninguém ouve a intuição íntima?

                   A verdade é que todos temos sensibilidade e afecto, todavia recalcamo-los, não os assumimos, ficamo-nos por contestações incongruentes, meramente germinais.

                   Recordas decerto que me contaste que, eras tu um pequeno púbere a frequentar o seminário de Trancoso, em Gaia, quando, após uma tarde de passeio, um dos vossos professores (que era padre) ironizou que vira na véspera uma enorme multidão de viúvos a processionar estrada fora. Perante a vossa infantil perplexidade, continuou, gozando: “sim, todos de fato e gravata preta, parecia um enterro e bem pequenos eram!” Só então vos destes conta de que era convosco: naquele tempo éreis obrigados a tal vestimenta, todos ali bem iguaizinhos no cortejo funéreo. A brincadeira, porém, ficou por ali, sem mais consequências.

                   Bastaria perguntar donde isto provinha, que teríamos muito que mudar, tudo que reconverter. Evidentemente, já findou há que tempos! O problema é que aquilo era uma irrelevante ponta de icebergue, pôde-se quebrá-la sem perder nada. Mas o incomensurável gelo submerso foi derretido? De maneira alguma! Acatámos cortar aquela e outras pontas inócuas mais visíveis justamente para manter invisível a descomunal montanha gelada debaixo de água, onde nenhuma vida é viável, apenas simulacros, palpitações de mortos-vivos. Quando a energia vital nos interpela com força, eufórica, em festa, fazemos-lhe o que o icebergue fez ao Titanic: rasgamo-la de ponta a ponta e afundamo-la no abismo do mar de cotio, sem mais considerações nem testemunhos. Podemos fazer-lhe depois visitas turísticas guiadas, como àquele, quando o transatlântico já estiver de vez afundado e nem restar memória de sobreviventes. É o que as religiões maiormente fazem, mundo fora.

                   Há milhares de anos que é assim. Toda a Bíblia está cheia disto, toda a História também, a de cá e a do resto do mundo.

                   Não haverá mesmo forma de nos livrarmos do pesadelo? É fado humano crucificar todos os cristos que aparecem? Que é do nosso livre arbítrio? Será que não pode mesmo chegar até aqui?

 

                   4 – Quando a poetisa francesa Marie Noel afirma que gosta da missa em latim, uma vez que, não compreendendo nada, aquilo lhe desperta uma sensação mágica do mistério, mostra até onde podemos esticar a tolerância da insensatez. É o mesmo que acabei de sentir durante uma recente visita guiada ao Museu de Música Mecânica, em Palmela: a magia daqueles inventos de antanho, para alegrarem musicalmente as vidas de nossos ancestrais. A mesma, aliás, que acabei de surpreender nos olhos encantados de meu neto adoptivo, o Miguel, na festa do 1º. aniversário dele, quando se esticava em bicos de pés para conseguir vislumbrar tudo o que tínhamos disposto na mesa para os comensais da celebração. É o deslumbramento do ainda intocado olhar de criança que em todos nós persiste quando o mundo se nos revela em algum pendor inédito: uma paisagem arrebatadora, um mar encapelado, uma aurora boreal bailarina...

                   É a vivência da emoção que é a raiz de toda a aventura humana: o maravilhamento perante a beleza, o que envolve inelutavelmente o desafio dum mistério. É fatalmente assim porque toda a realidade é indefinidamente misteriosa, seja lá qual for o grau atingido até onde a já desvelemos. O espanto é que nos atira para diante, a descobrir que é aquilo que nos deslumbra, a aumentar a nossa comunhão mútua. Como entre enamorados, em tudo o que de amor já vivenciam, rumo a uma plenitude sempre aproximável, inesgotável definitivamente, eternamente apelativa. Este é o padrão de referência para os relacionamentos, quer comigo, quer com os outros, quer com o mundo e o Universo.

                   Só que é apenas o ponto de partida. O deslumbramento é para a descoberta, é para atrair a corrida da Humanidade. Ou há revelação ou frustra. Como qualquer namoro que não ata nem desata, quando a frustração se torna dominante, acaba-se com tudo. E pode ser a relação mais promissora do mundo, é insustentável se ficar por ali.

                   É o que constatamos desde a era moderna em todo o mundo ocidental: uma sangria permanente de crentes a tornar-se indiferentes ou agnósticos, quando não ateus convictos e mesmo militantes. Se da área das religiões não há itinerários a sério, é pô-las de lado e procurar noutros horizontes, como em qualquer outro relacionamento sadio. Longe de ser um mal, isto é o cumprimento da vontade de Deus perante a traição da fé: a Humanidade debanda como o espírito lhe ordena, mesmo ignorando-o, sempre à procura da própria salvação, a única vontade fundadora de Deus. Acerte ou erre, vai a caminho. As religiões, não, predominantemente: continuam a tentar enclausurar tudo e todos no recinto do gado, mesmo com as pastagens secas. E, uma vez mais, é igual em todas. Tudo em sentido ou a marcar passo no mesmo lugar, a fingir movimento. A parada militar dos peritos em morte. A anti-religião, a anti-fé, o anti-espírito. A corrupção do óptimo a gerar mundialmente o péssimo. Há séculos, há milénios.

 

                   5 – Há umas semanas atrás, o meu genro escolheu descontrair cá em casa jogando computador. Pus-me a observar o realismo e o colorido de figuras e paisagens e fomos comentando a sequência de episódios. Aquilo é extremamente bonito e a aventura, cativante, em cada patamar visado e atingido.

                   - Qualquer miúdo que aqui entre – comentou ele – fica definitivamente apanhado: não vai comer, não estuda, não convive, não fala... Fica capturado na rede como uma mosca na teia: deixa de viver e nem dá por isso. Se não for prevenido e controlado pelos adultos, é o fim. Acaba logofrénico, o doente apanhado pelos sistemas digitais, completamente desequilibrado, sem pontes para o mundo real. Aí, só com tratamento já e é se tiver a sorte de encontrar terapeuta à altura. Doutro modo, acaba num universo de fantasia, inteiramente alucinado, pior que os loucos acabados de antigamente.

                   - A vida real torna-se-lhe desgostosa. Não admira: aqui é tudo deslumbrante. Até o modelo de prémios e desafios. Quem dera que o dia-a-dia fosse assim!

                   - Curioso é ninguém ter adivinhado aquele resultado pernicioso. Nem sequer como ameaça. Toda a gente foi apanhada desprevenida. Agora é tentar remediar, mas há muitos estragos pelo mundo fora, milhões de miúdos desequilibrados. A maioria dos pais, aliás, não entende nada disto e, portanto, não faz ideia nenhuma do que fazer. Este é outro mundo com que nunca se confrontaram, na vida anterior deles.

                   Dou-me conta de que foi isto que ocorreu no arranque das religiões. O deslumbramento cativou os mais directos cultores, a ponto de não lograrem manter as pontes para a vida quotidiana. Ficaram fascinados e reduziram tudo ao fascínio. Montaram tendas no Monte Tabor e desde então recusam-se a descer as vertentes para fermentar o mundo. Ao invés, tentam enfiar tudo e todos nas barracas provisórias, tornadas definitivas, por mais rotas que estejam e que o fito seja incomportável.

                   Quando é denunciado o alheamento do real, não retornam ao vale, remendam os buracos com panejamentos vistosos, o que atrai sempre uns tantos ingénuos desprevenidos. E é logo motivo de enormes regozijos triunfalistas. Até ao novo marasmo. Não têm qualquer noção da doença nem do caminho da cura.

                   O que tudo isto torna gritante é que aquilo com que nos deparamos na vida, até uma revelação divina, é por nós usado para bem ou para mal, rigorosamente com potencial idêntico. Queiramo-lo ou não, toda a realidade exterior à nossa vontade reveste este estatuto. É fatídico: temos de escolher. Pior: o bem ou mal que fizermos não depende da intenção (“de boas intenções está o inferno cheio”) mas do efeito que no mundo em concreto provocarmos (“a boa árvore conhece-se pelos frutos”). É tanto com um jogo de computador como com uma revelação espiritual. Não há excepção em domínio nenhum da vida, esta característica é inelutável.

                   Mesmo a vivência espiritual mais arrebatadora, ao ser retomada, pode sê-lo da maneira mais aniquiladora, a esmagar todo o ímpeto que a animou, destruindo por dentro o povo inteiro. Pese embora toda a boa intenção, toda a boa vontade dos respectivos mentores. O bom uso dum ou de muitos não garante nada contra o mau uso doutro qualquer nem de muitos outros. Tanto mais provável, aliás, quanto maior o arroubamento: os olhos deslumbrados só vêem a luz, tendem a ficar cegos a todas as sombras do mundo e da história.

                   É uma ingenuidade, portanto, acreditar que adoptar uma boa prática, um excelente caminho, leva a bom termo. Pode, ao invés, bloqueá-lo: depende de como for usado. E, aliás, quanto melhor for, pior o efeito quando pervertido. E pior ainda se for de boa fé e cheio de boas intenções: como denunciá-lo?

                   Esta ingenuidade é que pautou até agora as escolhas de todas as religiões: todas creram até hoje que adoptar um bom trilho garantiria a generalização da bondade dele. Erro crasso: garantiram foi a generalização do apodrecimento do ponto de partida, predominantemente. E não há como escapar, se o rumo continuar o mesmo: em lugar de fermentar a massa para cozer novos pães, isto apenas leva a transformar a massa inteira em fermento podre, como tendência dominante. É o efeito incontornável, pelo menos, da banalização, da superficialidade de todas as generalizações – ficar preso aos formalismos, aos gestos exteriores, mecânicos, sem qualquer vivência íntima que lhes empreste vida e os projecte vida além. E nem falamos da caducidade histórica...

 

                   6 – Sabes que não consigo ver nenhum canal de televisão confessional? É verdade. Sempre que o tentei, desisti de tédio. Às vezes até de revolta. Sectarismo, dogmatismo, inautenticidade espiritual... Ou, então, folclore disfarçado, muitas festas, como se fosse preciso juntar mais estas às que proliferam mundo fora. Algo de verdadeiramente sério? Sim, a rotina de imensos lugares-comuns, frases feitas, banalidades de base, receitas decoradas, algumas até com séculos de bolor bafiento (mormente os dogmas que as igrejas atiram à cabeça umas das outras). Ou, no pólo oposto, grande gritaria emocional: espremida, não tem nada dentro.

                   Em contrapartida, fico fascinada com as séries dos médiuns (John Edwards, Teresa Caputo, Tyler Henri...), dos curadores, dos que apoiam famílias e jovens com faculdades novas que os perturbam, como os que vêem e falam com os falecidos.

                   Quanto a livros, se não tolero há muito os ditos piedosos, pejados dum sentimentalismo delicodoce, muito pouco espirituais, sem real vida interior e, menos ainda, sem sensibilidade para auscultá-la, devoro, ao invés, quanto me chega de meditadores, mentores espirituais sem confissão definida, romancistas tocados pelo movimento Nova Era, teólogos perseguidos...

                   Só agora entendo o meu professor de Dogmática no Curso de Teologia que, um dia, nos afirmou que, percorrendo a história da Igreja, eram sempre os hereges com as propostas deles o que o tocava, nunca os que os condenavam, muito murchos, sem fogo, sem vida nenhuma. Ora, qualquer indivíduo sem preconceito que se confronte com aquilo sente o mesmo. Dá para entender porque é que isto opera assim: entre o mensageiro da vida e o mensageiro da morte não há comparação possível, é óbvio que o revitalizador é que nos atrai, não o do cemitério.

                   Que fazer então?

                   Jacques Maritain, entre as duas guerras mundiais, confrontado com o ateísmo de massas, retomou S. Tomás de Aquino e a filosofia aristotélica dele, desenterrando quanto no séc. XIII fazia sentido e podia ainda iluminar rumos de vida hodiernos. Tentou operar uma triagem de modo a retomá-lo, não morto, mas no que ainda se antolhava animador hoje em dia. Teve largo acolhimento, mas a abordagem tem um limite óbvio: não pode responder a quanto, durante sete séculos, mudou na humanidade: nos desafios, nas prioridades, nas sensibilidades, nos contextos, nas culturas...

                   Chenu e muitos outros (Congar, Schillebeeckx, Gonzalez-Ruiz...) foram mais refontalizadores: perguntaram antes que diria S. Tomás (ou qualquer outro luminar) se vivesse aqui hoje, tentando retomar-lhes o espírito inquiridor, inovador e inquieto. Foi toda a geração da nova teologia conciliar (Vaticano II) que tanta esperança ateou no mundo (e foi logo após persecutoriamente frustrada).

                   Bergson constatava, inaugurado o séc. XX, que a cultura mundial requeria um “suplemento de alma” para o desequilíbrio cada vez maior em que tombava, vítima dum cientismo frio, objectivista, galopante, e dum positivismo sem qualquer interioridade subjectiva. Era urgente recuperar o “élan vital” íntimo com tudo o que ele comportar.

                   É curioso como para mim isto nunca foi problema. Já durante o Curso de Teologia me encantava ler um teólogo moral alemão todo escolástico, todo ordenadinho, com as teses mortuárias muito bem alinhadas como catafalcos prontos a enterrar. E encantava-me porquê? Porque eu discordava dele praticamente linha a linha e aquilo me permitia identificar o meu entendimento alternativo e torná-lo sistematicamente coerente. A versão viva lado a lado com a morta. Era um exercício delicioso e que nunca me frustrou, pelo contrário. Ainda hoje lhe agradeço para o outro mundo, por quão estimulante aquilo foi e me ajudou deveras.

                   Só não entendo como é que é tão difícil que esta atitude se generalize. Nunca me passaria pela cabeça que ele deveria ser excomungado nem perseguido, expulso de funções, proibido de ensinar, publicar ou pregar, excluído do sacerdócio ou, pior ainda, como outrora, preso ou morto num auto de fé. Só porque pensava diferentemente?! A que propósito? Até perderia um dos meus estímulos mais eficazes!

                   Como diria Dominique Pire, Prémio Nobel da Paz, a resposta é a do diálogo fraterno. É toda uma aprendizagem urgente que as religiões terão de operar. Só temos uma boca para falar, mas temos dois ouvidos para ouvir. Aprender a ouvir é o primeiro requisito. Não é nunca respeitado enquanto não formos capazes de nos pôr entre parêntesis, com a nossa verdade calada, em suspenso, para acolher e compreender bem a verdade do outro. Até descobrir tudo o que houver de valioso nela, tudo o que também me toca, todos os motivos que o levam a ir por ali, todas as perspectivas que não me ocorreram e ele apreendeu e assim por diante. E sem nunca a distorcer pelo crivo da minha verdade, muito menos julgá-la por um juízo de valor a partir da minha.

                   Lembras-te de me teres contado que, andarias tu pelo quarto ano, ouviste os mais adiantados (que já tinham Filosofia) a comentar Kant num grande enxovalho, a pretexto de que ele defendia que só conhecíamos aparências (no sentido de mentiras) e nunca realidades? E riam dele como se fora um parvo! É um exemplo gritante de como não se dialoga. E assim perdemos todo o sentido inédito que nos poderia levar a crescer. Para além de nunca compreendermos o outro, naquilo em que ele a si próprio se reconhece.

                   Ora, na história das heresias isto é uma constante: distorce-se sistematicamente o que referem para então melhor condenar. E eles, os hereges, não se reconhecem naquilo. Poderíamos até afirmar, no limite: se fora o que propugnaram, então também eles o repudiariam. Qualquer acolhimento e busca de novas sínteses esteve, por norma, afastado. E teria sido tão simples: era só acolher e sublinhar quantos aspectos fariam sentido consensual e complementá-los com outros que ali não ocorreram, eventualmente. Ou então buscar novas leituras que superem ocasionais contradições. E, enquanto isto não ocorrer, tolerar e acolher todos os entendimentos por igual, no respeito mútuo de quem sabe que o divino é, por natureza, eternamente abscôndito. Seja lá qual for a nossa aproximação, estaremos sempre infinitamente longe. E, quanto mais perspectivas, mais provável é o acerto do vislumbre, nem que não consigamos por ora compatibilizá-las.

                   Claro que isto implica outra reconversão: dispor-se a crescer na verdade. Só é viável desde que se não creia deter a verdade absoluta, definitivamente acabada. Ninguém tem Deus metido no bolso, muito menos à sua disposição arbitrária. Este orgulho é o fermento de todos os males: se eu tenho Deus e me identifico com Ele, então os outros, os diferentes, são os réprobos que só poderei condenar ao inferno. Esta é a árvore da sabedoria cujo fruto, uma vez trincado, nos leva à morte. Foi-o pela história além e continuará a sê-lo enquanto nos não reconvertermos. Tentarmos confundir-nos com Deus dá isto, já lá previne o Génesis (Cap. II), há mais de três mil e quinhentos anos (que nem logramos datar a idade da tradição oral donde mais provavelmente provém). Quer dizer, passam os milénios e não há maneira de aprendermos.

                   Enquanto isto, no provisório de todos os entendimentos e caminhos, reparemos que o que conta são os actos, não as teorias. Então demos as mãos (e tanto melhor quanto mais entre os mais diferentes) para resolver problemas a todos os níveis, desde a fome no mundo, às guerras, à marginalização, ao crime, à violência, à injustiça, ao desamor... É um nunca mais acabar, desde o lar de cada um ao planeta inteiro – aqui é que jogamos a salvação ou a perdição. E quanto mais nos conjugarmos e unirmos, tanto mais nos respeitaremos, nos toleraremos mutuamente, nos apreciaremos, nos tornaremos inesperadamente amigos. “Vede como eles se amam” – é o critério final referido por Jesus.

 

                   Por hoje termino apelando à utopia, que isto vai cada vez mais longo. Espero continuar a fazer algum sentido.

                   Muito obrigada pelo gozo que vós me estais proporcionando.

                   O abraço da Sofia.

 

                   P.S.: Nada mais a propósito: acabo de ler de Marta Guerreiro “Conversas com a Alma”. Fascinante, para mim. A minha amiga Marilu ficou tão entusiasmada que pôs toda a família a lê-lo e ofertou-o a outras tantas pessoas, entre as quais eu própria (não sou só eu que adoro o diálogo com o diferente, em vez da perseguição e excomunhão, evidentemente).

                   A autora é cirurgiã veterinária, mas nasceu com um dom que não conheço em mais ninguém: conversa com os animais, num tu-cá-tu-lá muito animado em que eles lhe transmitem as vivências quotidianas deles, com os pormenores mais inesperados do convívio familiar de que partilharem. Isto eu já descobrira do anterior livro dela, justamente “Conversas com Animais”, que fora confirmado pela filha da Marilu: foi a uma consulta da Marta com o cão, um golden retriever, e voltou de olhos arregalados de espanto com semelhante fenómeno.

                   A formação da autora é cristã, ao nível do cristianismo familiar vulgarizado na cultura dominante do País. Como nasceu com aquele dom invulgar, foi à Índia desenvolver-se como meditadora (com uma guia reconhecida e galardoada pela ONU) para aprender como gerir aquilo de maneira construtiva. O tempo em que os animais falavam, afinal, é o nosso. Quem diria, não é?

                   Adiante. O que me fascina naquela segunda obra é a tentativa de encontrar leituras da interioridade que façam ponte entre oriente e ocidente, entre crenças generalizadas no vulgo pelo cristianismo e as partilhadas popularmente pelo budismo e hinduísmo. Rasga trilhos em frente em muitos domínios, o que vem deslumbrando muita gente que não requer senão formação basilar no âmbito da fé e das crenças. Mas é cativante também para mim e espero que para muitos mais que se não contentem com apenas um repasto frugal do entendimento.

                   Acho lindo que com tão pouca formação de partida, tão rudimentar em tais campos, consiga tanta síntese, tanta iluminação, tanta reflexão libertadora. O Espírito, quando lhe abrimos a porta, é incrivelmente surpreendente. Nem que seja uma nesga de nada, quando a luz entra, fica tudo iluminado. Tem de arrebatar inelutavelmente os mais simples, de coração aberto, não é verdade?

                   A mim, como a eles, pouco se me dá que ela cometa erros. Que importa que ela atribua, por exemplo, a Jesus Cristo a explicitação do implicado pelo imperativo categórico que, afinal, é de Kant (“Crítica da Razão Prática”), a norma racional por que a mente humana julga a ética inteira: “faz aos outros o que queres que te façam a ti, não lhes faças o que não queres que te façam”? Não melhora nem piora a pertinência da mensagem.

                   Que importa que ela tente dar conteúdo a patamares dos espíritos no Além, ordenando anjos, arcanjos, potestades, querubins, serafins... - conforme listagens bíblicas, acolhidas outrora sem mais da crença ambiente, hoje em dia arcaísmos sem relevo existencial nenhum? É imaginário puro? Tudo bem, é poético, pelo menos, e não faz mal a ninguém.

                   De igual modo, por exemplo, a tentativa de listar estádios por que passaremos após a morte. Não há maneira de o confirmar, tanto pode ser aquilo como não, pessoalmente prefiro outra leitura que se me antolha mais verosímil, dada a nossa natureza. E daí? Se aquilo mobilizar alguém para mais e melhor vida, força! Convém é ir em frente na tecelagem dum mundo novo, cada vez mais amigavelmente entusiasmante, nem que seja por um tear artesanal, de produtividade reduzida e com defeitos. Faz algum mal? Pior é não o fazer, não fazer nada.

                   Como o livro é edição de autor, veio pejado de gralhas, erros sintácticos e ortográficos (por qualquer acordo). Desde que a entendamos, todavia, é irrelevante. Quando muito, um pouco incómodo, mais nada (e só para o purista da linguagem).

                   Agora, ao invés, já viste quantos motivos persecutórios ela oferta ao “Grande Inquisidor”?

                   Primeiro, é bruxa, indubitavelmente! Onde já se viu alguém conversar com animais?! Logo, condenada à morte, em qualquer Salém disponível, e aqui, finalmente, com provas provadas. E, se tal não é exequível doravante, que pena, que grande pena!

                   Depois, a ignorância pretensiosa de meter a foice em seara alheia, com erros sobre erros de atribuição, próprios de quem não sabe nada, não pesquisa exaustivamente o que busca, remata orgulhosamente com um dito qualquer como se fora a última revelação divina. Quem é ela para se arrogar tal estatuto? Não é filha de Deus coisa nenhuma! Que soberba! E todo o Sinédrio rasga as vestes, de escândalo...

                   Ah! E atrever-se a falar do Além?! O sobrenatural é inatingível, Deus é o Absoluto, ao transcendente ninguém lhe toca. Isso é que era bom! Não passa duma redutora que tudo encafua na temporalidade, tudo é mera historicidade disfarçada, é um horizontalismo mascarado da dimensão vertical da fé. Portanto, anátema! Queimemo-la viva na Praça das Cebolas, quando um dia for de novo permitido.

                   E atrever-se a abordar matéria tão séria, questões tão sublimes sem qualquer cuidado, com frases mal construídas, sem ortografia, num abandalhamento completo da dignidade espiritual! Isto é degradar a imagem de Deus no homem, aniquilar-lhe toda a grandeza que o Criador lhe empresta. É calá-la duma vez para sempre, à herege! E queimemos-lhe o livro, se viável até mesmo em praça pública.

                   É um exemplo contrastante de como operam as duas atitudes. Esta última é a que domina a Igreja, todas as igrejas e todas as religiões (e as ideologias também), milenarmente. Pedro e Paulo não lograram vingar, senão episodicamente. Em todo o lado houve e há outros e a todos ocorreu até hoje o mesmo: nenhum predomina para além da própria vida: uma vez morto, é endeusado, sacralizado, e os novos judaizantes tomam o poder e desatam a tapar os ouvidos ao murmúrio do Espírito e a fechar os olhos às novidades que Ele desencadeia mundo além. Deus não pára, o Universo não pára mas eles param. E paralisam todos, a bem ou a mal. Em todo o lado.

                   É tudo, porém, uma questão de escolha: por qual das atitudes, por qual das mentalidade alinhamos? Temos livre alvedrio para fazê-lo. Por outro lado, que mentores escolhemos? A quem atribuímos a função de unificar, de zelar pela unidade? Ao que nos garante a fidelidade ao morto, por mais sublime que seja, ou ao que nos garante a fidelidade à Vida a que o morto se dedicou? Teremos de optar, nem sequer poderemos evitá-lo.

                   Até hoje preferimos o travão predominantemente e nele temos vindo a atolar a humanidade, substituindo Deus, o Espírito, por aqueles que dele nos deram algum vislumbre. Queremos continuar com tal tónica? Cada um e todos temos a decisão à frente. Não decidir é também decidir: é continuar a escorregar pelo declive letal por onde a cultura dominante nos encaminha. Não há como escapar ao dilema.

                   Lembra-me o encarceramento por três anos, na prisão da Inquisição de Coimbra, de António Vieira, “o patriarca da língua portuguesa” (Fernando Pessoa), porque tentara consolar a rainha viúva de D. João IV, Dª. Luísa de Gusmão, com uma carta em que lhe sugeria que esperasse a ressurreição do marido. Grande heresia! Mesmo a violação de correspondência privada não inibe o inquisidor. Mesmo aquele intuito consolador de nada lhe importa. Tal não vem na herança dos ancestrais, os nossos maiores.

                   Pergunto-me que diriam hoje, que por todo o lado nascem crianças com o dom de ver e inter-comunicar com falecidos, de receber e transmitir mensagens significativas com os que já foram para o lado de lá. Ainda não é a ressurreição mas já tem muito dela. Ficariam de cara à banda, não é verdade? E Dª. Luísa de Gusmão teria sido bem reconfortada, como quantos doravante recorrem aos de tal dom dotados, como mediadores do contacto que a morte quebrara, e assim findam pacificados.

                   É a cara à banda com que há milénios todas as instituições religiosas (e ideológicas) sempre acabam e não há maneira de aprendermos! É só mudar de agulha, que isto termina.

                  

                   Pronto, eis-me quase com outra carta. Calo-me já. As mulheres tendem a dar à língua sem parar, não posso escapar à minha condição.

                   O abraço da Sofia.

 

 

                   Chão de Vivos, 22 de Outubro de 2018

 

                   Caro Luís:

                   Já me não recordava do episódio. Todos reunidos lá no Ministério da Educação (que jovens éramos, apenas sonhos e vazio!) e a mesa a perguntar angustiada se tínhamos alguma ideia do que fazer. E que quem tiver que fale. Mas que ensurdecedor silêncio! O 25 de Abril já tinha ocorrido há uns meses e tudo continuava muito confuso. Apenas festas e manifestações para todos os lados e gostos. Rumos, apenas os importados, que oriundos daqui ninguém vislumbrava nada.

                   Então só ficaria a alternativa: ou parava tudo, num vazio tão grande como o nosso era, ou entrávamos pelo ano novo a escrever datas do velho, repetindo receituários de antanho (nossos ou doutrem). E, deste modo, de que valeria a liberdade conquistada? Para ficar tudo igual... Sartre ironizava que andávamos todos para aqui a restaurar um Marx de museu.

                   É curioso que a rede de escolas de ensino especial que naquele tempo existia, em desespero de causa, decidiu entrar em greve contra a sua própria falta de caminhos. É a mais original de quantas greves conheci até hoje: contra eles próprios! Claro que não lhes trouxe mais itinerários.

                   Perguntas-me se não foi o que ocorreu com os Apóstolos e discípulos, confrontados com a ressurreição de Jesus. Nunca tinha pensado nisto. Creio que faz todo o sentido. Imaginando-me na pele deles, que euforia! E que paralisia, a da minha pequenez: como me sentiria inteiramente tapada, perante a enormidade da euforia e do desafio. Para escapar às angústias do vazio interior, restar-me-ia agarrar-me à Lei e aos Profetas de antanho – e eis-me tornada numa judaizante, como os demais. Compreendo bem melhor o trilho desviado predominante nestes dois milénios: quem não vislumbrar mais, opta pela menor perda que é retomar o carreiro ancestral, numa carneirada toda em fila, nem que seja para o matadouro da História.

                   Aliás, o deslumbramento perante a ressurreição foi tamanho que lhes transtornou a perspectiva: creram (pelo menos nas comunidades paulinas) que a consumação final era para breve e apanharia muitos ainda vivos daquela geração. “Eu vos digo um mistério: nem todos iremos falecer, mas todos seremos transformados, num momento, num abrir e fechar de olhos... Os mortos ressuscitarão imperecíveis e nós seremos transformados” (I Cor. 51, 52). Pois é verdade, até S. Paulo se enganou. Como não podia deixar de ser: os desígnios de Deus são definitivamente inescrutáveis, apenas vamos tendo uns vagos vislumbres e é se estivermos bem atentos. Aliás, nunca atingiremos a realidade última, iremos caminhando por ela além, num deslumbramento interminável. Não só morreu toda a geração dele como já lá vão setenta gerações depois dela e ninguém ficou para semente: a aventura do Universo, enquanto corpo de Deus, é incomensurável. Somos demasiado minúsculos para abarcar semelhante enormidade.

                   Olhado por esta perspectiva, o comunitarismo dos “Actos dos Apóstolos” ganha outra dimensão (Act. 4 e 5). Diante da novidade da ressurreição de Jesus ficam tão arroubados que muitos põem tudo em comum, não há mais casas nem campos nem recursos pessoais: desfazem-se deles por inteiro e entregam o produto aos Apóstolos para o distribuírem a quem precise. Quer dizer: não é para empreenderem uma vida comunitária, é para se reconfigurarem conforme à vida que está a acabar. Também estes dão a história por terminada, despedem-se dela, já não vale a pena fazer mais nada doravante. Como isto ocorre com S. Pedro, a expectativa do fim próximo não é apenas paulina, é uma reacção mais generalizada perante a euforia da incrível novidade da ressurreição dos mortos, por parte de Jesus Nazareno.

                   A morte do casal Ananias e Safira não foi por desalinharem do comunitarismo, foi por mentirem. Eles, prevenindo o futuro, únicos sensatos no meio dos arrebatamentos alucinados, em vez de o assumirem, morigerando o destrambelhamento dos mais, não, tentaram enganar, afirmando que estavam a entregar tudo. Isto é que é criticado por S. Pedro, não o facto de reterem os bens que entendessem. O que revela também que este Apóstolo, mais terra-a-terra, não iria muito com aquela convicção do fim iminente que o tempo demonstraria, afinal, como era errónea.

                   Por outro lado, a crítica não é por lhes terem mentido a eles, mas por tentarem enganar o Espírito, por mentirem a Deus. Quer dizer, no seu íntimo eles sentiam que aquele extremismo não era equilibrado. Todavia, em vez de partilharem isto com a comunidade, chamando-a ao bom senso, simularam embarcar com eles, tomando embora precauções. Assim deixaram acaso cair na miséria, na fome, na doença, na morte, eventualmente, os que às cegas tombaram no encegueiramento da multidão. Traíram a comunidade dos crentes, não ajudaram a construir o Reino, bem pelo contrário. E, contudo, tinham tido a inspiração íntima a que só deram ouvidos para benefício próprio: o Espírito falara, eles ouviram mas puseram-lhe uma mordaça.

                   Isto leva-me a pensar em quantas desgraças evitaríamos hoje se os amigos dos quinhentos mil alcoólicos portugueses tivessem a coragem de quebrar o consumo antes da dependência, arrastando os comparsas consigo em vez de se deixarem arrastar. E quantos motociclistas deixariam de morrer ou findar estropiados, na euforia da hiper-oxigenação (chegam a chamar-lhe mística, sem verem que é um mero efeito derivado do ar a mais, uma mera droga natural), quantos se salvariam se os sensatos denunciassem os transgressores e os incivis que se põem em risco a si próprios e aos mais. O mesmo diríamos de todos os drogados, não é verdade? Deve haver no meio disto muito casal Ananias-Safira que vê bem onde tudo irá dar mas se fecha mudo no seu cantinho, com um sorriso de acordo simulado, egoistamente mentiroso.

                   Há tempos correu na televisão um anúncio com um praticante de voo planado à desfilada entre penhascos, num desfiladeiro abismal. Na semana anterior à gravação daquilo havia-se esmagado lá outro, àquela velocidade alucinante. Anos atrás, comentava na imprensa internacional um acrobata aéreo, em homenagem a um colega morto quando tentara voar por baixo duma ponte, que ele se havia viciado em adrenalina e ficara tão dependente que só podia responder à carência correndo riscos cada vez maiores, até se ter matado daquela maneira. Ora, a lista seria interminável.

                   Quantos Ananias-Safiras continuam mudos e quedos, no conforto do seu recanto, fazendo de conta mentirosamente que estão concordantes com tudo, nos mais variados ramos de vida?

                   Isto revela-me que naquela atitude há mais duas alienações: a de montar tendas no Monte Tabor e a de aguardar o prémio sem fazer nada por ele.

 

                   1 – A euforia do nosso “processo revolucionário em curso”, a partir de Abril de 74, durou ano e meio, com manifestações e festas de toda a cor e feitio, com propostas contraditórias mutuamente se anulando, sem ninguém fazer ideia nenhuma de qual poderia ser o rumo mais acertado. E, principalmente, sem ninguém se preocupar com o que aqui nos seria mais pertinente: é muito mais fácil repetir a herança de antanho ou a de qualquer estrangeiro, por mais que nos seja alheio. O que contava era a alegria e esperança, o resto era secundário e logo se veria. Foi literalmente a fase de ficar de olhos arregalados perante a transfiguração do País, no que respeita às possibilidades em aberto. Andámos ano e meio a montar tendas no cimo do Tabor para Moisés, Elias e Jesus, porque era bom estar ali. Até nem faltou o medo, quando de repente nos perguntávamos aonde é que tudo aquilo nos levaria (Mt. 17; Mc. e Lc. 9).

                   É assim em todos os trajectos revolucionários: no primeiro momento todos festejam e são todos magnânimos. E, tal como S. Pedro no Tabor, ninguém sabe o que diz.

                   Ocorreu o mesmo na queda do regime soviético concentracionário, com a independência das múltiplas repúblicas respectivas. Foram festas por tudo quanto era sítio! Andávamos nós por aqui ainda às apalpadelas, sem sabermos bem para onde nos virarmos... Agora era a vez deles.

                   É que tudo finda ao descerem do arroubamento do monte Pedro, Tiago e João com Jesus, para enfrentar as querelas da multidão. Para enfrentar as quezílias do dia-a-dia.

                   Eles fizeram-no. Não o fazem, todavia, nunca nem os fanáticos nem os alucinados. E se estes predominarem na comunidade, se estes dominarem a Igreja?

                   Contaste-me, naquele tempo, que rompeste com o teu sector de ligações num julgamento popular, na Amadora, em que um ror de indivíduos descabelados se arrogaram o direito de pôr em causa um amigo bem nosso conhecido, liberto da prisão de Caxias a 26 de Abril, ex-preso político, portanto. Ele não aguentara a tortura (tinham-lhe partido os dedos da mão) e identificara alguém com quem colaborara contra o fascismo. Ora, só ali o não condenaram por mor duma intervenção deste teor:

                   - Talvez o devamos tolerar porque ele vem duma família pequeno-burguesa. Que é que podemos esperar dum meio ambiente destes? Não pode ser um revolucionário puro. A traição dele foi uma fraqueza própria da sua classe. Deve ser perdoado, uma vez que tem boa vontade e pretende aderir à revolução.

                   Ficaste tão enjoado com semelhante maniqueísmo, com tal primarismo fanático, simplista e mecanicista, que nunca mais aceitaste qualquer contacto com semelhante gente. Aliás – lembras-te? – perguntavas quem eram estes puristas do país novo que, se calhar, nunca tinham mexido uma palha para libertar-nos da ditadura e agora se arvoravam em juízes impolutos de toda a gente. Curiosamente, julgavam a partir da ideologia, reduzida a um esqueleto dogmatizado de aplicação rudimentar automática, diante do qual a vida dum indivíduo pouco importava e ele, enquanto pessoa, menos ainda.

                   Felizmente preponderou o bom senso e o País procurou caminhos, mergulhando nos desafios da realidade, nossa, europeia e mundial. As ideologias foram ficando para trás, remetidas para o sonho e a fantasia, sendo doravante vividas como fermentos e inspiração, não como juízes, muito menos como tribunais constituídos. Thomas More tinha razão, são a “Utopia”, nunca o real, e tal é a função construtiva delas.

                   O problema é que nada disto é tão arrebatador como a notícia de que um morto ressuscitou, Jesus, e de que nós poderemos partilhar da incrível vida nova, gloriosa, que é a dele, já que ele abriu a porta para todos a podermos transpor. Este novo Jesus deixa toda a gente fora de si, mais ainda os que tiveram com ele contacto directo (não apenas a notícia). Como ultrapassar a fanatização e a alucinação? Vivenciar alguém num corpo glorioso vira a vida de pernas para o ar seja lá de quem for, não é só a de S. Paulo, é a de todos.

                   O clímax da euforia é de tal ordem que não admira que Ananias e Safira, inesperadamente desmascarados, sofram um colapso e pereçam. O estado de choque é incomportável, eles não aguentam. Dá para imaginar em que ambiente de entusiasmo a novidade estava a ser vivida e compartilhada para provocar um efeito assim.

                   E se eles, todavia, tivessem aguentado e sobrevivido? Ou pediam perdão e agiam como os mais e provavelmente seriam bem acolhidos como reconvertidos, ou mantinham a posição, justificando-a como mais sensata. Aqui, se calhar, nem S. Pedro lhes valeria: todos gritariam, porventura, traição à ressurreição e acabariam por matá-los, por lhes destruírem o grande sonho.

                   É o que ocorre sempre quando se montam as tendas no Monte Tabor e se recusa a gente a descer para o mundo mesquinho de cotio.

                   Ora, há quem lá permaneça há séculos e séculos. Na “primavera árabe”, as várias tentativas de democratização dos países do Norte de África e Médio Oriente depararam com obstáculos, após a euforia das manifestações juvenis em cada território. Foram enfrentados de maneiras diferentes. A versão extremista do “Estado Islâmico” é a retomada encegueirada de Maomé de há milénio e meio, repondo-o aqui a ferro e fogo, como se estivéssemos no momento da revelação. Como a euforia é estragada por quem com eles não alinha, assassinam toda a gente, vendem mulheres e raparigas em mercados de escravas e assim por diante: andam todos a estragar-lhes a visão beatífica! E não há maneira de descerem do monte para virem trabalhar a realidade com o fermento da inspiração. Montaram lá as tendas e lá ficam, nem os horríveis crimes contra a humanidade, contra quanto Maomé mesmo pretenderia, os dissuadem.

                   Os cristãos fizeram a mesma triste figura durante o período da cristandade, com os violentos confrontos Papa-Imperador-Reis. Hoje estamos longe, felizmente. Mas há sempre saudosistas que não reparam no desvio... Julgam, até, que isto de agora é uma enorme perda, que aquilo é que foram tempos gloriosos.

                   Depois, o alumbramento leva à inércia: é tão bom, porque é que a gente há-de mudar?

                   A seguir, porém, vêm os desafios de cotio ferrar-nos o calcâneo. Sacudimo-los, que nos perturbam a contemplação beatífica. E eis o que gera uma contradição: ou fazemos algo ou morremos de tédio. Como não aceitamos abandonar o cume glorioso das revelações, ocupamo-nos em dois trilhos: entretemo-nos a inventar e praticar montes e montes de rituais de homenagem ou impetração do divino; tentamos decifrar-lhe o mistério, com teologias e mais teologias, dogmas e mais dogmas.

                   Qualquer das vias é para garantir que não perdemos a visão arrebatadora, pedra angular de tudo. Ora, isto é mesmo crucial: se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé, como afirma S. Paulo. Com as outras religiões é o mesmo: sem o respectivo pólo de atracção, que resta delas? Ninguém o pode perder de vista.

                   O problema é o da hipertrofia: quando tudo se resumir a isto, não perdemos o atractivo da fé mas perdemos o mundo. Como diria Cristo: de que serve a luz se ela fica sob o alqueire, de que serve o fermento se não há massa para a fornada? Esta é a tragédia de todas as religiões, desde tempos imemoriais: a Bíblia ilustra-o bem nos últimos três milhares e meio de anos – Israel caiu sempre nisto, num ritualismo conformado com a ordem estabelecida que o levou a matar por norma os profetas, os eternos rebeldes, a culminar com a crucifixão de Cristo. É, porém, comum a todas. E as cristãs não o são menos: a missão, mormente o fanático proselitismo, é primeiro para arrebanhar mais gente para o Tabor e só depois para resolver problemas humanos (até instrumentalizam estes para levar àquilo, na mais completa inversão de prioridades).

                   E não há maneira de descerem do Monte Tabor das transfigurações para enfrentarem a multidão e desatarem a resolver as misérias que aparecerem pela frente.

                   Não é apenas, todavia, pela hipertrofia teológico-ritual que a religião anda milenarmente alienada, qualquer que ela seja. Depois de tudo, porém, não ignoremos que é sempre pela teologia que se excomungam umas às outras e aos respectivos prosélitos: é um efeito directo daquela alienação primária de que nenhuma se arrepende nem reconverte nunca, desde há milhares de anos, desde sempre, sejam quais forem as vítimas a que isto interminavelmente tenha levado e continue a levar. Se vissem, duma vez por todas, qual era a prioridade a ter em conta, tal nunca ocorreria nem os motivos teriam interesse nenhum. Tudo é meramente instrumental na fé e no rito, não é o objectivo nem o que nele conta.

                       

                   2 – Os que assentam arraiais na transfiguração esperam o prémio sem fazerem nada de relevante para obtê-lo. A própria expectativa de que a ressurreição estará iminente conspira para provocá-lo: não haverá tempo, nem ocasião nem interesse para cuidar de mais nada. É apenas manter-se preparado, sem imoralidades, e Deus, através de Jesus Cristo, fará tudo.

                   S. Paulo bem reviu as expectativas em função do evoluir dos acontecimentos. Primeiro, continuando ainda a crer que haverá entre eles os que continuarão vivos aquando da ressurreição, vê-se obrigado a referir que é que ocorre aos que entretanto já vão falecendo: “os que morrem em Cristo ressuscitarão primeiro”( I Tess. 4). Como isto não basta a esta comunidade, acaba por exortá-los a não acreditarem no que antes ele próprio crera: “não fiqueis perturbados por indevida revelação, palavra ou carta de nossa responsabilidade, como se o dia do Senhor já estivesse bem perto” (II Tess. 2,2). A partir daqui S. Paulo apela, com pormenores e mais pormenores, casos e mais casos, a que todos tratem de reconverter a vida em conformidade com o apelo do amor, com o modelo de Jesus, com a inspiração íntima de Deus, com o Espírito.

                   Bem tenta que desçam do Monte Tabor, mas é um equilíbrio difícil porque perenemente instável, dada a dinâmica interminável da transformação. Urge fermentar a vida com o sonho deslumbrante: não se pode perder de vista a vivência da utopia quando mergulhamos no prosaico ou perverso quotidiano, não se pode perder a noção dos desafios de cotio no arroubamento da visão arrebatadora. Qual o ponto de equilibração, cada qual tem de o decidir a cada momento, a partir de seu íntimo, deixando guiar-se pela inspiração do Espírito que a ele apela inefável, que o atrai num flébil murmúrio interior dificilmente discernível mas perene.

                   Doravante já não basta dar os bens para socorrer quem precisa e ficar à espera do milagre. Importa tratar das relações familiares, de marido-esposa, de pais-filhos, de senhores-escravos... Tratar da comunidade: dos anciãos, das viúvas, dos órfãos... Tratar de animar a fé como fermento para a vida, nas reuniões dos crentes, no florescimento e no aproveitamento dos dons de cada um, no teor de vida de cada qual, mormente de quem lidera, como íman exemplar para todos, crentes e descrentes... (I e II Tim., Heb., Rom., etc.). Como diz S.Tiago (2, 17): “a fé por si mesma é morta se não tiver obras.”

                   Tentando pôr um ponto final à montagem de tendas no Tabor, S. Paulo aponta que apenas poderá ocorrer a consumação final quando Deus for tudo em todos (II Tess. 2), quando for ultrapassada “a apostasia, o homem do pecado, o filho da perdição”, que é “o que o detém, para que seja revelado no tempo certo.” Quer dizer, é adiado indefinidamente, mas depende do que cada um e todos façam, de como vivam. Claro que na cultura ambiente, mesmo na helénica dele, a mais erudita, nada lhe permite conceber uma dialéctica indefinida, menos ainda que em tal conceito possa consumar-se a esperança humana em plenitude. Heraclito, o pré-socrático dialéctico, (“ninguém pode tomar banho duas vezes nas águas do mesmo rio”) era um pensador secundário, na prática ignorado e nunca desenvolvido de facto, já então mais de meio milénio após ter falecido. Assim, S. Paulo mantém a esperança de que o obstáculo do mal possa vir a ser removido, para viabilizar a ressurreição final, nos moldes de como a vira em Cristo, na sua cavalgada para Damasco.

                   S. Agostinho, outro meio milénio depois, vislumbra para este problema uma saída estranha na “Cidade de Deus”: se todos, dedicados a Deus, decidirmos não ter filhos, finda a humanidade. Aí, então, tudo irá consumar-se, finalmente. Claro, do lado de lá desta vida, não neste tempo histórico que então acabaria para os humanos.

                   Tudo isto revela a dificuldade, o desconforto das comunidades em lidarem com a temporalidade, após vislumbrarem o deslumbramento da plenitude: é tão bom que o que apetece é ficar ali indefinidamente. E, se alguém vier perturbar o arroubamento, arrisca ser rechaçado, até com violência.

                   Sabes que num dos meus cursos de meditação verifiquei isto ao vivo? Uma participante desatou repentinamente a gritar de euforia, quando a mãe dela, falecida há mais de dois decénios, inesperadamente lhe apareceu. A alegria foi tal que tivemos de fazer um intervalo enquanto a mentora a tentava acalmar e convencer a retornar (interiormente) à sala onde compartilhávamos as vivências. Depois, até a guia nos confessou que muitas vezes enfrenta nela própria aquela tentação: tem de fazer um esforço sobre si mesma para largar este “céu” e descer à terra, tocando a vida para diante: aquilo é muito melhor, é um gozo paradisíaco.

                   Bem, ali ao menos não houve nada de violento. Não é, porém, sempre o caso.

                   Para mim, o paradigma extremado é o das purgas do séc. XX: a estalinista, a maoísta, a nazi, a dos Khmeres Vermelhos... Todas perpetradas por alucinados que creram entrar num mundo novo glorioso apenas pelo facto de o vislumbrarem. Quem não adere trai a visão e, portanto, é morto, que é sempre, para eles, o diabo em figura de gente. É isto para o alumbrado, o que torna o alumbrado nisto, para as vítimas e para quem tem os pés na terra.

                   O alucinado é tão estranho que chega a convencer toda a gente de que ele é que tem razão e não quem confronta o sonho com o real para fermentá-lo: durante decénios os comunistas alegaram que apenas eles detinham a versão correcta do socialismo e que não havia alternativa alguma à deles. E com isto arrastaram meio mundo, mesmo entre quem se lhes opunha, a crer que assim era. E desta forma continuaram até à derrocada, perpetrada por um movimento de massas, desiludidas com tanto crime e tanta asneira. Tudo isto, apesar da evidência das alternativas que entraram em diálogo com o mundo e que obtiveram resultados muito mais convincentes, equitativos, equilibradores, como nos países nórdicos. Para os fanáticos eram sempre uns revisionistas traidores e vendidos. Ainda hoje há restos disto, evidentemente. Há quem nunca queira descer do Monte Tabor dos sonhos imaculados, nunca aceite meter as mãos na massa para mantê-las puras (“As Mãos Sujas” – Jean-Paul Sartre).

                   A pergunta que aqui se me impõe é se os Apóstolos lograram convencer as comunidades, a partir daquele segundo momento de revisão das próprias expectativas, a tomarem a peito a vida de cotio e a principiarem a fermentar céu na terra em conformidade. Se deixaram de andar de nariz no ar, à espera de ver o retorno de Jesus ressuscitado no fim dos tempos (“O Mártir do Gólgota” – Perez Escrich).

 

                   3 – Deveria ter-se mantido a dialéctica utopia-realidade em permanente realimentação mútua. Nos melhores momentos, com os melhores protagonistas, foi o que de facto ocorreu (Sº. Agostinho, S. Tomás de Aquino, S. Francisco de Assis...). Contudo, na ganga da história, não faltam conjunturas em que se cai num extremo ou no outro, perdida a tensão criativa entre ambos.

                   É curioso como o primeiro movimento monaquista, nascido em reacção contra uma conversão meramente formal do império Romano, a partir do édito de Constantino (313 d. C.), em que nada mudava na vida das pessoas (cá está: tudo fora reduzido à liturgia e comentário de textos, tudo é montar as tendas e aguardar), os monges rompem radicalmente com o teor de vida dominante, inaugurando rumos solitários e logo depois comunitários de alternativa às escolhas comuns, buscando ser consentâneos com a inspiração do Espírito de transmudar o mundo, de espiritualizar o dia-a-dia. Só que, nesta via, acabam por aparecer os extremistas que, em nome da contestação do teor de vida envolvente, rompem com toda a vida: foram os estilitas, anacoretas que pretendiam viver empoleirados em cima de pórticos ou colunas, recusando-se a compartilhar da vida em sociedade. E eis como os extremos se tocam: uns e outros, em nome da visão espiritual, acabam por abandonar o mundo entregue a ele próprio. Os estilitas não tiveram futuro, deixando apenas esta memória quase anedótica da sua intervenção. Já a outra prática alienante, não.

                   Mantém-se permanentemente até hoje e tudo indica que se manterá perpetuamente, senão na forma da exclusiva conjunção rito-palavra, apenas focados no Tabor entrançado da transfiguração-ressurreição, pelo menos no mútuo alheamento entre fé e vida.

                   Há concretizações desta alienação estrutural massivamente assumidas, generalizadas na cultura, de que ninguém se dá conta, há séculos e séculos. E, mais uma vez, é comum a todas as religiões.

                   Lembras-te de me teres contado que, durante e guerra no norte de Angola, em plena floresta virgem dos Dembos, em Bula Atumba, no decurso da “Operação Robusta” de protecção à colheita do café, tiveste oportunidade de falar com um fazendeiro, desterrado naqueles confins há quarenta e três anos, sem nunca mais ter retornado a Portugal, desligado definitivamente de qualquer família e terra de origem, com quem perdera há muito qualquer contacto? Procurara-te porque queria ir à missa!

                   - A gente vive aqui como os bichos – confiara-te. – Ao menos agora aproveito, que vocês andam por estas bandas. A minha vida está cá toda na fazenda, não tenho outra família nem outra terra. Parentes meus são os que ali trabalham, eles é que são os meus filhos e netos, é para eles todos que eu me afadigo, como eles para mim, nem tenho mais a quem deixar nada. E eles sabem. Andam alerta, de olho atento para não permitir a ninguém invadir a fazenda nem fazer-me mal. Sou o padrinho deles todos, trato-os bem e eles a mim, não é? É assim a nossa vida, perdidos aqui por estes brejos sem termo. Vocês é que nos trazem algumas novidades do mundo...

                   Ora, este homem sente um inegável complexo de culpa, como cristão, porque não vai à missa. Quem é que lhe meteu na cabeça que um crente praticante é o que frequenta a eucaristia ao domingo, se confessa uma vez por ano, comunga pela Páscoa...? Em todas as outras religiões há preceitos próprios correspondentes. O muçulmano autêntico, por exemplo, ora cinco vezes ao dia voltado para Meca... O judeu que não respeite o descanso sabático, já no tempo de Cristo era um renegado... Ele bem contestou mas não lhe valeu, afinal, de nada: continuamos iguais com outra roupagem, mas sempre com a mesma personalidade, alienada oficialmente pela instituição confessional, qualquer que ela seja, sejam quais forem os ritos.

                   É que nenhuma esclarece aquele homem (e são centenas e centenas de milhões, são vários biliões, todos somados...) de que o verdadeiro praticante (crente ou descrente ou agnóstico) é o que vive a vida própria tentando a comunhão fraterna universal com todos os outros, a principiar no mais chegado até ao mais distante, numa solidariedade sem fronteiras nem limites, em busca duma amorização infinita de todos com todos e tudo, utopia inatingível mas indefinidamente aproximável, mais e mais gratificante a cada patamar trepado, na intérmina escada de Jacob que entra pelo céu dentro. Ninguém lhe explica que praticante é ele próprio, afinal, porque é quem vem tentando praticar isto durante toda a vida, como ingenuamente confessa.

                   Tudo o mais é supérfluo, por natureza secundário, inútil se para aqui não conduz, perverso se o impede ou se lhe substitui.

                   Como todas as religiões continuam a insinuar (se não a pregar) que o praticante é o ritualista, não o que abre a vida concreta ao Infinito, continuam todas obcecadas com o Tabor da respectiva transfiguração-ressurreição (o correspondente a isto) e assim a desviar-nos, afinal, do itinerário vital que lá conduz.

                   Como é que todos ignoramos tão olimpicamente o critério final? “Vinde, benditos de meu Pai... porque tive forme e me destes de comer, tive sede e me destes de beber... Senhor, quando te vimos com fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber?... Sempre que o fizestes a um destes meus irmãos, ainda que dos mais pequenos, a mim o fizestes” (Mat. 25, 31-46). Já Jesus o prevenira: não é quem diz “Senhor, Senhor” que entrará no reino dos céus, mas o que ouve a palavra de Deus e a cumpre. Como é que transformámos isto, no limite, em ir à missa (ou outro rito) ouvir um celebrante ler e eventualmente comentar uns textos (bíblicos)?!

                   O crente praticante, no sentido milenarmente dominante em qualquer cultura, esvaziado de conteúdo existencial, é, no limite, um pobre supersticioso que acredita que com umas palavras (eventualmente incompreensíveis, como nos tempos do latim), mais uns gestos apropriados, conquista magicamente o Céu: é uma bruxaria encapotada!

 

                   4 – Uma cristalização destas, porém, não ocorreu por acaso. Nem a mera banalização de rotinas ou o relaxamento generalizado de costumes o justifica por inteiro. É que há toda uma corrente teológica de apoio a tal entendimento, embora, eventualmente, para contrariá-lo. Este é um erro que ocorre muitas vezes história além, em muitos domínios.

                   Enquanto vigorou a pena de morte, praticou-se a execução pública durante muitos séculos, a pretexto de a tornar exemplar para dissuadir outros criminosos. Até que se deu conta de que, longe de dissuadir alguém, tal prática estimulava ao assassínio, por parte de quem julgava que outrem o merecia. Os crimes de sangue proliferavam em virtude daquilo, em vez de diminuírem.

                   Hoje em dia que o Brasil é o país do mundo com maior índice de assassinatos por habitante, o presidente Jair Bolsonaro propõe-se combater isto liberalizando a aquisição de armas, a pretexto de que qualquer vítima, se estiver armada, poderá defender-se. Ora, os estudos comparativos entre Estados demonstram que esta lógica não se verifica: quanto mais armas distribuídas pela população, maior o número de crimes neste domínio. O rumo assisado é o contrário, como já nos EUA se vem tentando há muito.

                   Então como é que uma teologia apoia contra vontade o esvaziamento existencial da fé? Primeiro, jogando às urtigas S. Tiago (2, 14-26): “...a fé por si mesma é morta, se não tiver obras. ...A fé cooperou com suas obras e pelas obras a fé foi aperfeiçoada. ...O homem é justificado pelas obras e não somente pela fé. ...Como o corpo sem o espírito está morto, também a fé sem obras está morta.” Varrido isto como não inspirado, o resto é mais fácil: basta centrar-se na primeira fase da euforia perante a ressurreição de Jesus Cristo: aí tudo se reduz à justificação pela fé. Deus, através de Jesus, é que operará tudo em todos, não há tempo nem lugar para mais, nem para outra coisa, em breve seremos universalmente ressuscitados, é só manter-nos preparados, limpos de imoralidades.

                   Isto recorda-me uma intervenção dum engenheiro do Zimbabwé, meu colega de curso na Universidade da Paz (Bélgica). Informava ele que um dos problemas maiores com que se defrontavam na economia e na produtividade derivava dum pormenor do choque de culturas:

                   - Quando um aborígene se emprega num patrão qualquer, numa plantação, fazenda ou roça, numa empresa fabril, comercial ou seja lá qual for, entende que a sua mão-de-obra está entregue e pronto! A partir daí julga que não quebra o contrato ao não cumprir horários, ao faltar para atender à família, para cultivar para si e assim por diante. Deu o seu trabalho, está dado. Acabou!... Como resolver isto é um sarilho porque é uma questão cultural, todos compreendem deste modo. Vai ser preciso mudar um povo inteiro...

                   A teoria da justificação pela fé tem um bocado disto: o homem entregou-se e pronto! E há uma razão, no fundo: de facto, ninguém tem a receita de como se transfigurar ou ressuscitar. Não é por obra humana, faça quenquer o que faça. Como o homem não se criou a si próprio nem criou a vontade dele com a margem do livre arbítrio, assim, por igual, para atingir um corpo glorioso. Fica para lá de quaisquer possibilidades humanas. O que ocorreu com Jesus Cristo foi por obra de Deus, como a evolução até à espécie humana, como o Universo, como toda a criação: de facto, porque é que há tudo em vez de nada? Quem é que desencadeia a cadeia dos eventos cósmicos, com o nosso microscópico ponto de chegada?

                   Para além desta razão de fundo incontornável, há um motivo. É que a degenerescência da postura de expectativa indefinidamente adiada, levou historicamente (e leva sempre) a entender as obras que devem acompanhar a fé da forma mais simplista e inflacionada: cultos, liturgias, ritos, novenas, procissões, festividades, peregrinações, construção de igrejas, capelas, santuários, catedrais, basílicas, com a desmultiplicação de funções de zeladores, confrarias, pedreiros, arquitectos, sacristães, bem como toda uma rede de angariação de fundos através de peditórios, bulas, testamentos, ofertórios, doações, penitências... Tudo isto (e muito mais) requer multidões de indivíduos envolvidos, cujo centro de vida é este mundo de tarefas intermináveis, desmultiplicadas ao infinito. Com o tempo, acaba por apagar qualquer outra obra de revitalização da vida real, secular, abandonada a todo o seu intrincado universo de desafios. Pior, finda por fim a convencer toda a multidão dos fiéis de que a salvação provém de tais obras (ditas piedosas tradicionalmente, valha-nos Deus!), a ponto de, no limite, se comprar o céu com umas moedas. Aqui a fé já não tem papel nenhum: paga-se uns montantes e a salvação fica garantida! É o domínio absurdo dum mercadejar divino.

                   Foi a generalização disto que levou maioritariamente (e com razão) à rebelião protestante. Obviamente que as obras que devem acompanhar a fé não são estas e que estas nunca salvaram nem salvam ninguém. Aliás, quando seguem aquele rumo, até impedem qualquer salvação, ao nos alhearem de toda a vida concreta que temos de amorizar no quotidiano do mundo e que acaba abandonada a ela própria, com tudo o que contiver de bom ou de mau. Por ali não germina um homem novo, não fermenta um novo mundo, um Universo com a transparência do rosto de Deus.

                   Ora, é isto que as obras a sério da fé operam comunidades fora. Não é o que o beatério faz, é do que ele foge. Mas também é verdade que não farão mais do que isto: nenhuma obra produz a transfiguração nem a ressurreição nem a salvação. Aqui é o amor de Deus a acolher a espiritualização a que o crente logrou chegar, a corresponder ao amor correspondido, a comungar com o grau de comunhão que cada um atingiu. Por si, nenhum de nós tem pernas para semelhante salto. Deus, porém, não falha. É o que a fé nos garante, é onde repousamos. E claro que é também Deus que no íntimo nos impele e alimenta durante o nosso itinerário. Tudo é graça, no limite.

                   Lembras-te de me teres contado, entre risos, num dos nossos convívios na Associação Académica, em Coimbra, que, em miúdo, uma das vizinhas da aldeia, da geração de tua mãe, durante os largos meses por onde se estendeu uma radionovela que outrora parou o País, a “Simplesmente Maria”, largava tudo para ouvi-la: os cozinhados, o trato da casa, a horta e os campos, o cuidado dos filhos, as roupas para lavar, reparar, passar a ferro ou arrumar, o atendimento dos animais de criação, o marido, os filhos?... Enfim, tudo? Até a vizinhança se divertia com tal fascínio, tão desequilibrado, tão desatento de tanta atenção siderada por aquilo. E ela comentava para quem a quisesse ouvir, na loja da aldeia:

                   - Ora! Quem não está bem que se ponha melhor. Cá por mim é isto e não há mais conversa. Daquilo é que eu gosto e pronto! Não sou escrava de ninguém.

                   Ao reagir contra este alheamento, todavia, pondo tudo na mão de Deus, aquela teologia da fé apenas serviu para multiplicá-lo e generalizá-lo ainda mais. E, às vezes, de forma bem traiçoeira, onde menos se poderia esperar. É bem verdade que tudo, seja lá o que for, sujeito à escolha humana, ao livre arbítrio, é corruptível fatalmente. Não há como evitá-lo: estamos condenados à liberdade, como diz Sartre. Para bem e para mal.

                   Para o crente, qual o melhor tipo de vida, o contemplativo ou o activo? Em toda a tradição da Igreja milenarmente se afirma que é o contemplativo. Ninguém reparou que isto é o mesmo que afirmar: bom, bom é montar a tenda no Monte Tabor e ficarmos aí regaladinhos! Bom, bom é ficar de nariz no ar, na hora da Ascensão, até à consumação dos tempos!

                   Jesus recusou isto a Pedro, Tiago e João e proibiu-os de falar da visão da transfiguração  até ressuscitar (Mt. 17; Mc. e Lc. 9). E recusou, no fim, manter-se indefinidamente entre eles, ordenando-lhes, ao invés, que fossem pelo mundo continuar o trabalho dele (Act. 1;  Lc. 16). Depois disto, como é que a vida contemplativa é a melhor? É com estes pequenos nadas que, repetidos à exaustão pelos tempos fora, depois se perverte tudo.

                   A perversão dos contemplativos, aliás, é documentada séculos além tanto pelas encadeadas reformas neles empreendidas como em obras históricas e literárias. Ora pela imoralidade dos comportamentos (“A Cartuxa de Parma” – Stendhal; “O Nome da Rosa” – Umberto Eco; ou, entre nós, “O Balio de Leça” – Arnaldo Gama...), ora pela transformação dos conventos em prisões disfarçadas, para onde se remetiam os indesejáveis das famílias ou do poder (“Marquesa de Alorna” – M. J. Lopo de Carvalho; “Cartas Portuguesas” – Mariana Alcoforado; até o tão popular “Amor de Perdição” – Camilo Castelo Branco...).

                   Colocar aquela questão é como perguntar o que é mais importante numa casa: o alicerce ou as paredes? Uma casa só com alicerce não chega a ser morada de ninguém; só com paredes, quando muito é morada precária por pouco tempo. A questão é de raiz mal posta: deriva da mentalidade grega clássica de que a perfeição é estática e completa, fechada. Daqui decorreria tanto aquilo como a expectativa da visão beatífica: ver Deus face a face. Ora, nem uma coisa nem outra (“Conversas com Deus” – Neal Walsh).

                   Claro que o melhor tipo de vida é o que incarnar a permanente tensão dialéctica criativa que parte da contemplação para vislumbrar caminhos de agir, amorizando o mundo, e que, perante as contradições e impasses da actividade, esgotada a inspiração, retoma a contemplação a refontalizar energias e reformular itinerários, atirando-se de novo, após, a fermentar a vida e assim interminavelmente. Nenhum dos pólos é melhor nem pior que o outro, ambos imprescindíveis no trilho inesgotável da divinização (que é humanização) do Universo. Apenas os encegueirados pelo deslumbramento recusam ver. E, obviamente, predominaram até agora ou não manteríamos aqueloutro entendimento.

                   Aliás, contra o que perenemente se propugnou, os descrentes, ateus ou agnósticos continuam a tocar a vida para a frente. Embora não polarizados por qualquer expectativa de transfiguração nem ressurreição, a verdade é que também eles cooperam na sementeira de novos mundos, aguilhoados pela esperança de vida melhor para si, para os mais, para a humanidade, também eles sonham e projectam, também eles meditam e consultam o íntimo à procura de caminhos. E não sendo tolhidos por nenhum alumbramento paralisador, quantas vezes findam mais fiéis, mais sensíveis à inefável voz interior do que os pretensos crentes, tão alienados constantemente! Estes perdem o tempo e as energias a reproduzir receituários sacralizados doutrem que, por mais eminentes que tenham sido eventualmente, acabam inactuais, descontextualizados ou definitivamente ultrapassados por uma sensibilidade mais fina que história além se vai apurando nas comunidades e indivíduos.

                   E eis como os fiéis acabam infiéis, deslumbrados ou dominados por uma hierarquia prepotente e uma história tão pejada que nem se atrevem a auscultar o próprio coração e lá vão em rebanho para o matadouro dos inúteis e dos traidores da humanidade. Surdos e cegos ao Espírito que neles murmura mas que apenas os outros auscultam e ouvem, os que não são oriundos da casa de Israel. Foi assim nos tempos bíblicos, foi-o nos tempos da História, é-o nos tempos de hoje. Sê-lo-á amanhã?

                   É a maldição permanente dos deslumbrados pela revelação: ficam tão aprisionados nela que ignoram que apela à permanente actualização, dela e dos efeitos. E, quando alguém actualiza, ficam tão assombrados com ele que repetem, a partir dali, a alienação, porque o repetem a ele. Tem sido assim pelos séculos dos séculos. Que é da intimidade de cada um, onde o Espírito nos habita?

                   O maravilhamento da transfiguração e da ressurreição deveria ser para desmultiplicar os ímanes naturais que nos atraem para mais e melhor vida, mais e melhor ser, desde a esfera privada e íntima até à do lar, da comunidade, do povo inteiro, de toda a humanidade, hoje e para sempre, por onde nos for exequível vislumbrar caminhos que o viabilizem e concretizem. Ora, quando nos desviamos daqui para aqueloutros rumos, toda a maravilha se inverte, não promove mas entrava, não plenifica mas frustra. Restam então os de fora para empunhar o facho de luz. A eles se aplica o critério de Mateus: “vinde, benditos de meu Pai, porque tive fome e destes-me de comer... quando o fizestes mesmo a um dos mais pequenos.”

                   Em lugar de lamentarmos, desde o Renascimento, o grassar do indiferentismo, do agnosticismo, até atingir o ateísmo militante; em lugar de apelarmos ao enchimento das igrejas vazias, ao recurso aos sacramentos abandonados, às liturgias às moscas, aos ritos vazios insuportáveis – quem olha pelo outro lado? Quem repara por onde anda o Espírito a praticar maravilhas de humanização da vida concreta de pessoas, comunidades, países, regiões, do mundo inteiro? Quando nós não ligamos a Deus, ele não nos força, continua a impelir a humanidade em pleno: se o judeu lhe fecha a porta, Ele sacode o pó das sandálias e bate à porta do gentio. Se este abre, é com este que avança com os humanos e a História para diante. Foi assim outrora e é hoje: nós somos, em tudo aquilo que é alienante, o hebreu orgulhoso, altamente convencido, único detentor soberbo da verdade, que tem Deus ao seu serviço, que o meteu no bolso para usá-lo a seu bel-prazer. Aliás, sempre pronto a condenar quantos Cristos lhe brotem pela frente.

                   Tudo se repete permanentemente, também aqui. Mal baixamos a guarda, é logo!

                   Em lugar de lamentos e condenações, em nome dum mundo estático, a olhar para as nuvens onde Cristo desapareceu, quem aplica o critério de S. Pedro perante as novidades de Paulo e Timóteo entre os gentios: se Deus faz neles as maravilhas que (nem) vemos entre nós, quem somos nós para ir contra Deus (Act. 11 e 15)?

                   Há sempre, todavia, quem, maioritário porventura, pretenda impor a circuncisão, na forma de rituais, de liturgias, das teorias dominantes, das escolhas herdadas... Pedro perde em toda a linha!

 

                   6 – Há um aspecto, todavia, em que o deslumbramento gerou e continua gerando obra de vulto: o da dádiva generosa e gratuita em favor de quem precise. E é uma característica também comum às várias religiões. Desde a mera esmola esporádica até às organizações nacionais e internacionais de assistência ao sem abrigo, ao faminto, ao doente, ao prisioneiro, ao imigrante, até às congregações religiosas com finalidades específicas em todos os domínios onde houver carências, é toda uma intrincada rede humanitária que atravessa os séculos e condiz com o que a euforia da visão pede: onde um sofre todos sofremos, onde um se alegra todos nos alegramos. Vivemos em mútua empatia e a compaixão leva-nos, queiramo-lo ou não, a compartilhar a vida: sentimo-lo visceralmente nas relações íntimas e familiares, fortemente entre amigos, solidariamente entre conterrâneos, identificamo-nos com compatriotas, enfim, somos todos humanos e como tais vibramos comummente nos bons e nos maus momentos. A euforia da corrida espacial, por exemplo, mexeu com o planeta inteiro. Até um campeonato mundial de futebol, embora a mim não me diga nada... Mas também gostei da festa, aí está!

                   Esta realidade pesa de tal modo que teríamos de afirmar, caso fora extinta: ai dos pobres! E ai deles em todo o mundo, seja qual for a religião implantada, que todas convergem nisto. A intuição do Além provoca generalizadamente tal resposta, mesmo sem a vivência da transfiguração nem ressurreição, específicas do cristianismo.

                   Estranho, todavia, é que continuem a aflorar pelos séculos fora as limitações de origem de tais práticas.

                   Quando lemos a Condessa de Ségur (“Mulherzinhas”, por exemplo), permanentemente reeditada (e com mérito) a estimular o imaginário infanto-juvenil, damo-nos conta de que toda a solidariedade humana propugnada, toda a ultrapassagem de barreiras entre profissões, classes sociais ou raças radica na afirmação da grandeza da origem, a nobreza hereditária, e é para depurá-la, preservá-la, reafirmá-la. Nem por uma vez se admite questionar se não provém da estrutura classista da sociedade também toda a segregação combatida, o ostracismo inter-classes, a geração e marginalização dos miseráveis. Toda a vasta obra dela é uma defesa inconsciente, como se fora natural, da ordem implantada e, conseguintemente, cega e surda às desordens estruturais que desencadeia e alimenta. Isto, portanto, jamais é posto em causa, nem sequer identificado.

                   Tal como se a consumação do tempo fora iminente, não há nenhuma disponibilidade para equacionar nem protagonizar mudanças de fundo. Tal e qual como no primeiro momento da primeira geração: outro mundo é no Outro Mundo, não o vislumbram como freima deste.

                   Claro que não haveria problema nenhum, caso fora apenas uma autora, embora muito divulgada e acolhida. A questão é que é mentalidade comum, dominante pelo menos nas classes privilegiadas e, mormente, entre a antiga nobreza, embora já caída em desgraça (e o que será onde persiste!). A futilidade destas vidas, o verniz superficial deste humanitarismo são generalizados (“Em Busca do Tempo Perdido” – Marcel Proust), mas todos fazem questão de mostrar-se empenhadamente caritativos. Desde que o respectivo estatuto de privilégio nunca seja beliscado, obviamente. Isto, pois, é o que nunca é equacionado. Nem tolerado, claro,

                   Pior é que se lhes junta nisto outra classe dominante, o clero, mesmo quando não reconhecido oficialmente (e então se reconhecido, valha-nos Deus!). Mal o poder político deixe em paz as tendas do Tabor, os pasmados a olhar as nuvens na colina da Ascensão, é garantido: firmam logo os dois poderes uma aliança para a eternidade, qualquer que seja a religião, mais uma vez (“O Vermelho e o Negro” – Stendhal; “OTrono e o Altar” – Maurice Bahring). É com cristãos e com todos os outros.

                   Assistimos a isto, por exemplo, na islâmica Arábia Saudita desde o séc. XIX, onde o apoio político a uma corrente islâmica extremista opera este estranho milagre: nenhum líder religioso denuncia os crimes da ditadura ali persistente nem a inacreditável mentalidade retrógrada e desumana predominante na cultura do país. Para que serve semelhante religião? É sempre o problema das tendas no Tabor, agora do lado destes: limitam-se a contemplar, em paz finalmente. Na mesma linha vai a declaração de Israel como Estado Judaico, confessional: doravante nenhum rabi irá contestar nada do rumo colectivo que for tomado. É o seu Estado, não é verdade?...

                   Cá iremos todos, portanto, contemplando, deliciados. O mundo que vá para o inferno! Só serve para nos distrair e aborrecer...

                   Ainda bem que há quem retome a mensagem e rompa todas as fronteiras em nome da amizade, solidariedade e justiça, indiscriminadamente, pondo o dedo nos preconceitos de classe, até nos de entrega pessoal e confiança incondicional em qualquer humano, por mais provas que hajam sido dadas (“Harry Potter” – J. K. Rowling). Que importa que isto ocorra sem qualquer referencial explicitamente religioso? Basta ser humanizador em todas as dimensões, sem fronteiras de classe, etnia, cultura, sexo, estatuto social e assim por diante, sem ligar a nenhuma raia, transgredindo-as todas para atingir a universalização da amizade, a amorização de cada um e todos os humanos e de todas as respectivas criações (entre nós, a colecção de dezenas de volumes, por exemplo, de “Uma Aventura” – Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada). É que isto é que é ser coerente com o impulso do Espírito, isto é que cumpre o mandato da fé, isto é que é viver religioso: ser o sal da terra, ser o fermento da massa, ser a semente jogada em todos os terrenos.

                   Tudo o mais, se nos desvia disto, é alienação, é traição. Se o substitui, é o verdadeiro ateísmo: Deus trocado por obra humana, pretensamente espiritual e de facto surda a qualquer inspiração autêntica do Espírito. Se o tolhe, o persegue, o mata, é pior. Condena-nos, matando Deus dentro de nós, selando-lhe a via de acesso, o imo de nosso íntimo, o palpitar de nosso coração. Ora, todas as religiões fazem isto massivamente e, por norma, sem qualquer escrúpulo nem arrependimento.

                   Porque nos é tão difícil reconhecer os sinais dos tempos e, neles, por onde o voo do espírito anda adejando? Como é que apenas vale o que vem do nosso clã, nossa tribo, nossa igreja, sinagoga, mesquita? Se Deus nos cria a todos e a todos nos ama por igual, quem somos nós para desfazer a obra de Deus, para discriminarmos, não lhe reconhecermos a mão onde a mão dele anda, embora quantas vezes anónima? O espírito sopra onde quer: como termos a pretensão de que apenas sopra entre nós? Pior: de que sopra em nosso exclusivo benefício? Nisto somos todos judeus dos piores: milhares de anos depois e ainda não percebemos nada, enclausurados na nossa redoma, impantes de orgulho, de pretensiosismo balofo. Aqui não passamos duns bobos da corte de mau gosto: nem sequer dá muito para rir...

                   Por outro lado, reparaste na campanha e vitória do presidente brasileiro Jair Bolsonaro com o apoio da Igreja Evangélica? Isto provoca-me arrepios. Não por ser um homem com ideias ditatoriais, dum conservadorismo extremado, que até pode não efectivar nada do que se teme e, afinal, atacar mesmo o crime (mormente o assassinato tão generalizado) e a corrupção endémica. Não. É que, mais uma vez, a religião se enganou no trilho. Não é por ali: nem por uma cristandade, nem por um estado islâmico, nem por um judaico. Já percorremos durante séculos esse trilho de morte e fracasso. Os islamitas e judeus também. Não aprendemos nada com a História e as derrotas dela?

 

                   7 – É outro efeito, e bem traiçoeiro, do deslumbramento. O adiamento interminável da consumação final acaba por exasperar e minar a esperança (“À Espera de Godot” – Samuel Bekett). Em desespero de causa, os alucinados tentam forçar o caminho, extremando as obras rituais, litúrgicas, pretendendo enfiar aí o país e o mundo inteiro. É isto que é um Estado confessional: todos no Tabor, de olhos arregalados como os mais.

                   Como no Édito de Constantino, não muda nada nas vidas, na política do Estado, é tudo meramente formal, como não podia deixar de ser, tudo aparatos e aparências. Com uma conotação muito significativa: é para tentar parar o mundo, daí ser rumo extremamente conservador, desconfiado e persecutório do inovamento. E, claro, eminentemente ritualista: as autoridades estarão em tudo quanto for celebração ou festividade. E tudo se reduz a isto.

                   É que a espera frustrante continua. Tal via é apenas um esforço derradeiro a ver se a acelera, pelo desvio dos extasiados. Sempre condenado, obviamente, ao fracasso. Apenas com os crentes ou com a população inteira, só com os mentores espirituais ou com os temporais também, a alienação é a mesma, apenas se alargou a mais indivíduos e instituições: ninguém quer descer do Tabor para tomar o mundo em mãos, todos querem continuar a olhar as nuvens em vez de ir a terreiro fertilizar a humanidade.

                   Nesta lógica, entrega-se a coroa real a Nossa Senhora, como entre nós fez D. João IV, erigem-se santuários e igrejas aos montes, montam-se estátuas a Cristo como rei, por mais que Ele o repudie. Ele não o quer mas os alumbrados exigem-no. Quem é Ele para se lhes opor? Até já reinam no mundo, coisa que Ele nunca fez nem aceitou fazer... Como se apoia, aliás, um candidato ou um partido ao poder.

                   Mas, então, não era para cristianizar a terra inteira que a ressurreição ocorreu? Claro que era, só que aquilo não o faz: seria para todos viverem como Jesus, não para passarem a vida a fazerem-lhe vénias! Ou, pior ainda, para pretenderem ser os detentores do Espírito (aí substituem-se à inspiração íntima de Deus).

                   Tudo provém de mais um equívoco da exasperação: a fé opera perenemente como fermento na massa, jamais é a massa fermentada (e muito menos cozinhada, pronta a servir); como adubo na terra, jamais como terra preparada; como semente a espalhar, jamais como messe (e muito menos sazonada para a colheita). Isto é e será permanentemente deste modo: é a dialéctica eterna entre o Espírito e a matéria que nós somos chamados a mediar, saibamo-lo ou não. Conhecê-lo, sendo um crente fiel, é para operá-lo melhor, não para eliminá-lo.

                   Colocar a fé fora disto, quebrar a tensão criadora como o estado confessional pretende é, pior que trair, iludir-se: a dialéctica continua, que Deus não anda a nosso mando, e tudo, mais tarde ou mais cedo, se esbarronda em catástrofe, como a história de antanho bem ilustra. Quando o Espírito não opera pelos crentes, opera pelos outros, pela natureza humana e pelo Universo: não tem de nos prestar contas, não podemos pará-lo. Quando muito, paramo-lo em nosso ínfimo recinto e, a seguir, somos destruídos pela avalanche histórica e cósmica que nos ultrapassa infinitamente.

                   Opormo-nos ao Infinito, a pretexto de lhe obedecer, que grande topete! Somos mesmo palermas!

                   Uma nota derradeira: não pode haver estado confessional que seja fiel porque a inspiração interior nunca é inequívoca. No crente ou no descrente, a sensibilidade varia ao infinito e, portanto, jamais temos a certeza de qual o trilho mais certo, qual o ajustamento de maior ganho, qual o rumo mais eficaz a bonificar o mundo, a amorizar a humanidade e cada um de nós. É sempre às apalpadelas, arriscando, corrigindo, auscultando o íntimo e os efeitos exteriores nos mais e no Universo, sempre dispostos a rever, reformular, tentar o que se antolhar melhor que progredimos. Descansar num livro qualquer de receitas morais, por mais que bem fundadas em personalidades eminentes, é outra alienação individual como a do estado confessional: isto é tapar os ouvidos ao Espírito que fala no íntimo de cada um, é submeter-se ao mundo materializado, exteriorizado, mesmo sendo o duma religião qualquer, é demitir-se de si próprio, um portador de Deus, para sujeitar-se ao mundo exterior, por mais que seja o duma confissão piedosa.

                   É nisto que o descrente, se fiel a si próprio, é mais fiel: ele ausculta o respectivo íntimo por onde o Espírito o inspira, mesmo sem ele o saber nem acreditar. Então, no fim, passará à frente do crente enganado: “vem, bendito de meu Pai...” (Mat. 25).

                  

                   Bom, ponto final. Cada vez me alargo mais, não é? Se vocês se fartarem disto, deitem-no ao lixo. Eu é que continuo infinitamente grata por me darem esta oportunidade.

                   Muita alegria para todos vós. O abraço da Sofia.

 

 

                   Chão de Vivos, 9 de Dezembro de 2018

 

                   Caro Luís:

                   Perguntas bem! As minhas referências são escolhidas pelo critério do meu mundo espiritual: ou me tocam interiormente, ou então, não. Qualquer outro antolha-se-me alienatório. O bíblico é tão sectário como o seria o talmúdico, o corânico e por aí fora. Em todo o caso, seriam limitativos, enclausurados em fronteiras étnicas, confessionais, sempre grupais, sem jamais alcançarem a visão do todo, a universalidade que nosso íntimo radicalmente requer. Deus é único, o Espírito é de todos e a todos anima. Em todo o lado pode aflorar-lhe o sinal, é só estarmos atentos e deixá-lo tocar-nos. Fora disto é sempre a fotografia anedótica que partilhaste connosco na internet. Muita gargalhada nós por aqui temos dado!

                   É impagável a pose daquele terrorista do estado islâmico, com a metralhadora empunhada, mais aquele tijolo pendurado à cintura a resguardar-lhe o sexo, não vá ser nele atingido e faltar-lhe então o fundamental para fruir das dezenas de virgens prometidas ao mártir! Mas que coisa mais cómica e mais idiota! Ele vai para o lado de lá da morte com o pénis intacto?! Leva-o no bolso, é?!

                   Custa a acreditar que haja alguém com um milímetro de juízo que leia o Corão e o interprete de modo tão superficial, tão literal, tão primário, tão ignorante! Tão estúpido, enfim. E que creia que isto é espiritualidade, ainda por cima, a dar cobertura a todos os crimes contra a humanidade que cometem. Foi oportuno que o imã da mesquita lisboeta viesse à TV considerar toda aquela gente e a sua pretensa religiosidade como anti-islâmica. É apenas um movimento internacional de crime organizado, a pretender um escudo divino como chancela para o encobrir e lhe dar impunidade.

                   As milícias curdas de mulheres é que lhes responderam à letra: foram combatê-los e rechaçaram-nos, uma vez que eles vivem convencidos de que, se abatidos por mulheres, perderão o cortejo de virgens no outro mundo. Toca a fugir, portanto, não vá o diabo tecê-las!

                   Parece uma guerra de anedotas, não fora a interminável cadeia de atrocidades, assassinatos, violações, desgraças de toda a ordem que perpetram.

                   Ainda por cima quando, afinal, o texto original do Corão promete uma prenda tão simples como é, à letra, uma mancheia de uvas passas, o maior pitéu para os beduínos do deserto arábico, para quem primariamente foi escrito (e continua a ser uma metáfora, claro).

                   Ora, qualquer critério que não o espiritual cai facilmente em disparates sectários, absurdos do género. É a proibição da transfusão de sangue, o banimento de imagens, o anátema às festas, o retorno ao sábado... O cortejo nunca mais acabaria.

                   A triagem pelo eco íntimo, evidentemente, não anula a ignorância pretensiosa nem a estupidez de ninguém (que é infinita, na ironia de Einstein). Facilita, porém, a vida a quem pretenda escapar de tal pego. Desde logo por relativizar as nossas matrizes prioritárias, o que nos impede de as absolutizar (seria sectarizá-las) e de cair em dogmatismos (sempre exclusivistas, a romper com outrem, em vez de unificar).

                   É das mais difíceis reconversões da vida interior dos indivíduos ditos religiosos. Ouvi há tempos uma entrevista a um mentor duma madrassa (a escola muçulmana tão típica dos países maometanos mais pobres) a vangloriar-se porque, afirmava ele, se a Bíblia era o livro mais editado e traduzido do mundo, não era decerto o mais lido, este indubitavelmente seria o Alcorão que todos liam desde a escola, mesmo desde antes de entenderem nada do que diz, miúdos que são a falarem as línguas e dialectos mais variados pelo mundo fora. Afirmava-o tão orgulhoso e convicto que eu fiquei com a certeza de que nunca abrirá uma Bíblia, só para não pôr em risco, por culpa dele, aquele recorde. A mediocridade desta atitude, a mesquinhez irrelevante deste campeonato num guia que se pretende espiritual! A alienação completa que isto manifesta: andamos a competir por quem vende mais, lê mais, tem mais prosélitos?! Que espiritualidade é esta?! Um jogo de futebol, de râguebi? Onde está a vida interior, as alternativas de escolha dela, os empenhamentos geradores dum mundo novo? A facilidade com que a melhor fruta apodrece!

 

                   1 - Toda a vida me perguntei porque é que Jesus nunca escreveu nada. Mais: nunca mandou escrever. Mero acaso? Intenção deliberada?...

                   Por outro lado, é dele a norma de que nem um jota nem um til se devem mudar à Lei nem aos Profetas. Porquê, por parte de quem não vem trazer a paz mas a espada (Mat. 5, 17-19)? Vem cumpri-los, não abolir.

                   Tudo pende, portanto, da actividade, da realização, do cumprimento do ideário preconizado. E o ideário é: o Reino é de quem ouve a palavra de Deus e a cumpre. Tão simples! Como pudemos reduzir isto a ouvir um sermão, uma homilia, ler uns textos e, quando muito, transpô-los mecanicamente para a vida, faça-nos ou não interiormente qualquer sentido? Nem quem fala nem quem ouve ausculta o eco íntimo: para onde foi a voz de Deus?

                   Seria pretensioso demais e orgulho desmedido pretender que um celebrante, um pregador, um participante são a voz de Deus. Nem uma hierarquia inteira, por muito que porventura lhe e nos custe: era bem mais cómodo e preguiçoso deixá-los passar por Deus. Dormiríamos todos descansados... e alheados de nós e da realidade, a história que o diga. Quanto cataclismo, quanta desgraça quando este erro se generalizou (Cruzadas, Inquisição, guerras de religião, autos de fé...)! E já nem falamos dos reis que quiseram fazer-se passar por Deus ou, no mínimo, com um mandato divino. Tanto o lograram e tantos logrados encarneiraram atrás deles durante séculos que tudo explodiu nos massacres da Revolução Francesa pelo mundo fora. A voz de Deus é outra, indubitavelmente.

                   Em desespero de causa, todos se viraram para os livros: são inspirados, são a palavra divina por escrito. Seja a Tora, seja a Bíblia, seja o Alcorão. Curiosamente, até os orientais, cujas religiões não vivem dependentes dum livro, se têm ancorado mais e mais em textos ancestrais, alguns também milenares, remetidos a Buda, a Confúcio, a Lao Tsé...

                   O movimento é de tal ordem e tantas vezes já milenar (o Pentateuco, os cinco livros bíblicos reportados ao tempo de Moisés, nos textos mais antigos, de tradição iavista, remontarão a uns 3.500 anos) que no vulgo se generalizou a convicção de que são produto sobrenatural, fixo duma vez por todas e, por conseguinte, sagrado, intocável. No limite, vêem a produção daquilo tal como se Deus tivesse pegado na mão do escriba e o levasse a escrever a mensagem, tornado num automático robô. Nada ali haveria, pois, de humano: o homem teria sido então mera transparência integral de Deus, a fidelidade absoluta.

                   Isto pode parecer caricatural mas não é. Pior: não é apenas o populacho ignaro, alheio a estas querelas, que embarca em tal leitura simplista e desatenta aos factos. O aiatola Komeini, o líder espiritual inicial da revolução islâmica iraniana, condenou à morte, numa fatwa, Salman Ruschdie porque, no romance “Os Versículos Satânicos”, se atreveu a imaginar que o escriba de Maomé, farto de registar o que o profeta lhe mandava, decidiu pôr no texto uma marca sua e, onde aquele disse um “sim”, ele teria escrito um “não”, invertendo por inteiro o sentido do texto tido por sagrado, intocável. Nem sequer é uma tese teológica, é uma mera fantasia romanesca a alertar para a fragilidade de quanto neste domínio ocorre, de como a fanatização, a absolutização são perigosas, arbitrárias e fatalmente sem fundamento. Pois a tentativa de relativizar, tornar razoáveis as atitudes, levou a que aquele mentor-mor dum povo inteiro, um homem que dedicou a vida a este domínio de problemas, às vivências espirituais, um perito corânico, ao fim e ao cabo, longe de apoiar, ao menos tolerar tal apelo à razoabilidade, à humanização, não, levou a que tomasse a postura mais extremista, fanática: o Alcorão é tão sagrado que mandou matar em nome dele quem se atreveu a tocar-lhe, mesmo com uma inócua fantasia. É o homem feito para o sábado e não o sábado para o homem – comentaria Jesus (como ocorreu num caso paralelo).

                   Ora, como todo o tradutor é um traidor, bastaria só isto para impedir a dogmatização de qualquer texto pretensamente sagrado: as dezenas de uvas passas traduzidas por dezenas de virgens deveriam alertar o bastante para ninguém se demitir de tentar apreender o significado. De verificar em que sentido algo poderá fazer sentido. A tradução à letra finda por ser a mais traidora de todas: é não se colocar na situação, não reviver a conjuntura, não tentar pôr-se na pele do autor, a sentir o que ele mais provavelmente terá sentido, a vislumbrar o que ele terá entrevisto e que lhe fez luz na mente, que o tocou no íntimo.

                   Se quem ler um texto, por mais inspirado que tenha sido, não executar esta operação de tradução interior, é mais traidor que qualquer tradutor: caiu na primeira alienação, a de raiz, e nunca mais vai sair do buraco em que se encafuou. Tudo serão obscurantismos mortos que dele provirão e em que se perderá sem recurso, daí para a frente.

                   Basta comparar uma tradução da Vulgata (Bíblia vertida para latim por S. Jerónimo, séc. V d. C.) com a dos originais da Escola Bíblica de Jerusalém, com a mais comum entre os protestantes ou com a dum erudito qualquer para ficarmos elucidados: todas divergem umas das outras, por mais que o sentido geral seja comum. Nem poderia ser doutra maneira ou não seriam traduções. Isto é assim, independentemente das disputas históricas sobre o alcance de termos ou expressões determinadas (p. ex., o das palavras de Cristo na última ceia). Como as conotações das palavras nunca são iguais, que significaria rigorosamente um versículo qualquer? É impossível por inteiro chegar lá, seja qual for o texto. Só teremos aproximações, verosimilhanças. Cada abordagem lhe encontra uma faceta diferente e, quanto mais rico, maior o número delas.

                   Ocorre o mesmo, aliás, com qualquer obra de arte de génio, é uma das suas marcas mais características: no limite, é inesgotável em perspectivas e pendores de análise potenciais e reais. Felizmente ninguém se lembrou de tornar nenhuma destas sagrada nem nenhuma abordagem, dogmática. É pena não termos seguido este exemplo nas religiões. Teríamos evitado milhares de assassínios, mil e um crimes dos mais hediondos contra a humanidade. E quantas mais ideias, propostas e pistas de rumos para a plenitude teríamos ganho, embora a meio de proliferações de ganga inútil, a varrer para o lixo do desprezível ou de ignorar! Perseguidos, mortos ou amordaçados é que não dá... Quanta traição a nossa àquilo a que pretensamente nos propomos!

                   Concluindo: também por aqui a sacralização, a dogmatização é inviável. De quê, de qual das inúmeras versões? – perguntaríamos. E qualquer resposta é arbitrária e fortuita. Foi-o sempre, história além, e à custa de guerras e anátemas sem fim. Muito custa entender o fundamental! E ser-lhe fiel.

                   Neste domínio, nada mais elucidativo que a génese do Novo Testamento bíblico. É fruto de atropelos e acasos dos mais variados.

                   José Rodrigues dos Santos, no romance “A Fórmula de Deus”, fica muito espantado com a completa arbitrariedade da produção e canonização daqueles livros. A principiar no facto de nenhum ser contemporâneo de Jesus. Os mais antigos, eventualmente de pouco mais que um decénio após a morte dele, são de quem nunca o conheceu nem contactou pessoalmente. Aliás, era-lhe por inteiro adverso: Saulo de Tarso, na Turquia, que viria a ser S. Paulo após a conversão. É o maior produtor de textos neo-testamentários, sob a forma de epístolas a diversas igrejas. Mas até as últimas (mormente a Epístola aos Hebreus) é duvidoso que sejam de autoria dele, de tão tardias, embora oriundas das respectivas comunidades.

                   Já os Evangelhos são de produção posterior, duas gerações após, e proliferavam no meio de dezenas doutros, uns perdidos, outros considerados apócrifos. Não temos a certeza da autoria deles, suspeitamos que os sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) terão tido uma fonte comum mais primitiva que se perdeu e de certeza o de S. João não teve nada a ver com este Apóstolo, há muitos anos falecido quando ele foi redigido, o mais provável século e meio após a morte de Cristo. E, cento e cinquenta anos depois, qual a credibilidade de memórias e testemunhos? Quem conta um conto...

                   Como se isto não bastara, a escolha e fixação do cânone é fruto das tropelias mais inacreditáveis, de acolhimentos e repúdios por motivos disparatados, às vezes violentos, a culminar na intervenção de autoridades políticas que nem sequer eram cristãs, bem pelo contrário (as perseguições pontuaram os primeiros três séculos). Mas há decisões dali provindas! Que crédito é que isto merece?

                   Não admira que história além as disputas continuassem indefinidamente, até aos dias de hoje. O “Livro da Sabedoria”, último do Antigo Testamento, continua recusado por judeus e protestantes. A “Epístola de S. Tiago”, por muitos destes últimos. O “Livro dos Macabeus” também não consta da maioria...

                   Perante o degradante espectáculo de mútuos anátemas e violências, fanatismos contra fanatismos, prolongado por séculos e milénios, José Rodrigues dos Santos (e, com ele, decerto a generalidade dos indivíduos que disto se informem, contra o silêncio escamoteador das igrejas), conclui que Jesus deve ter sido um fanático extremista, à semelhança dos discípulos que milenarmente tem gerado predominantemente. É onde o nosso dislate conduz, como é óbvio. Qualquer teólogo minimamente ponderado concluiu sempre o contrário, em qualquer época e qualquer que seja a corrente, escola ou confissão. Só que não dá para verificá-lo nos prosélitos, história além...

 

                   2 – Sabes do que me apetece suspeitar, quando reparo neste panorama histórico globalmente? Que Jesus e o Espírito obraram o possível e o impossível para evitar qualquer texto que os fiéis pudessem tomar por revelado, que sacralizassem e entronizassem. E também eles findaram derrotados em toda a linha. Os fanáticos, os novos judaizantes, os fisicalistas acabaram dominando todas as comunidades e impuseram a respectiva versão: o Reino são as marcas que eles gravarem aqui na terra, a principiar pelos livros bíblicos. E, claro, a continuar na gradual institucionalização eclesiástica, depois na meta da cristandade, a culminar num Cristo-Rei qualquer que Jesus tem de aceitar à força, por mais que o repudie. Eles é que mandam, Deus, Jesus, o Espírito não mandam nada diante do poderio destes pretensos (e convictos) crentes.

                   Isto é sempre assim em todas as igrejas, por mais que rompam umas com as outras na busca de autenticidade, como em todas as religiões e respectivos ramos. Vivemos inexoravelmente marcados pela absolutização espontânea da nossa pequenez, jamais lograremos mondar o joio até ao fim. Também aqui a depuração é um itinerário ao infinito, jamais consumado de vez, portanto. Mal vai, desde logo, até quando nos congratulamos: fixamo-nos no produto, não no dinamismo dos ideais que o produziram. Perdemos logo estes de vista, ao primeiro desafio, aferrados ao obtido, não ao que o permitiu obter. E vamos ficando cada vez mais pelo caminho. É a nossa fatalidade histórica. A principiar logo pelos textos bíblicos, evidentemente: aferrar-se a eles também encegueira...

                   Ora, isto é assim com mensagens tantas vezes aleatórias, tantas vezes sem sabermos ao certo de quem. Imagina o que seria se Jesus tivesse escrito ou mandado alguém escrever! Se calhar já toda a gente teria matado toda a gente... sempre em nome de mais e melhor vida, claro! A nossa infinita capacidade de estupidez onde é que já nos teria encurralado?

                   Jesus foi muito esperto ao não nos colocar à mão semelhante arsenal de destruição. Claro que poderia ser bem usado, como tudo o que é proposto à escolha do nosso alvedrio. Só que ele (como nós) podemos verificar para onde a balança tem pendido milenarmente, de forma preponderante. A sacralização dos textos revelados, a dogmatização das mensagens leva-nos a refechá-los neles próprios e não há mais revelações. Daí a ficarem a cargo exclusivo de peritos é um passo de exclusão dos mais que pelos milénios se repete. Por fim, só há rumos de vida e vida a sério lá dentro. Cá fora é o mundo da alienação, o reino do demónio e quem não fizer parte daquele escol dos eleitos é pouco menos que um réprobo, logo à partida. Até predestinado para tal, o que torna Deus num grande diabo! Custa a crer, mas há quem tenha chegado a isto... É já o domínio do delírio, o reino da loucura. E Jesus não deixou nada escrito nem a mandado. Que faria se o fizera!

                   Isto recorda-me uma conversa tida há muitos anos, era eu ainda uma jovem estudante, sempre entusiasta por estas matérias, com o P. Emanuel Miroma, então ainda um seminarista nos primeiros anos de curso. Vínhamos duma reunião da JOC, era já noite alta, e parámos no Largo do Bispo, lá na aldeia. Era um Inverno seco e gelado.

                   - Já viste que os mais empenhados mantêm toda a fé bem viva e não precisam de se referir à Bíblia? – perguntava-lhe, meia admirada.

                   - Nunca tinha reparado. É muito curioso... – meditava o Nel.

                   - Julgo que é extraordinário, para mim é uma libertação – entusiasmava-me eu. – Isto é que é espiritualidade vivida na primeira pessoa, triada bem por dentro de cada um. Aqui é que há mesmo um itinerário interior a dar rumo à vida, auscultado a partir do íntimo de cada qual, alimentado pela intuição do coração, a transformar o mundo e a ser julgado e aferido conforme os frutos que vai dando nele. Aqui já não há cópias, há originais.

                   O P. Emanuel ouvia calado, atento e meio espantado, quase interdito.

                   - Para estes, a Bíblia, a teologia, os livros espirituais cumpriram a função que deviam: ajudaram-nos a caminhar sozinhos. Doravante os caminheiros já vão pelo pé deles, é um movimento fantástico. Que maravilha! – alegrava-me eu, meio arrebatada pela descoberta.

                   - Pois, estou a ver... – ponderava o Nel. – Lindo mas muito arriscado, não é ?...

                   - Evidentemente. Não há caminho sem tropeços. Mas ao menos aqui não é o pego em que a ronceira máquina eclesiástica nos veio afundando cada vez mais a todos, pelos séculos fora. A rotina morta e letal para as grandes massas. Mesmo os maiores mestres servidos como cadáveres inócuos. Ao contrário, aqui há vida, Vida! É fenomenal!

                   - Até quando?... – duvidava o Nel.

                   - Ora! Até perderem o norte, não é? Mas estas reuniões revitalizam, a reaferirem permanentemente o rumo. Já reparaste que isto é como eram as das comunidades primitivas, as dos Actos dos Apóstolos e das Epístolas, mormente as paulinas? De certeza que operavam como estas, nunca eram as liturgias das multidões, nem as solitárias ou de grupúsculos, reduzidas a esqueletos daquelas. Eram a revisão da vida nas coordenadas da fé, quer dizer, na esperança da ressurreição do mundo e de cada um nele. Andamos a reencontrar o fio da meada!

                   - Mas sem bússola... – continuava a hesitar o Nel.

                   - A vantagem é que não é sem ela, é com ela no bolso permanentemente disponível. A bússola bíblica e todas as mais, com tudo o que a cada um permitiu amadurecer até à adultez da autonomia do itinerário. Qualquer desvio, qualquer impasse, é só retornar às fontes para não perder de vista o fito e realimentar-se. É o grande fio condutor do Concílio Vaticano II. Nada de repetir o receituário ancestral, antes aprender e reproduzir o trilho que levou até ele, agora no contexto actual. Que é que Jesus faria se estivesse aqui, confrontado com os desafios de hoje? Tentar deslindar isto e  depois cumprir o que lograrmos vislumbrar, até onde a intuição discernir e os recursos disponíveis no-lo permitirem. É todo um mundo novo que vem daqui! Andamos já a lidar com ele a cada dia, não é? Por muito germinal que seja...

                   E o Nel, nem que sim nem que não. A apetecer-lhe e a temer, um passo à frente, dois atrás. A eterna incapacidade da institucionalização religiosa para acompanhar a aragem do tempo, até ser varrida pela ventania dos temporais. Seja lá qual for a religião, nenhuma tem o monopólio desta asneira. Nenhuma vive o êxtase onde ele se lhe revela, mas sempre num sepulcro qualquer de antanho que passa a vida a caiar de branco... E a vida a correr-lhe ao lado, eternamente ignorada.

 

                   3 – Fiquei muito curiosa quando me contaste que a tua filha Natércia tinha decidido ler a Bíblia, para não andar mais a falar do que ignorava. Era para eu verificar até onde é que ela resistiria. É que nem com um curso de Exegese e com um grande mestre a monitorá-lo a tarefa é fácil. Quanto mais a sós! Não me admirou nada quando referiste que foi sol de pouca dura. O que ela ia lendo não lhe dizia nada de significativo, não a tocava de forma nenhuma, ditos banais, lugares-comuns, histórias como tantas outras... E, depois de tudo, velharias ultrapassadíssimas, povos e culturas enterrados há milénios, sem qualquer ponte para a contemporaneidade... Quem é que pauta a vida por tal guião? Vive enterrado num túmulo egípcio, feito múmia ambulante?! Que disparate é este?! Que raio andam as religiões a fazer?! São as perguntas pertinentes dela, evidentemente.

                   Daqui a saúdo e lhe dou os parabéns, até por isto. A transparência é fundamental, nada de duplicidades. É assim que podemos verificar como tudo por aqui anda inçado de absurdos, disparates de alucinados tornados normativos, pretensamente muito iluminados, sobre toda a gente. É inadiável a repulsa e a irradicação de dislates que passem por sabedoria.

                   Mais intolerável tudo isto deve ser para ela, uma vez que nasceu com o dom de comunicar com o lado de lá da morte, de múltiplas maneiras: vê os falecidos, fala com eles, sente-os até em contacto físico, verifica interferências que operam com o mundo sensível... Para quem vive com tudo isto como uma rede natural de faculdades próprias mas invulgares, deparar-se com obscurantismos, fanatismos, dogmatizações de crendices infundadas e infundáveis não deve ser fácil nem facilmente tolerável. A serenidade e paz com que o enfrenta, a indiferença, é mais um motivo de minha admiração. Isto toca-me, isto é a espiritualidade em concreto a lavrar a vida no quotidiano, também a minha.

                   O mais curioso é que, relatas-me tu, a Natércia devorou os livros todos de Paulo Coelho, de Neal Walsh, de Alexandra Solnado, de Lorna Byrne, de John Edwards, de Teresa Caputo, sei lá que mais. Até os romances de James Redfield. E por aí além... E todos estes saboreia-os deveras, estes tocam-na fundo, abrem-lhe roteiros, iluminam-lhe caminhos. Numa palavra, trazem-lhe revelações. A Bíblia, não. Não é curioso? Muito estranho!

                   Significativo também, em meu entender, é que, para ela (como para mim, aliás), é completamente indiferente a ligação destes autores a qualquer confissão religiosa. Uns têm-na, outros, não. E mesmo os que a mantêm confessam a incomodidade do laço, pelo não reconhecimento e marginalização a que os votam, como ocorre com as católicas Lorna Byrne e Teresa Caputo. São, todavia, mentores da vida espiritual assumidos, no sentido de questionarem a vida interior, os valores, as escolhas e os rumos trilhados realidade além a todos os níveis, pessoal, familiar, comunitário,  político, mundial... E em quaisquer que sejam os campos, da saúde à economia, dos afectos à comunicação, da demografia à ecologia... Não há limites, a interioridade mexe com tudo em todos os domínios, o mundo inteiro cruza o íntimo de cada um e desafia-o perenemente a moldar-se e a modelar o Universo, átomo a átomo, desde a lareira de sua morada.

                   Outro aspecto que me confidencias é que a Natércia não suporta nenhum autor dito espiritual dos oficialmente acolhidos por qualquer igreja ou religião, dos que antigamente, por exemplo, tinham o “nihil obstat” da censura eclesiástica católica e agora continuam do mesmo teor, por idênticos caminhos. Como eu a compreendo! A literatura religiosa, os autores edificantes... Em qualquer confissão é o mesmo, de facto. Que engulhos! Ela repudia-os por não aguentar a lamechice, o sentimentalismo, a permanente piroseira de que se embebedam. Por outro lado, não suporta o encarneiramento dos indivíduos, do rebanho, a permanente tentativa, mais declarada ou mais escondida, de enfiar todo o mundo na respectiva seita. Andam todos a salvar o deusinho deles, estão-se nas tintas para os homens e respectivas encruzilhadas. Que deus é este (e é o de toda a gente com fé institucionalizada) que precisa dos homens para ser salvo? Como é que esta multidão não repara na idolatria em que vive sufocada, prisioneira do redil? Que importa à humanidade este clubismo, este sectarismo? Ainda por cima vai das religiões mais populares às mais remanescentes... Cruza tudo, não há por aqui anjos impolutos.

                   Compreendo muito bem a tua filha porque eu fiz o itinerário inteiro. Lembras-te, em Coimbra, de eu sair à rua tanto tempo com a minha Bíblia de Jerusalém debaixo do braço? Até eu me ria de mim, sabia que a não abriria, mas era uma espécie de cajado a que me amparava: era o meu pólo de recentração naquele tempo. Duas obras de literatura piedosa ainda então me tocavam e muito: a ”Imitação de Cristo” (Tomás de Kempys) e “Caminho” (José Maria Escrivá). Lembro-me de que já então as críticas a esta última me obrigaram a reflectir. E também me recordo de que não entendi nada das limitações de que o livro era acusado. Decénios depois, hoje em dia, quanta papolatria lá descubro, quanto sado-masoquismo a passar por exercício espiritual! Tal e tanto que quase me encegueira para o resto... É extraordinário como a gente muda quando quer mudar deveras! E o meu voto, a minha busca, foi sempre para que fosse para melhor. E continua...

                   Claro que doravante também eu não suporto nenhuma literatura piedosa, venha ela donde vier: é alienação institucionalizada. Em contrapartida, também vivo empolgada com os autores espirituais ditos de auto-ajuda, tal e qual a tua filha. Desempoeirados, estes tocam no coração de todos os sentidos de vida. É a única coisa que importa, o resto ou existe em função disto ou é lixo que não serve para nada. Infelizmente é o lixo que anda predominantemente institucionalizado, seja em que religião for, seja em que igreja, mesquita ou sinagoga for.

                   Naqueloutra vertente, eu (como a Natércia) reencontro a Revelação, aqui é que há textos inspirados, aqui é que Deus, através do Espírito, nos fala a toda a hora e desafia a reajustar a vida, seja em que domínio for, aqui é que tambores da realidade nos ribombam no coração, aqui é que os ecos íntimos despertam todos, a espicaçar-nos a dar a nossa pequena migalha para matar a fome de Mundo Novo, de nova Humanidade. Aqui reencontramos a Bíblia, uma bíblia leiga! Por mãos leigas, nalguns casos mesmo irreligiosas. Aqui é que Deus anda a inspirar os autores, por acaso nada sagrados. Como os antigos também praticamente nunca o foram quando intervieram. Antes de os funcionários, os burocratas, os mangas-de-alpaca eclesiásticos alterarem tudo, repescando-os e fechando-os a sete chaves: doravante ficaram sagrados, os intocáveis. Há milénios que se procede a esta alquimia de transmutar o oiro em ganga, por mão dos profissionais do santuário. Cheios de boa fé, porventura, mas a perverterem tudo muito eficazmente.

                   Resta apenas uma diferença entre mim e a tua filha: é que eu encontro o mesmo apelo na Bíblia, como na Patrística, como nos teólogos que me tocam, como nos místicos... Com efeito, disponho duma chave que ela não tem: a formatura em Teologia. Sem ela, o labirinto é definitivamente impenetrável, por mais que a gente o frequente. Até podemos montar ali a nossa tenda, viver lá dentro a vida inteira: não passaremos duma família de ciganos a ocupar um pardieiro e que não fará jamais ideia alguma do que ele foi nem do que representa. Enquanto as ruínas não forem postas a falar pela mão perita de quem as compreenda, nada feito. É um mero destroço perdido, a esboroar-se, no meio da paisagem luxuriante da vida. E que os ventos da História irão tragando inexoravelmente, até reduzir tudo a pó, mais nada. Uma ruína entre ruínas que apenas arqueólogos poderão ir decifrando.

                   Nem sequer tem mal nenhum se desaparecer: afinal, a revelação continua, a Deus ninguém o pode parar, nem um decreto da Igreja a dar por findo o período dos textos inspirados, ou a fechar-lhes a listagem (que, afinal, ninguém logra fechar sequer a contento de todos). Ninguém repara que isto é pretender mandar em Deus? Ninguém denuncia quanto orgulho aqui campeia? Nem que farisaísmo é este de pretender ser tão fiel, tão submisso a Deus que não nos podemos enganar ao decretar quando e onde Deus inspira ou a quem? Ninguém vê a mentalidade judaizante que, à falta de circuncisão, nos pretende enclausurar num texto, num livro, num momento histórico qualquer, por mais privilegiado que seja? É sempre tentar aprisionar seja lá onde for, parar a história, garantindo que a salvação vem do respeito dum ritual, duma leitura, dum livro, dum gesto... Ninguém denuncia a atitude supersticiosa, o mecanicismo grosseiro disto, a redução do espírito a uma materialidade, a uma historicidade qualquer? Como podemos andar tão cegos? E sacralizar a cegueira?!

                   Ninguém aceita o critério decisivo de S. Pedro: se Deus pratica neles maravilhas, quem sou eu para me opor a Deus? De facto, nenhuma religião nem nenhuma instituição religiosa o acolhe ou nenhum ecumenismo seria requerido, todos abraçariam todos no Infinito que a todos intimamente nos polariza, quaisquer que sejam as diferenças, contradições ou divergências. Perdida a Infinidade de vista, restam apenas destroços históricos espalhados pelo terreno da memória de cada qual e a eles andamos todos agarrados, como a tábuas de naufrágio. É isto o que predomina no mar do tempo e é uma pena. Não tem interesse nenhum e não serve para nada, a não ser porventura para nos afogar de vez a todos, qualquer dia.

 

                   4 - O monumento megalítico de Stonehenge, na Inglaterra, atrai mais dum milhão de turistas por ano que, com ou sem guias, lá vão verificar o calendário de pedra do solstício do Verão, o alinhamento lítico que nesse dia continua a projectar o sol nascente na lájea que identifica o ponto mais setentrional anual da nossa estrela, no horizonte do céu.

                   Percorri há meses um périplo turístico pelo norte e centro do País. Em todas as igrejas visitadas (excepto em Santiago de Compostela, na Galiza) era muito maior o número de turistas que o de crentes, mesmo quando acertámos em hora de celebração litúrgica. Com a guia a apontar e explicar pormenores, curiosidades, momentos e personagens históricos, obras de arte, soluções arquitectónicas, características típicas de estilos artísticos e de épocas – tudo aquilo que era pedra morta, embora organizada, ganhou imediatamente vida e conseguimos transportar-nos para lá e reviver mentalidades, sonhos, frustrações, grandezas e misérias de antanho que marcaram nossos avoengos.

                    É um contraste extraordinário com a postura dos fiéis. Estes são inteiramente indiferentes e ignorantes do contexto monumental onde celebram. Obviamente que são fins tão distintos que nada têm de comum e não há nenhum mal em que assim seja. O curioso é que os crentes não se dão conta doutra realidade: é que andam passando pela liturgia como o turista sem guia que olha o monumento e tudo lhe é opaco. O desinteressante disto leva cada vez mais indivíduos à indiferença, desde há séculos. Quanto mais durar, mais há-de ocorrer. Daqui até ao agnosticismo e ao ateísmo é um passo ligeiro. Claro que celebrar na própria língua, entre católicos, melhorou um pouco; rápido cansou, todavia.

                   É que no próprio turismo ocorre isto: um casal amigo, semanas antes da minha viagem, foi visitar a Universidade de Coimbra, exactamente o circuito turístico do edifício pombalino (outrora proibido, hoje aberto ao público) – mas sem guia. Não entenderam nada, arregalaram a vista não sabiam para quê, repararam nos milhares de lombadas de obras da biblioteca joanina sem poderem tocar em nenhuma nem vislumbrarem que é que ali haveria porventura de importante... Saíram com uma decepção completa. Ora, quem entra pela porta de qualquer religião é isto que sofre. A opacidade é de tal ordem que nem o exotismo nem a eventual beleza mais ou menos folclórica de ritos e tradições bastam para prender a sensibilidade e mobilizar a atenção. Já nem falo de dar qualquer sentido à vida... Pouco importa que tudo ocorra em vernáculo ou em latim, a questão de fundo é que são tudo mistérios, mistérios a remeter para mistérios e todos eles definitivamente insolúveis. Não há paciência!

                   Que faz o crente comum? Repete as palavras predeterminadas que decorou, distraidamente, sem lhes atribuir sentido algum, ergue-se, ajoelha-se, senta-se, levanta-se, persigna-se... e pronto! Cumpriu a receita mágica que lhe escancara a porta do paraíso! É exactamente o que faria a bruxa tradicional de há séculos: uns termos incompreensíveis, uns gestos aleatórios enigmáticos... e zás! Aí temos a panaceia milagrosa da cura de todos os males. Não há diferença substancial nenhuma.

                   Tudo é, portanto, essencialmente superstição. Agora como outrora. Quem pretender uma vida autêntica, com a razoabilidade possível, tem de afastar-se, obviamente. Ou mergulha em profundidade e reencontra, eventualmente, o alcance de tudo ou vai-se embora. Esta alternativa é mais fácil, logo mais comum; aquela é laboriosa, logo reservada a uns poucos, mal se dá por eles.

                   Como a verdade sai da boca das crianças, uma sobrinha minha, a Inês, na primeira missa a que foi, intrigada com a intérmina sequência de ajoelhar, levantar, sentar, cutucou a mãe:

                   - Eh, pá, decidam-se! Já estou a ficar farta disto...

                   Um primo dela, o Alberto, um pouco mais velho, quando fora a vez dele, depois de olhar detidamente os quadros da Via Sacra espalhados pelas paredes da nave, interpelou a progenitora:

                   - Já vi os retratos todos. Já podemos ir embora. Vamos?...

                   Como é óbvio, nenhum deles foi atendido, mas, no fundo no fundo, eles é que tinham mesmo razão. Perante o que não tem sentido nenhum, que atitude tomar, afinal?...

                   Como o turismo rende muito, um grupo de indivíduos da região de Stonehenge escolheu celebrar com rituais célticos o dia 21 de Junho, o solstício de Verão, como poderia ter sido há cinco milénios atrás. Claro que ninguém (nem eles) faz nenhuma ideia do que aquilo teria comportado. Mas imaginaram vestimentas cerimoniais e todo um ritual de culto do Sol a impetrar por boas colheitas e melhores caçadas. Correu logo nas redes sociais, nas televisões do mundo inteiro... Grande negócio: rende em publicidade, rende em turismo, rende em animação comunitária, melhora a vida de toda a gente, até a dos mais forasteiros atraídos.

                   Ninguém acredita que aqueles protagonistas creiam no deus Sol nem nas pantominas que encenam. O mesmo ocorre com os participantes. Resulta, porém, em festa e vai dando de comer a muita gente, o que é muito bom.

                   Quanto do culto litúrgico das religiões actuais se reduz a isto? Mero teatro sem qualquer fé a animá-lo, um modo de vida apenas, para uma classe social outrora privilegiada, o clero, há séculos em decadência, juridicamente abolida mas socialmente persistente, em interminável agonia. Entre cristãos a pergunta impõe-se, mas entre os mais, igualmente, que a indiferença alastra pelo mundo inteiro, qualquer que seja a zona de influência. Toda a religião vive em crise. Quando não há outro modo de vida, que fazer? Uma antiga aluna minha procurou-me para desabafar. Namora há muitos anos um padre católico e não vê saída:

                   - Ele diz que renunciaria à função se tivesse algum modo de subsistência, mas não tem. Eu também ganho pouco e, pior, não é fixo, não tenho garantia nenhuma. Que é que a gente pode fazer? Estamos encurralados. Temos a vida adiada há anos e anos e tudo indica que irá ser assim até ao fim. É muito triste. Perde-se a alegria toda de viver. No fundo, é uma vida inteira para nada.

                   Claro que, se fora protestante, judeu ou muçulmano, o problema não se poria. O celibato eclesiástico obrigatório é mais uma superstição exclusiva da maioria da Igreja Católica. E não de toda, que em igrejas orientais é uma escolha livre como, evidentemente, deveria ter sido sempre, não fora a hegemonia de fanáticos medievos, sem qualquer sentido do que é autenticidade espiritual, e que teimam em construir um Reino de Deus na terra, contra Cristo, para quem “o meu reino não é deste mundo.” Mas Virgílio Ferreira, em “Manhã Submersa”, põe a mãe do pequeno seminarista desistente muito aflita a confessar que o mandara para padre para lhe proporcionar uma boa vida, longe da miséria de origem. Agora, como garantir a sobrevivência? No romance, o miúdo teve a coragem de abandonar. E os que não têm? Que espiritualidade subsiste quando é tudo apenas um modo de vida como qualquer outro?

                   Muito padre, muito bispo, muito papa é bem capaz de ser um ateu completo! Muito frade, apenas irmão dum estômago pantagruélico! Muito fiel praticante, apenas um bruxo supersticioso da actualidade! E qualquer deles, eventualmente, sem qualquer ideia do que é vida espiritual. E quantos deles, se calhar praticamente todos, sem qualquer má intenção, apenas ignorantes (as tais boas intenções de que o inferno está cheio, no dito popular)!

                    Curiosamente, os arqueólogos desvendaram uma grande quantidade de mistérios que rodeavam Stonehenge: é muito mais antigo que os 5.000 anos celtas que se criam, remontará a uns 10.000 anos; as penedias descomunais foram carreadas de mais de 200Kms de lonjura por motivos bem pesados: o círculo megalítico e o fosso que o limita em redor ficam no meio duma planície de rebanhos de auroques (um bovídeo hoje extinto), a sorte grande para a sobrevivência dos primitivos, se as caçadas fossem bem sucedidas (daí apelar aos deuses); foi cemitério dos caçadores na idade dos metais, cada um deles identificado por um machado gravado na penedia, no lado exterior do recinto; abandonado como templo na era cristã, já sem caça sobrevivente, foi cemitério de criminosos degolados, derradeira execração deles (repudiados para terreno pagão).

                   Aqui as pedras falam. E nada tem a ver com as abordagens cegas empíricas, folclóricas, turísticas ou, eventualmente, crendeiras.

                   O mais estranho é que, quando escavamos na ancestralidade de qualquer religião, mesmo das ainda hoje vivas, o que desvendamos é perfeitamente idêntico ao desta religiosidade extinta de antanho: tudo ganha um novo sentido, logramos acompanhar o itinerário humano pelos séculos e milénios, nas iniciativas para se salvar, ali garantindo a sobrevivência pelo alimento, pela penalização do crime, pelo controlo do tempo, da meteorologia germinal (fixação do solstício de Verão, ainda hoje operacional nos megálitos), por um culto à maior energia identificada de que dependiam, o deus Sol, que transcendia absolutamente todo o poder de controlo que tinham. Tudo perdeu qualquer aura de sagrado, de intocável, como de sobrenatural, hoje em dia.

                   É o que permite a abordagem livre e, assim, discernir todo o trilho de secularização pelos milénios além, sem o constrangimento de tabus, de fronteiras dogmáticas, de poderes sacralizados, de crenças, com as correspondentes perseguições por blasfémia e sacrilégio, sem os atilhos interiores com que toda a fé, toda a religião tende a policiar a consciência de qualquer fiel, sem as rupturas heréticas que tanto penalizam a vida afectiva e relacional de cada um dos envolvidos e das respectivas comunidades.

                   Esta libertação deveria ser normativa para quenquer que medite sobre a fé que tem, sobre a religião em que se integra ou o rodeia. Seja qual for a posição que aí detiver, desde o Papa ao derradeiro fiel, entre católicos, os mais hierarquizados (os mais atreitos ao abuso do poder), aos demais cristãos, aos muçulmanos, aos judeus, aos budistas, aos hindus, aos xintoístas... É como olhar de fora, como um estranho, e auscultar os ecos que em seu íntimo desperta e que fazem luz em qualquer que seja o campo, no domínio da personalidade, da comunidade, da humanidade, da cultura, da época...

                   O mesmo ocorre com os textos sagrados, revelados, inspirados. Por mais que isto choque mentalidades e tradicionalismos rotineiros que se cristalizaram e logo se dogmatizaram nas atitudes e comportamentos dos crentes. É que, quando foram produzidos, os livros apenas foram inspirados, quer dizer, os autores fizeram o possível para serem fiéis ao fito que visaram, com a visão que os empolgava da fé que os movia, bem como com aquelas limitações que todos como humanos temos. Quer dizer, cometendo erros, enganando-se nas interpretações, estando limitados pela cultura dominante de que partilham, pela moralidade ambiente inquestionada, pelos usos e costumes estruturantes da comunidade e assim por diante.

                   S. Paulo ficaria espantadíssimo se lhe garantissem que as epístolas que mandou eram revelação divina. Nunca lhe passaria tal coisa pela cabeça, ainda por cima tendo de se retratar, por exemplo, da interpretação precipitada do fim dos tempos. Pior, se lhe garantissem que os textos eram sagrados, palavra de Deus inviolável. Ele de certeza chamaria idólatras aos que tal pretendessem. As próprias comunidades primitivas nunca lhe pregaram tais partidas, doutro modo não teriam perdido outros recados que ele de certeza terá remetido, nem considerariam como seus textos que decerto lhe não pertencem, nem fariam circular entre elas outros que acabaram perdidos, ignorados ou repudiados (só de evangelhos corriam dezenas), por se não reconhecerem neles. Todo o processo foi o mais natural possível. A sacralização é uma mistificação.

                   Foram as gerações posteriores que colaram à Bíblia o rótulo de revelação divina. Mesmo isto, embora abusivo relativamente ao intuito dos autores, é assumível no sentido de que é o que eles pretendem revelar acerca de Deus, é o entendimento que têm do tema e dos relacionamentos a entabular duns com os outros derivados daquela leitura. Pior é tornar tudo sagrado: intocável, refechado à abordagem de quenquer, como o Antigo Testamento na Arca da Aliança. A sacralização leva tendencialmente à última palavra: está tudo dito, Deus fechou a porta da locanda.

                   Nada disto tem qualquer validade, é tudo mera arbitrariedade abusiva de gerações posteriores. Aliás, ocorreu o mesmo com todos os textos bíblicos, desde os mais primitivos. Do original ao copista há sempre esta degradação, este entendimento abusivo de fazer passar por divino o que é exclusivamente humano, colocando-o a substituir Deus no apelo a cada qual e ao respectivo relacionamento com o desafio da Infinidade, com o seu itinerário individual rumo à plenitude. Transforma-se Deus numa criação humana, o que é sempre uma idolatria.

                   Ocorre o mesmo em todas as religiões, do livro ou sem ele: a fonte original é sempre trocada por um produto qualquer que se lhe reporta e logo aquela acaba ignorada, substituída por este no coração de cada crente. É a tragédia perene de toda e qualquer fé, mesmo da religião sem Deus dominante no extremo oriente: as realizações substituem a inspiração que levou a elas e logo nelas nos enclausuram, fechando a porta ao apelo do Espírito que a elas conduziu, que as gerou.

 

                   5 – Parece uma diferença de nada mas é todo um mundo de diferenças: nas atitudes, nos comportamentos derivados, nos projectos, nas concretizações.

                   Quando visitamos Évora, começando pelo Cromeleque de Almendres, da Idade da Pedra ainda pouco trabalhada, correndo após pelos múltiplos dólmenes, todos alinhados tendencialmente para o nascente do solstício de Verão, 21 de Junho, passando pelas grutas já com alguns desenhos e gravuras de cabeças de cavalo na pedra das estalactites, correndo depois o aqueduto, a muralha, a Capela dos Ossos e culminando nos palacetes, solares, igrejas e conventos, até à actualidade, quando o fazemos, seguimos o itinerário multimilenar de nossos avoengos na luta pela sobrevivência e qualidade de vida, lobrigamos o impulso vital que os aguilhoou a não pararem nunca, o espírito que os animou e inspirou as sucessivas soluções encontradas, cujas concretizações sobreviveram ao pó dos tempos e nos vêm falar ainda hoje do ânimo com que enfrentaram e superaram os desafios e perigos, da inteligência com que engendraram saídas, da emoção com que celebraram vitórias e honraram perdas afectivas...

                   Isto é que nos toca nas ruínas, nenhum guia turístico pretende que habitemos as cavernas, erijamos cromeleques ou montemos novas capelas de ossos. É isto, porém, o que toda a religião faz: enfia-nos nos antros de antanho e incita-nos a morar definitivamente aí, reproduzindo pelos séculos fora, pelos milénios além, o monumento alguma vez erigido outrora, nalguma hora mais feliz. Seja o monumento de pedra, seja o do texto escrito, seja o do rito, seja o da doutrina, da moral ou da mentalidade. Nunca a abordagem predominante foi aqueloutra mas esta. Em todas as religiões.

                   Não recuando ao primeiro momento, antes o obliterando, ofertando-nos o produto, não o dinamismo e motivação que o produziram, a religião torna-nos cavernícolas. Vai desde os paramentos litúrgicos (alguém hoje veste aquilo?), à arquitectura dominante em cada século (aqui foi mais fácil cobrir etapas...), às instruções comportamentais (vai sempre atrás dos tempos, a tentar travá-los às arrecuas).

                   Na outra atitude, encontramos toda a gente igual a nós no destino humano e na procura de caminhos. Seja aqui, seja nos antípodas ou em qualquer lugar intermédio, na Idade da Pedra, na época histórica ou na contemporaneidade. Vivemo-nos todos irmanados no mesmo fito perpetuamente procurado, com vitórias maiores ou menores, com derrotas mais ou menos desastrosas. Mas comungamos sempre com o espírito da humanidade, sempre indomável, sempre a renovar-se, nunca se dando por vencido. Espantamo-nos com constantes surpresas: é a admiração que nos estimula a correr por nossa vez, por nosso pé, no nosso mundo (não num qualquer de antanho).

                   Reencontrando o caminho do Espírito nas pegadas dos homens e não apenas as marcas deixadas ao correr da estrada (através das quais, afinal, o vislumbro), escancara-se-me definitivamente o portão para todo o ecumenismo. Aqui sinto-me definitivamente irmão de todos os humanos, sejam de minha fé, doutras fés ou de fé nenhuma. Ali, nessa raiz, somos todos um. Se acolhermos isto em cada qual, se o apoiarmos, andaremos a abrir caminho ao Espírito que dentro de todos nós, sem excepção, nos polariza para a plenitude, nos ruma à Infinidade. Sejam quais forem os ritos divergentes, as teologias contraditórias, os caminhos desencontrados a que cada um, cada comunidade, cada religião for conduzida. Tudo isto são produtos humanos, por natureza transitórios e falíveis, relativos a épocas e circunstâncias em mudança permanente. Tudo isto é de somenos, tudo é derivado, traduz e trai, inevitável e simultaneamente, o impulso do Espírito que o anima, até onde os protagonistas o logram discernir e incarnar em actos. Isto em si, portanto, não importa nada, mas apenas a alma que o anima, até onde lhe for logrando ser transparente, ser fiel. Não interessa a palavra (em qualquer sentido) mas o significado que carreia: sem isto, ela em si de nada vale.

                   Ao invés, se me deixo aprisionar nesta teia de produtos, então todos somos diferentes, muitas vezes contraditórios, definitivamente irredutíveis. Pior, se tomo o produto como a incarnação definitiva do Espírito (e não como realização humana relativa e falível, por mais privilegiada que seja), então o diferente trai o divino, é corrupto e, não tarda, o demoníaco inimigo a abater. Foi o que nos levou às tragédias de antanho (excomunhões, Cruzadas, Inquisição, guerras...). Foi assim no cristianismo, é assim ainda nele e em todos os mais (até o ateísmo militante se tornou persecutório e assassino...). Não entenderam nada.

                   É onde leva irremediavelmente deixar à rédea solta os funcionários do sagrado, da clerezia ao derradeiro sacristão (seja qual for a designação em cada crença, até na do ateu). O texto mais ou menos inspirado (o do ateísta também o é, ao denunciar a traição humana das religiões, até obriga o crente ao jogo limpo – “O Drama do humanismo Ateu” – Henri de Lubac) deriva logo para verdade revelada, o que é mera escolha do crente, sempre falível e contestável (e não apenas a do ateu...). Logo depois, que mais não seja por preguiça, a verdade revelada dogmatiza-se na cabeça e nas atitudes do praticante (o carrasco assassina tanto no terreiro da crença como no da descrença): aquilo passou a ser a realidade, sem tirar nem pôr, é definitivo. Finalmente, arquivam-nos para a eternidade, quer dizer, decretam que é sagrado, isto é, intocável, fechado a sete chaves numa qualquer Arca da Aliança, sob pena de morte a quenquer que o viole, física ou moralmente, como em tempo de Moisés, há 3.500 anos atrás.

                   Se os degraus anteriores são contestáveis, falíveis e deturpações sempre da vivência inicial iniciática, do momento inspirado e inspirador, do secreto diálogo imo-eu do autor, da interacção eternidade-tempo, Espírito-matéria, este último passo é a escamoteação consumada: o que devia ser semente de vida torna-se cadáver, a apodrecer toda a vergôntea vindoira, a anular qualquer revitalização, qualquer derivação, qualquer inovamento. Tudo morto e enterrado numa Arca da Aliança inteiramente falseada. Ali tentam parar o tempo, ali morre a história, nem que seja a ferro e fogo. Assim ocorreu nestes dois milénios entre cristãos, nos anteriores entre judeus e vizinhos, os muçulmanos não foram menos de deitar mãos às armas, logo por iniciativa de Maomé, e não faltam exemplos quejandos noutras confissões. O mesmo itinerário conduz inelutavelmente ao mesmo resultado. Em todos os casos, o momento inicial foi abolido, ninguém mais o retoma, jamais se repete. Ora, era o único revelador, só nele o Espírito move um indivíduo por dentro.

                   Como a boa árvore se reconhece pelos frutos, como é que ninguém reparou nisto? Como é que ninguém denunciou os degraus que nos precipitam há milénios no mesmo abismo de mortandades criminosas? Como é que ninguém arrepia caminho? Como é que ninguém aceita abrir-se ao Espírito que nele permanece, assim, amordaçado definitivamente? Como é que em todo o lado, em todos os tempos, acabam sempre predominando os burocratas do Espírito que de espiritualidade nunca entenderam nada, antes a estropiam por inteiro, reduzindo-a a receituários de drogaria?

 

                   6 – Na politeísta antiguidade clássica greco-latina, os autores, de Homero a Virgílio, acreditavam que a inspiração lhes provinha das musas, entidades divino-humanas, que invocavam no cabeçalho dos poemas épicos para lhes serem propícias. Camões, descrente delas como todo o cristianismo, usa o artifício literário de invocar as Tágides que ele inventou a propósito, na introdução de “Os Lusíadas”, para seguir o modelo clássico.

                   Contemporaneamente, a psicologia, após séculos de esporádicos testemunhos e reflexões filosóficas acerca do instante da iluminação (insight) que subitamente nos revela a solução dum problema, a saída dum desafio, a lei dum fenómeno, tenta decifrar o mistério que se esconde por trás e por dentro desta vivência-experiência da intuição.

                   Não depende da vontade do indivíduo: pode até levar uma vida inteira de pesquisa laboriosa e empenhada sem lograr atingir elucidação alguma (“ Corpos e Almas” – Maxence van der Mersch). No momento em que ocorre, por norma o indivíduo está pensando noutra coisa qualquer, distraído: não provém da consciência, mas do inconsciente ou do subconsciente (é célebre o “Eureka!” – “Encontrei!” do sábio grego Arquimedes, durante o banho, que o levou à lei da impulsão). Tem mais probabilidade de ocorrer, por outro lado, se nos concentrarmos na questão e persistentemente voltarmos a ela, eventualmente pela vida adiante (Jean Piaget até nas férias com a família continuava a reflectir sobre o desenvolvimento do intelecto).

                   Um problema pode saltar de geração em geração, durante séculos ou milénios, sem ninguém lhe descortinar saída: modelo do sistema planetário (Nicolau Copérnico propõe o heliocêntrico, oriundo de Aristarco de Samos, séc. VII a. C., mais de mil anos depois do geocêntrico de Ptolomeu); a queda dos graves (Galileu define-lhe as leis também mais de mil anos após a solução ilusória de Aristóteles); lei da gravitação universal (Newton, “aos ombros de gigantes” logra defini-la séculos, milénios após os mitos da Terra aos ombros dum semi-deus qualquer, um Atlas, uma tartaruga, nalguns primitivos actuais).

                   Não é outra a inspiração dos livros sagrados: é inteiramente falsa a pretensão de que a que ocorreu com eles foi especial, particular e exclusiva. Esta interpretação e convicção é, uma vez mais, fruto da degradação praticada pelo funcionalismo sacro (pretensioso e monopolista quando se não depura) a corromper e a eliminar do horizonte da vivência espiritual de qualquer praticante justamente o que deveria ser o núcleo criador da respectiva espiritualidade, a auscultação da subtil impulsão íntima, a impelir e atrair a vida inteira, através de todas as faculdades, afectivas, intelectuais e activas. Toda a mediação exterior (director espiritual, confessor, Bíblia, liturgia, livros edificantes, práticas de piedade...) é para conduzir ali, não para o substituir e muito menos para o eliminar (como a prática vulgarizada parece querer induzir e induz em concreto na generalidade das massas de fregueses-de-supermercado das religiões).

                   Nada distingue os livros da Tora, da Bíblia, do Alcorão, relativamente a qualquer outra obra escrita?

                   Distingue-os o tema e a pertinência, relativamente aos crentes que os adoptam como referenciais da respectiva fé.

                   Se há uma infinidade de textos de análise e comentário de crenças através dos milénios, muitos mais há voltados para outros domínios, da ficção à ciência, do teatro à filosofia e por aí adiante. Claro que estes nada têm a ver com aqueles. Mas porque é que os referentes a crenças e fés não ocupam o mesmo patamar que os colocados aparte como sagrados?

                   Por duas ordens de razões: não têm intuito fundador e não são reconhecidos como tal.

                   O intuito fundador é óbvio no Alcorão: foi escrito para substituir pelo islamismo o politeísmo multiforme, reinante na península arábica até ao séc. VI d. C. A mesma finalidade é verificável no capítulo I do Génesis bíblico, um dos textos mais recentes do Antigo Testamento (cerca de 500 a. C., após o regresso judaico do cativeiro de Babilónia, da autoria decerto dos sacerdotes do Templo restaurado). Tratava-se de consagrar a semana com o dia de repouso, num contexto de etapas da criação como a imaginavam há dois milénios e meio.

                   No geral, porém, da Tora e da Bíblia, o estatuto de texto fundador não provém dos autores (quantas vezes desconhecidos) mas das gerações posteriores que decidiram reconhecer-lhes tal função, decerto derivada da utilização que se fora entretanto implantando espontaneamente. Se calhar não para o Pentateuco, os primeiros cinco, reportados ao tempo de Moisés, 1.500 a. C., como recolha e fixação, predominantemente, das tradições orais e práticas empíricas então prevalecentes: podem ter sido redigidos exactamente com a finalidade de ser o registo escrito daqueles fundamentos já estabelecidos. Recordemos que escrever ainda era invento relativamente recente e nunca usado provavelmente por ninguém para tais fins (os primeiros passos de inscrições germinais, hesitantes e confusos, remontam a 5.000 a. C; com a lentidão daqueles tempos, é quase na véspera).

                   Pouco importa, porém que um autor ou um texto tenham o intuito fundador duma fé qualquer, se ao menos uma comunidade e respectivos mentores o não reconhecerem. Daqui provém o segundo critério do estatuto diferenciado que adquire. É assim para uma crença individual ou colectiva, exactamente como o é para um autor de referência que eu escolha ou uma obra que eu considere como o livro da minha vida. Não tem nada de transcendente, de sobrenatural ou de palavra de Deus. É o que alguém, uma comunidade, um povo escolham para exercer tal função. É tudo humano, mais nada. É o que as pessoas sentiram tocar-lhes, mexer-lhes com a sensibilidade, dar-lhes sentido à vida. O que os polariza para mais longe, em suma.

                   E assim é que é correcto: também os textos são meros mediadores para o encontro íntimo de mim com as funduras que me ultrapassam, do meu espírito com o Espírito universal que me (e nos) projecta ao Infinito. Os que melhor e mais gente medeiam e que abrem mais portais para a infinitude devem ser reconhecidos, apontados, disponibilizados a cada vez maior número de protagonistas. Tão simples como isto.

                   A disputa sobre que livros são revelados e que não são é insensata: nenhum o é e todos o são, dalgum modo, façam ou não parte dum cânone qualquer, sejam acerca da fé ou doutra coisa acaso. Em todos se materializou em palavras o sentido dum espírito humano, o do autor, que por sua vez não subsiste sem ser suportado e portador do Espírito do Universo que ele incarna, com maior ou menor fidelidade, no empurrão existencial que lhe dá, no aguilhão que o acicata. Ninguém se cria a si próprio, somos todos criaturas que manifestam, como todo o Universo, o rosto de Deus, com maior ou menor transparência.

                   Disputar acerca daquilo é cair no apodrecimento do burocratismo do sagrado, sem entender a raiz por trás de tudo, ignorância em que aqueles desvios são peritos. Que importa que o cânone bíblico seja o da Tora, da Bíblia católica ou um qualquer protestante? Que importam os diversos entendimentos e teologias? Tudo são meros mediadores, cada indivíduo deve utilizar os que mais o tornem eficaz na amorização de si, dos outros, do mundo. O resto não conta, só nos desvia e trai, só nos leva à condenação: ficamos pelo caminho, não cumprimos a missão para que viemos à terra. Em vez de criarmos pontes que nos liguem a todos e a tudo, cortamos relações com outrem, com o mundo e, em última instância, connosco próprios, uma vez que, no fundo de nós, queremos a união, a comunhão em paz e alegria com tudo e todos, universal, cósmica, eterna. Ou não nos satisfaremos em definitivo.

                   Como justificar que nos apunhalemos a nós próprios? Que espiritualidade é esta que recusa o espírito que em si próprio cada um constata, quando mergulha nas profundezas de seu imo?

                   Iremos continuar a discutir qual é o livro revelado? Continuaremos a não querer entender nada?

 

                   7 – O que mais me admira é o desvio do sentido e função do sagrado: é apenas aquilo que declarámos intocável e em relação ao qual tomámos disposições para garanti-lo.

                   Estava há meses em casa dum amigo com uma jovem mãe e o bebé dela. Rodeavam-nos assentos e prateleiras carregados de livros, revistas e montagens. A criança não parava de gatinhar rumo ao colorido daquilo tudo e a progenitora agarrava-a pelo tecido da cintura e puxava-a para trás até si, deslizando pelo tapete tufado, o que provocava no petiz gargalhadas esfusiantes.

                   Uma vulgar cena familiar bem-disposta. Com o conteúdo, porém, do que é o sagrado: o bebé não podia mexer no que nos rodeava, era para ele intocável, por decisão materna, a prevenir a destruição e desarrumação que provocaria, e, por conseguinte, com a medida eficaz para garanti-lo, levá-lo a deslizar para trás pelo tapete.

                   O sagrado, na origem, é apenas isto: a intocabilidade e o sancionamento à violação. Está ali todo, portanto, num mero episódio infantil cheio de alegria.

                   Em que é que nós o tornámos? Transcendente?! Sobrenatural?! Divino?! Celestial?!

                   O que Moisés fez há 3.500 anos atrás é muito simples: tratou do registo escrito das bases da fé e da organização do povo judaico e guardou-o numa arca, para preservá-lo, proibindo, sob pena de morte, que alguém lhe tocasse que não fosse autorizado. É isto que é o sagrado: a realidade mais secular deste mundo.

                   É tão terra a terra que não é metáfora nenhuma alegar  que é sagrado um cofre bancário, uma máquina de multibanco, a caixa registadora duma loja ou até a separação por géneros das instalações sanitárias públicas... Neste sentido dos radicais originários, nem há livro mais sagrado, nos conteúdos, que um código penal qualquer: é a lista dos comportamentos proibidos e respectivas punições.

                   Curiosamente, não há nada menos sagrado que a Bíblia e o Alcorão: são os textos mais divulgados e lidos do mundo, sem proibição nenhuma nem nenhum sancionamento. Estamos nos antípodas do que ocorreu nos tempos mosaicos. É a dessacralização mais completa: hoje em dia são militantemente divulgados, incitamos o mundo inteiro a lê-los e a servir-se deles para edificação própria e de toda a cultura mundial.

                   Seria uma mera curiosidade da evolução semântica, ao fim de três milénios e meio, isto de ir dum sentido ao antitético, não fora a perversão que tudo isto implica.

                   Compreende-se a sacralização no tempo de Moisés: a escrita era novidade revolucionária e muito vulnerável na vida de tribos nómadas, muito facilmente se poderia perder e aquela segurança de usos, costumes e tradições evolava-se. Garantir a perenidade do registo escrito era um grande salto qualitativo para um povo, em termos de estabilidade e de comunhão cultural comum às doze tribos. Israel não dispunha de templos e monumentos grandiosos de pedra, como os egípcios, onde os hieróglifos poderiam encher paredes e permanecer pelos milénios. Moisés tinha de proteger eficazmente a Arca da Aliança: tornou-a intocável e a violação punível com pena capital. E assim nasceu a Bíblia Sagrada.

                   Com a gradual divulgação e vulgarização da escrita até à generalização mundial contemporânea, foi igualmente deixando de ter sentido aquela precaução, bem pelo contrário. Não havendo mais risco de perda, há é risco de ignorância: daí agora a tentativa de pôr ao alcance de todos o que principiou por ser tão reservado que praticamente ninguém lhe tinha acesso: era o sumo-sacerdote e apenas em circunstâncias muito controladas.

                   Perdendo-se gradualmente a razão de ser da sacralização, da intocabilidade, manteve-se, entretanto, o monopólio do acesso ao sacerdote e, dum indivíduo, transita-se gradualmente para uma classe inteira. Eram os que tinham por função aceder ao que aos mais era interdito, por uma questão de segurança do Livro, sem qualquer conotação religiosa, à partida. Ninguém atribui sentido de fé nem mística de crença ao gerente bancário que tem na mão os códigos do cofre e os usa a contento. É apenas isto o sacerdote do Livro primitivo, mais nada. Era o garante de que não haveria perdas. Num, outrora, das tábuas, pergaminhos ou códices do Livro; noutro, hoje, do erário.

                   Da intocabilidade física da Bíblia deriva posteriormente a intocabilidade da mensagem: doravante a fé devém misteriosa e cada vez mais matéria de exclusiva responsabilidade do clero (se só ele tem acesso, é inevitável). E vai ao ponto de ser proibida a tradução em vernáculo da Vulgata latina de S. Jerónimo, para o vulgo lhe não poder aceder, dado que alegadamente a ignorância comum a corromperia. É um dos grandes motivos da Reforma (séc. XVI): que toda a gente aceda aos textos (Bíblia de Gutemberg). De facto, era para isto que eles tinham sido milenarmente preservados, para serem o perene fermento da cultura e fé partilhada dum povo e da humanidade. A monopolização é uma perversão: é um esbulho do património de todos, a pretexto do contrário. A vontade de poder corrompe inelutavelmente; ora, o saber é um poder tremendo, mormente se religioso, de que depende a salvação de cada um e de todos os povos. Fechá-lo a sete chaves para uso e benefício exclusivo dum clero rotineiro e podre, que tentação! E acabou predominando, em fins da Idade Média.

                   A perversão maior, porém, vem doutro pendor. Quando afirmamos na missa “santo, santo, santo é o Senhor”, estamos a referir a intocabilidade de Deus. É o que deriva de ser Infinito, absoluto, inesgotável e, portanto, irrepresentável, insusceptível de conceptualização adequada e assim por diante. É o Deus abscôndito para a eternidade, façamos as aproximações que fizermos. Deveria ser, portanto, o Deus definitivamente incompatível com qualquer pretensão de consumação materializada, nem sequer de esboço garantido (com que garantia?) de cristandade, de estado islâmico, de reino tibetano budista...

                   Como é que então deriva para coisas destas? Por um motivo óbvio: se Deus é inatingível em absoluto, restam-nos apenas as manifestações aproximativas, todas relativas, que dele tivermos. Erigimo-las em palavra divina, de preferência única e exclusiva, absolutizada, melhor ainda se monopolizada por uma classe clerical e pronto: temos o Papa a coroar reis e ungir imperadores, aiatolas a presidir a Estados islâmicos, um dalai lama a disputar um país a um Estado...

                   Mais uma vez, os vislumbres humanos, as realizações espirituais operadas, substituem, em concreto, Deus em si e alimentam novas cadeias de eventos sempre assentes neste equívoco de trocar e confundir o divino com o humano, o espiritual com o material que alguma vez animou e que doravante daquele se desliga, como se fora dele a incarnação final e acabada duma vez por todas. Assente num equívoco, só trouxe historicamente tragédias e continuará fatalmente a trazê-las, enquanto a confusão de partida não for eliminada e a transcendência do mundo divino definitivamente respeitada. Coerentes então nós com ninguém dela se assenhorear nem arrogar ser dono dela doravante.

                   Um outro efeito deletério, embora menos visível, decorre desta caminho desviado: pretende-se atar Deus de pés e mãos nas manifestações ditas reveladas escolhidas. Temos ali o produto acabado, doravante não há mais nada. Os textos tidos por revelados cindiram-se da fonte, de vez esgotada, e Deus entrou de férias, pelos vistos. Suspeito que é mais em greve: contra as crendices dos crentes...

                   É sempre a asneira recorrente de pretender aprisionar o céu na terra, de confundir o que lhe permite um vislumbre com a materialização histórica definitiva. É sempre tentar parar o tempo e a história, eliminando o horizonte de referência que por nós chama perene e infatigavelmente. Ali não há Infinito, não há Eternidade a sério, interminavelmente magnética, polarizadora.

                   Ora, tanto são reveladores os textos dos cânones como os dos indivíduos mais espirituais que pontuam a história, séculos além. Recusar que S. Agostinho, S. Tomás de Aquino, S. Francisco de Assis são inspirados é apenas fruto do sectarismo fisicalista de míopes. São milhares os que constantemente, em todas as tradições confessionais, se abrem ao Espírito e tentam incarná-lo o melhor que logram vislumbrar. E a todos ele impele, como também aos descrentes solidários com a humanização da humanidade. Em quenquer podemos ler a palavra de Deus que continua a caminho, a par e passo com a tropeada confusa da Humanidade.

                   Se Deus em todos realiza maravilhas, quem somos nós para nos opormos a Deus? – perguntaria S. Pedro. Mas quem lhe liga?

                   É por isto que nos afectam mais e melhor os autores e obras que hoje escrevem com intuitos de auto-ajuda. São o Espírito a caminhar no meio de nós. E sem requerer traduções de línguas mortas, investigações arqueológicas, pesquisas históricas, ponderações e discriminações teológico-filosóficas marcadas pelo tempo, eventualmente caducas. São Deus ao vivo, aqui-agora, à medida do que cada qual vai logrando, na respectiva caminhada tacteante (como são todas, mesmo as mais inspiradas).

                   É por isto que tanto os prefiro, tantas portas e janelas me escancaram permanentemente, tantas afinações me propiciam, pormenor a pormenor.

                   Como é que os coveiros do Espírito de todas as religiões se mantêm tão cegos e surdos? Os profissionais do altar substituem permanentemente Deus pela pedra de ara. Não admira que Jesus sacuda o pó dos caminhos e vá falar aos gentios. É o que mais verificamos entre os meditadores, por estranho que se antolhe aos fiéis tradicionais. É assim desde o princípio (vide Actos dos Apóstolos), infelizmente, e parece que nunca teremos emenda. Mal nos distraímos um pouco, os desvios repetem-se com novas roupagens e não logramos identificá-los.

                   Tomamos por fidelidade ao espírito o que não passa de trafulhice. Vá lá que no geral será bem-intencionada... Só que de boas intenções está o inferno cheio, lamenta o povo.

 

                   8 – Bem sei que já está tudo dito. Se acabaste farto, Luís, pára aqui, deita isto fora. Mas a mim, como mulher, apetece-me acrescentar um final que supere o somatório das partes. Julgo eu. Se for um chorrilho de asneiras, paciência...

                   É que recorda-me sempre o Urgel dos meus tempos de adolescente do colégio. Connosco, as raparigas, era duma polidez, dum requinte impecável. Quando confraternizava entre rapazes, não proferia uma frase sem um palavrão e, por norma, era um encadeado deles. Ouvíamo-lo à distância (julgaria ele que não?). Nunca compreendi tal duplicidade, ainda hoje. Marcar um grande machismo? Se calhar...

                   O que me importa é onde isto levou. Numa das aulas de inglês calhou-lhe a chamada oral. Ao ler, o texto incluía o verbo to put que ele pronunciou to pâte. O professor corrigiu-o e, vai daí, o Urgel releu a frase e emperrou no verbo, acabando a repetir atabalhoadamente to pâte. Ficou inteiramente desconfortável, vermelho, a trocar de pé, sem saber o que fazer. O docente interrompeu:

                    - Vá lá, é o verbo to put. Diga to put! É a pronúncia dele...

                   E o Urgel, cada vez mais atarantado:

                   - To... To... p... p... Ai, não consigo! – rematou, descontroladamente.

                   O mestre encolheu os ombros, sacudiu negativamente a cabeça, deu a entender que sabia muito bem o teor da linguagem desbragada dele e passou à frente. O put inglês evocava-lhe o palavrão português proibido, daí...

                   Nunca mais esqueci esta cena. É mesmo altamente reveladora. Quantos se andarão a atar por dentro, usando e abusando em privado da linguagem condenada, dos entendimentos proibidos, das teologias perseguidas e marginalizadas, e depois, em público, na instância oficial, é tudo to pâte? E após, na hora de perseguir, marginalizar, excomungar, sentem um complexo de culpa tão grande que vão ser os primeiros a atirar as pedras? Quantos?

                   É que não logro acreditar que não haja uma infinda multidão destes quando reparo nas incontáveis repetições de rotina ocas, lugares-comuns, banalidades vazias, na intérmina procissão de liturgias e práticas ditas piedosas de quaisquer religiões, mesmo nas mais folclóricas e animadas.

                   A autenticidade da vivência espiritual, auscultar e assumir os apelos subtis da vida interior, é alheia a todo o espectáculo, praticamente ninguém sequer suspeita que ser religioso, ter fé, consiste nisto e em ser-lhe cada dia mais fiel vida fora. E que tudo o mais são ajudas para encontrar este itinerário e cobri-lo cada vez mais longe, rumo ao Infinito, através da nossa realização em plenitude. É tão linear!

                   É impossível que a maioria, se calhar a generalidade, dos mentores espirituais não vislumbre sequer isto. Não acredito.

                   Sabem que não há textos sagrados, enquanto intocáveis: muito pelo contrário, pretendemos que os saibamos e cumpramos todos, tocados e bem tocados. Sagrado, enquanto inatingível, só Deus em si e não precisa que o defendam: quem nos dera que fosse atingível, para colmatar nosso apetite insaciável! Ele é que, por natureza, fica inelutavelmente fora de alcance. Mas todos podem e devem tentar tudo para se aproximar do inalcançável. Não faz sentido vir assassinar jornalistas em Paris para pretensamente vingar Maomé, como os terroristas do estado islâmico: é não entenderem nada da intangibilidade do mundo divino – não se vinga porque ninguém o logra tocar, em termos absolutos, façamos o que fizermos. Só a mais grosseira das ignorâncias do que é espiritualidade pode levar alguém a tais crimes. Não há nenhuma verdade revelada em termos absolutos, somos incapazes dela: há textos mais ou menos reveladores, conforme a inspiração do autor e a capacidade de ser fiel a ela. A Verdade, enquanto propriedade divina, é tão inacesssível e inesgotável como o próprio Deus que identifica. Finalmente, a revelação continua e continuará indefinidamente, desde os textos que fundaram fés até aos que continuam, eras fora, a encaminhar pegadas humanas rumo à plenitude de cada um e de todos, mesmo confessionalmente neutros, mesmo militantemente negadores da religião. O que conta é o caminho que leve a bom termo o fito da humanidade, qualquer que seja o domínio, qualquer que seja o grau de consciência e conhecimento atingido, qualquer que seja a vertente por onde se trepe: a questão é que trepe.

                   Quem nos pretenda enclausurar num livro, num credo, numa ordem histórica qualquer pretende e anda a substituir-se a Deus, trocando-o pelo ídolo da Tora, da Bíblia, do Alcorão e demais momentos de sabedoria humana, por mais elevada que seja. E nisto trai Deus, trai o Espírito, trai o Infinito. A seguir anda a matar os homens em vez de os salvar. É sempre assim, História além.

                   Se o problema é da verdade, quem é que tem medo da verdade?

 

                   Pronto, já desabafei! Muito obrigada por me aturarem. Não ficava de bem comigo sem esta nota final. Agora deitem-na fora, já acalmei e isto, porventura, não faz sentido para ninguém senão para mim e neste momento. Se calhar, daqui a uns tempos, irei julgar que tudo aquilo é um lixo pegado. Sei lá!

                   Todavia, continuo-vos muito grata. Isto anda a dar-me um gozo do Outro Mundo. Literalmente, não é?

                   O abraço da Sofia.

 

 

                   Chão de Vivos, 2 de Janeiro de 2019

 

                   Caro Luís:

                   És bem capaz de ter razão: o grande pecado mortal da instituição é o da preguiça. Recordo-me vagamente do episódio que contas. Apresentaste uma colectânea de textos de apoio para formação de professores, tendo em vista um novo modelo de avaliação docente que nunca chegou a vigorar. Lembro-me da perplexidade generalizada na reunião seguinte, na Direcção-Geral do Ensino Básico e Secundário, e do silêncio em redor da mesa do grupo de trabalho. Afirmas que a coordenadora comentou nestes termos:

                   - Li tudo com muito empenho. É mesmo interessante. Agora, surpreendeu-me a linha de rumo: isto foi intencionalmente uma ironia, não é? Não há soluções...

                   O que toda a gente queria, afinal, era um livro de receitas. O mais surpreendido foste tu: propunhas aquilo mesmo a sério, não era ironia nenhuma. Ingenuamente crias que todos adorariam ser criativos, inovadores, geradores de caminhos, nunca apenas alinhados na tropeada acéfala do rebanho. Para ti, isto era uma alegria. Para os mais, todavia, era uma carga de trabalhos. Ninguém tinha paciência para tal.

                   Não admira que a linha de rumo não vingasse, posta de lado por fim.

                   Há um motivo positivo por trás disto: a lei do menor esforço. Nem conseguiríamos viver sem ela. Já viste o que seria de repente desaparecerem hábitos e rotinas? Termos de redescobrir dia a dia cada atitude, cada escolha, cada solução em cada desempenho dos múltiplos papéis de que damos conta? Findaríamos esgotados na primeira hora e encalacrados num qualquer beco sem saída.

                   Na nossa sala de jantar a vida entra aos magotes e ai de nós se não dispomos de livros de cozinha para lhe aprontarmos os pratos que pedir: se os tivermos de inventar a cada pedido, acabará morta de fome ou envenenada pela nossa inépcia.

                   É assim que opera toda a gente (e ainda bem) em todo e qualquer papel secundário, costumeiro, que desempenha. Por este alinhamento com o receituário implantado e dominante é que cada um se identifica com a família, a comunidade, o país, a cultura, enfim, a humanidade e o mundo de sua era. Aqui implanta os alicerces de quem é e donde parte. Isto constitui a quase totalidade de seu quotidiano. Sem isto afogar-se-ia no turbilhão de cotio e nem saberia quem era e, conseguintemente, quem poderia vir a ser.

                   Aliás, este é o risco que corre a humanidade na concorrência do trabalho e no permanente estímulo para ter mais, na civilização presente. A correria nos empregos, os horários sobrecarregados e desmultiplicados, a ganância, a competição levam ao esgotamento ou, no mínimo, ao stresse permanente biliões de indivíduos pelo mundo além. Acabam sendo títeres comandados de fora, com os músculos do corpo e do íntimo esgarçados até ao limite, a romperem-se em milhões e milhões de vítimas. Este rasgar de hábitos e rotinas até à morbidez (e à morte, quantas vezes!) destrói o efeito benéfico de alicerçar a auto-identificação, oriunda da lei do menor esforço.

                   Isto obriga a alertar para a necessidade de ponderar o equilíbrio (“O Elogio da Preguiça” – Jacques Leclercq), sob pena de, mais uma vez, a corrupção do óptimo dar o péssimo.

                   Até aqui, tudo bem. O problema é o resto, aquele bocadinho de nós que não é robô, automatismo incônscio, onde nos protagonizamos. Aqui é que cada um é ele próprio, único e insubstituível, aqui é que é um eu que inaugura um mundo novo, por pequenino e irrelevante que seja, no cômputo universal. É que é por estas migalhas que caminha lentamente o Todo do Infinito.

 

                   1 – Isto lembra-me da Rosa que morava no lar da Nené. Andava uns dois anos atrás de nós, na Universidade. Um dia que passei por lá para tratar já nem sei de quê, no fim da conversa a monitora foi buscar uns apontamentos ao quarto e abriu a porta, revelando por acaso o recanto daquela colega: a cama impecavelmente feita, os livros arrumados, as bugigangas alinhadas, tudo uma perfeição. Apontou para lá e comentou:

                   - É assim todos os dias. Nada foge um milímetro. No roupeiro, com as roupas, é o mesmo. Com ela está tudo sempre no lugar. Aqui como na vida. Impressionante! – rematou, com uma risada.

                   Dei comigo a pensar como seria quando casasse com o oficial militar com que namorava. Não deveria haver qualquer tipo de choque, dado o conformismo integral e permanente dela, se ele tivesse espírito militarão. Ela cumpriria tudo às cegas, em perfeita boa fé. Também não haveria problema se ele o não tivesse e não olhasse para horizontes mais elevados. Mas e se sonhasse com outros mundos?

                   Aquela miúda vivia inteiramente alheada desta alternativa, inteiramente anulada em qualquer autenticidade pessoal íntima: era a submissão e obediência incarnada à ordem estabelecida, o automatismo mais robotizado e acrítico possível. Neste mundo predeterminado vivia completamente segura e nem vislumbrava outro: toda a energia era aplicada a cumprir e mais nada. Escrupulosamente.

                   Creio sinceramente que ela acreditava que isto é que era ser uma pessoa exemplar. Generalizando, para ela o ideal era que o mundo inteiro fosse aquilo: submisso e obediente, a marcar passo para a eternidade. Qualquer alteração, qualquer inovamento, qualquer ruptura seria sempre o mal e arrastaria o fim do mundo.

                   Verdade era que tinha sido catequizada, como todos nós, para os votos da pretensa “vida perfeita”, a dos contemplativos: pobreza, obediência e castidade. Sendo que a obediência era inculcada na interpretação do mais descarado e completo secularismo: era obedecer ao superior, a quem manda, no convento ou na vida civil, em casa ou na Universidade, em privado ou em público... A completa mistificação de trocar submeter-me a Deus por submeter-me ao poder estabelecido nem sequer nos ocorria, nem nos bancos infantis da catequese nem nos posteriores de adultos pela vida fora.

                   Aliás, naqueloutros tempos de ditadura, qualquer pretensão de impugnar tão abusivo entendimento era tão reprimida e perseguida que levava à marginalização profissional e pessoal, ao encarceramento, até à morte, como a muitos ocorreu. Seguro seguro era agir como a Rosa, assim ninguém se metia connosco. O ditador era porta-voz de Deus e ponto final. Com o Papa e toda a hierarquia por aí abaixo seria o mesmo, evidentemente, e por maioria de razão: eles é que são os ministros do divino e, por conseguinte (mais um abuso), ministros divinos. Eles é que têm Deus à mão de semear, nós não entendemos nada disso. Submissão e obediência cega, portanto, tanto ao trono como ao altar. Nas outras religiões, mutatis mutandis, é idêntico: ai do padre da IURD que dissida do bispo, vai logo para o olho da rua...

                   O mesmo entendimento de confundir para trocar Deus pelo homem continua a predominar hoje em dia (e sabemos lá até quando!) nas congregações religiosas (“Caminho” – José Maria Escrivá).

                   A ninguém ocorreria (e, se ocorria, amordaçava-o lá bem no íntimo) que era a frustração da pequena margem de autonomia e afirmação individual que, multiplicada por milhares, por milhões, transitando de pais a filhos durante gerações e gerações, a certo momento se torna insuportável e então explode e vai dar a rebelião que tudo derruba pelo caminho. Foi assim que chegámos à Revolução Francesa (e a tantas anteriores, basta lembrar a de Spartacus), foi assim que rebentou a revolução bolchevique e é assim que rebentará a próxima, se não ganharmos juízo, prevenindo-a com a mudança daquela atitude alienatória generalizada. É que a humanidade anda pejada, desgraçadamente, de Rosas, embora acaso menos evidentes. Milenarmente.

                   O temor do fim do mundo se algo mudar, afinal, é que traz mesmo o fim do mundo.

 

                   2 – Não chegaste a conhecer a colega Conceição, na Escola Secundária D. Dinis. Era tão empenhada, tão envolvida e, por conseguinte, tão sugada por todos que acabou num esgotamento geral. Entregar-se de coração, sem defesas nem ponderação de nossos limites, dá cabo do indivíduo. Pode gratificar enquanto dura, mas não chega: dei com ela exausta muitas vezes, nada feliz. Obedecer à nossa margem de autenticidade, empenhando a alma inteira, não basta, se for além do limiar que a gratificação individual tolera. Entrar em ruptura física ou moral já não é realização mas auto-destruição. Aqui “O Elogio da Preguiça” faz todo o sentido também, mesmo quando o itinerário foi escolhido e assumido livremente pelo íntimo da pessoa (e não exteriormente imposto), como era o caso dela. Aqui não foi a preguiça o inimigo mas o activismo até ao esgotamento. Atingiu-a, todavia, apenas a ela.

                   Agora olhemos ao que faz a preguicite. O movimento informal dos “coletes amarelos”, entre contradições, contesta em França o Presidente Macron porque, para determinado sector, ele quer fazer reformas que mexem com a ordem estabelecida. Logo as Rosas do centro europeu desataram a protestar: nada de endireitar as contas públicas, nada de investir na África subdesenvolvida, nada de mudar o respectivo teor de vida! Que nada mexa do que mexe com elas! É que mudar dá muito trabalho e assusta: que é que vem aí? Mudar só se for para lhes dar mais do mesmo: mais salário, menos horário de labor, mais férias, mais saúde pública... Só se for, portanto, mudar tudo para que tudo fique igual. É assim a preguiça das Rosas: manter tudo tal e qual e dar-lhe sempre mais e mais força.

                   Ora, foi exactamente assim que os patrícios romanos mantiveram os escravos submetidos até Spartacus, que os nobres e clero franceses defenderam os privilégios contra o povo até à Revolução Francesa, que o patronato campesino, industrial e comercial travou o proletariado até às revoluções comunistas... E é assim que se impede a imigração e o desenvolvimento de povos, países e continentes, até à seguinte rebelião planetária. O terrorismo do estado islâmico é apenas um ensaio geral, a treinar as tropas... As Rosas, porém, não querem que o mundo mude, que as rotinas mudem, que a respectiva vidinha mude...

                   O problema é que isto bole com todos, não apenas com elas. Até podem nem sentir-lhe o efeito desastroso, adiado eventualmente por algumas gerações. Mas irão provocar um cataclismo, mais tarde ou mais cedo, de proporções certamente planetárias.

                   Tudo porque é muito mais cómodo obedecer servilmente à ordem implantada. “Mudar, não!” - gritam. E serão sempre como o escravo que mata o senhor que lhe deu alforria, porque a não quer, não sabe lidar com ela e, se souber, rejeita a insegurança que também lhe traz, o trabalhão que é aprender a criar, a duvidar, a escolher – a talhar-se como ser humano cada vez mais integral.

                   Há muitas preguiças aqui envolvidas, não é verdade?

 

                   3 – O meu cunhado Justino que nunca em dias de vida ligou nada à religião, quando lhe morreu a mãe foi velar o corpo e rezava, rezava, rezava congestionado e em desespero, impressionando toda a gente que ia passando pelo velório. Mais tarde perguntei-lhe o que é que tinha ocorrido.

                   - Olha, eu não quero pensar nem saber de nada – retorquiu-me. – Não entendo de religião, pronto! Aí é melhor eu nem perguntar.

                   - Justamente. Porquê, então, aquele ataque de “misticismo acrisolado”, como riria um divertido colega meu? Não faz sentido...

                   - Ai faz, faz! Pela minha mãe eu faria tudo. Sei lá bem se a salva ou não salva, nunca entendi patavina em tal domínio, portanto nunca lhe liguei. Ora, se não é para entender, tudo bem, não entendo. Mas se vocês acreditam que pode salvar, pronto, eu faço aquilo, acabou. Não discuto, aceito o que quiserem. É assim...

                   Eis a preguiça dum perfeito conformismo. Então como qualificar aquele comportamento? É uma superstição completa: uns gestos, umas palavras, umas posturas corporais e está feito – se houver salvação, fica garantida. Nem se distingue dum bruxedo tradicional: uns ditos misteriosos, umas aspersões de água benta, uma velas - e temos o outro mundo de porta aberta, pronto a nos servir.

                   Porquê tal degenerescência? Fundamentalmente, por comodismo. Os oficiais do ofício mandam assim, a gente actua em conformidade. Ponto final. Nem sequer a dúvida: e se eles se enganarem? Ou a pior: e se eles nos quiserem enganar? Ou a pior ainda: e se forem uns aldrabões, a tratar de sua vidinha à custa de toda a gente? E se forem do tipo: olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço?...

                   Tudo isto iria requerer o abandono do recanto de conforto para desbastar a floresta sombria do que por ali ocorre. Ora, o recanto de conforto é muito atractivo e gratificante. Ainda por cima, deixa-nos seguros e em perene acalmia. Porquê meter-se em trabalhos? Fatiga, desvia-nos da rotina, instabiliza, angustia... Tudo negativo. Pior: distrai-nos de nosso centro de atenção, do núcleo de nossos envolvimentos existenciais, porventura de nossa vocação particular que pode não ter nada a ver com isto, o que é verdade para a maioria das gentes, porventura para a generalidade dum povo...

                   Ora, tudo isto é respeitável. Mais: é, no fundo, construtivo. É um bem, não um mal: é a economia de energias do automatismo dum hábito. É o que nos liberta para irmos mais longe, com nossos recursos limitados.

                   Não há, portanto, preguiça? Há e muita.

                   Este Natal dei com a minha filha a descer demasiado cuidadosamente a escada em caracol que aqui em casa leva à zona dos quartos. Perguntei-lhe porquê.

                   - É que fui acordada pela Joana: parecia vir aos saltos por ali abaixo, pom, pom, pom! Era a ver se ela reparava... Coisa chata! Uma pessoa a dormir e acorda em sobressalto com aquela barulheira.

                   Ora aí está: subir e descer escadas é um hábito tão automatizado desde a infância que ninguém pensa naquilo quando o pratica. Mas, quando resulta inadequado por qualquer motivo, como é? Tratamos logo de remodelá-lo e adaptá-lo à conjuntura, para ficar a contento. É com este automatismo e com todos os mais, em todos os domínios da vida. Então porque não no religioso? Aquela atitude do Justino não reajusta nada, cobre a escada da religião aos pulos desajeitados, como infantilmente aprendeu, e nada de lhe tocar, de lhe apreender qualquer sentido, de lhe emprestar qualquer vitalidade a partir de qualquer vivência íntima. Nada.

                   Imaginas o que o arredou de tudo neste domínio? Porque é que não quer perguntar e afirma que nada entende por estes terrenos? Quando andava no colégio atiraram-lhe com os tradicionais paradoxos lógicos: se Deus criou tudo, então quem é que criou Deus? E o outro, mais divertido: se Deus é omnipotente, então pode criar uma pedra tão grande que não possa com ela; ora, se a não puder criar, então não é omnipotente; se puder, como não pode com ela, também não é omnipotente. Claro que é uma versão multissecular, adequada a este âmbito, das aporias do grego clássico Zenão de Eleia, para quem nenhuma flecha atinge um alvo, porque tem primeiro de percorrer metade do caminho e depois metade do que falta e assim até ao infinito. Por mais que se aproxime, nunca pode lá chegar, muito menos ultrapassar o objectivo.

                   O bom senso dos antigos entendeu aquilo como a prova de que não podemos confiar na lógica pura: a razão tem de submeter-se aos factos, não os factos à razão. Esta é meramente instrumental, aqueles é que são a realidade. E o real já nos dá cabo do juízo suficientemente para perdermos tempo com o juízo a dar cabo dele próprio.

                   Não assim, todavia, com os Justinos deste mundo: encontrei muitos no Liceu Alexandre Herculano, na Universidade de Coimbra e pela vida fora. Para todos estes, o que a lógica não contempla, não existe; e, ao invés, o que, por exemplo, a matemática demonstrar, é real no mundo sensível, por mais que ninguém o encontre. É uma estupidez mas é a verdade. Este disparate mesmo no campo da astronomia se nos depara e são cientistas de ponta... Pois se até têm um mapa da energia negra que não existe!

                   Ora, está tudo disponível, no campo da fé (seja ela qual for), para ninguém ter de se alhear de si próprio nem da vida que protagoniza e, todavia, lograr reajustar hábitos, rotinas, tradicionalismos, de modo a revitalizá-los de sentido e a abrir caminhos de espiritualização, a amorizar qualquer domínio existencial que acorde assarapantado com os ribombos dos tacões, nalguma escadaria distraída, alienada, nalgum campo da experiência.

                   De facto, é para isto que existem teólogos, místicos, mentores de auto-ajuda, filósofos... De facto, é para isto que existem ritos, liturgias, sacramentos, retiros, encontros... De facto, é para isto que existem organismos, movimentos, iniciativas, congregações, anos litúrgicos, festividades (estamos em pleno Natal...)... De facto, é para isto que existem directores espirituais, confessores, cursos, fraternidades... Até folhinhas e pagelas semanais de tantas comunidades crentes...

                    Como é que não funcionam? Para a maioria funcionam à Justino, claro: automatismos vazios, uma vez que não requerem mais da pretensa fé que deveras não existe. Vão à bruxa quando vão à missa. E a confissão? “Confesso ao padre que exclamo: “ corisco!” – ele absolve-me e fico logo uma anja...” – ironizava uma amiga minha açoriana (pelos vistos lá tal exclamação é muito condenada). Evidentemente que há também os que por ali se vão encontrando, crescendo, reencontrando... No fim de contas, qual foi o nosso caminho, senão este? Claro! Ora, se foi para nós, pode ser para quenquer.

                   A tristeza é que a generalidade dos ditos crentes não faz caminho nenhum. Dá muito trabalho, o melhor é cumprir a lei, mimar o rito, papaguear o texto e tudo está consumado. Reconverter a vida, fermentar o mundo novo, que é isso? Será para alguns maduros que não têm mais que fazer. Ainda por cima, o nosso mundinho é tão bom, para quê criar outro? Estes desmancha-prazeres que têm a mania de se infiltrar na Igreja! Deixá-los falar, para palavras loucas, orelhas moucas. Quem diz igreja, diz mesquita ou sinagoga ou qualquer outro templo, não é?...

                   Como é que uma montanha de tantas vertentes, todavia, pare um ratinho tão pequeno? Será tudo apenas devido a este conformismo preguiçoso que não está para mexer uma palha, mesmo quando a vida lhe morde os calcanhares adormecidos, indiferentes?

                   Não esperaria, evidentemente, que aos milhões ou biliões todos desatassem a fazer cursos como eu, a investigar, a emparelhar com quem tem um pendor espiritual, a reajustar interminavelmente a vida de cotio a todos os níveis, do lar familiar ao lar pátrio, ao europeu, mundial, cósmico... Isto é a minha vocação privada, cada um tem uma própria e mal de nós se todos fôramos iguais. Que grande seca seria! Todas as vidas, porém, têm uma vertente interior: onde é que ela pára, na generalidade dos casos? Completamente ignorada, flutua ao acaso, cana ao vento fortuito das circunstâncias. Ninguém lhe toma em si a rédea, ninguém em si a conduz nem orienta. Ora, isto é que identificaria cada indivíduo, isto é que é o eu dele. A que é que se reduz? Um mero desperdício? Um dejecto jogado ao lixo? Tanto cada um se despreza que acata isto tão pacificamente assim, sem um sobressalto de revolta?

                   Tem de ser mais do que a preguiça do conformismo. Isto é um suicídio maciço da humanidade. A deixar-se transformar num espectáculo planetário de bonecreiros, títeres mexidos por fios que, no geral, já ninguém sequer comanda, já operam automáticos e anónimos, por inércia, conduza tudo ao que conduzir.

                   Tem de haver por trás algo de bem mais grave. Há outras preguiças muito mais mortíferas.

                  

                   4 – Quando eu era miúda, nas noites de Lua Cheia de Verão, íamos muitas vezes para o patim de granito da nossa casa de aldeia, enquanto o interior ia refrescando. Não havia luz pública que tolhesse o esplendor sidéreo e parávamos ali encantados com as miríades de estrelas e o fulgor do luar, maravilhando-nos com a Via Láctea, a vibrar de nitidez no infinito espaço cósmico.

                   Num destes serões, o meu irmão mais velho, exaltado com o borbulhar cintilante e com o brilho da enorme Lua que trepava do horizonte, comentou divertido:

                   - Eh, pá! Apetecia-me ter uma fisga. Apontava acolá ao alvo e estilhaçava a Lua em pedaços. Está mesmo ali! Que prato enorme!...

                   E logo a nossa mãe, aflita, retorquiu:

                   - Ó rapaz, cala-te lá com isso, que Deus inda te vai castigar! São coisas que não se dizem.

                   Nunca mais me esqueceu: o sagrado, o intocável, estende-se a objectos e zonas os mais inesperados, na mentalidade popular generalizada. Toda a vida anda enxameada de tabus, há proibições por todo o lado, Deus anda por aí de sentinela, pronto a correr à chapada todo e qualquer transgressor. Quem é que meteu tal coisa na cabeça das gentes?

                   É uma constante na história humana. Todos os estudos e reportagens dos primitivos actuais o anotam: há sempre áreas proibidas, atitudes proibidas, palavras e gestos proibidos... Os feiticeiros e xamãs definem-nas e punem quem pise a linha. Curiosamente, a pretexto de que, caso algo fique impune, toda a tribo corre um risco que pode ir até à extinção, mal o sacralizado se extinga de vez  algum dia.

                   Este é o motivo poderoso que há milénios alimenta este vector das culturas humanas. Quando o analisamos, porém, em cada uma, aquilo é sempre uma superstição, nenhuma salvação nem perenidade tribal depende de respeitar tal coisa. E o mesmo ocorre connosco, no mundo dito civilizado, industrializado, desenvolvido, rico. Como explicar tal fenómeno? É que, nalgum momento da história, tal lugar, tal atitude, tal entendimento coincidiu ou conduziu a um efeito desastroso. Ignorando o misterioso porquê e tendo outras escolhas de resultado benéfico, os caminhos individuais e colectivos reajustam-se: o que converge com o mal é banido e cria-se ali uma área sagrada, intangível, um tabu; o rumo alternativo torna-se uma inspiração divina, mesmo que não tenha nada a ver para o caso (ocorreu uma vez, sabe-se lá porquê). O produto final é um rosário de superstições, quantas vezes tornadas bruxarias e rituais de encantamentos (“Análise do Comportamento” – Skinner).

                   As liturgias religiosas, qualquer que seja a confissão, andam pejadas disto, nas vivências generalizadas e banais dos respectivos crentes.

                   Temos de confirmar que é, na raiz, um recurso benéfico ao tolher o que se antolha desastroso ou perverso (tomar um vulcão por tabu sacralizado, proibido, faz sentido depois dos mortos por asfixia ou queimados pela lava, por exemplo) e ao sublinhar as alternativas benévolas como dádiva dum deus protector (a fertilidade das cinzas vulcânicas para a proliferação vegetal e depois animal, a alimentar a tribo).

                   Então onde é que tudo isto se estraga? De facto, é num encadeamento de preguiças imperdoáveis e que pontuam a história inteira da humanidade.

                   Pitágoras (séc. VI a. C.) era sacerdote duma religião de mistérios na Grécia clássica, para a qual os números eram de natureza divina. Nem por isto, porém, ele os sacralizou, tornando-os intocáveis: ao contrário, tentou decifrar-lhes o mistério e acabou por descobrir o teorema que, de há mais de dois milénios e meio, chegou até nós com o nome dele. Este não preguiçou sobre os loiros divinizados. Em contrapartida, Plínio, o Velho (séc. I d. C.), autor da primeira enciclopédia de todo o saber da época (“Historia Naturalis”), falecido na erupção do Vesúvio no ano de 79 d. C. quando a ele trepou, tentando decifrá-lo, não teve nenhum sacerdote a apoiar-lhe o atrevimento que lhe custou a vida. Bem pelo contrário, isto reforçou a crença popular no tabu de que os deuses proibiam qualquer pretensão de invadir-lhes a morada e puniam com a morte quem transgredia. Plínio fora, portanto, um réprobo cujo imperdoável orgulho foi castigado pelo deus do vulcão. Esta é a crença popular dominante que chegou até à minha mãe, dois milénios depois, partilhada pela generalidade das massas populares, pelo mundo inteiro, mesmo hoje em dia.

                   Porque é que se generaliza esta atitude-leitura e não a de Pitágoras que corroboraria a interpretação inversa? Pelo comodismo universal dos sacerdotes que vem desde os feiticeiros da antiguidade até aos nossos dias, cruzando todas as religiões.

                   De facto, não sendo qualquer um dotado do génio de Pitágoras, do génio de Moisés, de Buda, de Jesus Cristo, de Maomé... – o mais simples e produtivo, em termos de eficácia salvadora das comunidades humanas, é cada qual reduzir-se à respectiva insignificância, assentar no culto dos maiores, aqueles (e outros) pioneiros, repousar e fazer repousar aí a comunidade inteira. É deveras o mais seguro, não há dúvida. Mas também o mais preguiçoso e o mais traiçoeiro: é deitar-se na cama que outros fizeram, pagando os riscos e custos de tal (Plínio foi com a vida, Jesus foi com a vida...), colher os loiros que eles ganharam sem pagar nada por isso e gozar os rendimentos à sombra da bananeira que nunca cultivaram.

                   Isto é a preguiça generalizada; porém, não ainda a traição. Trilho do menor esforço, é mesmo construtivo, à falta de qualquer alternativa melhor: inspirar-se nos mais iluminados espíritos da humanidade é o mais alto ponto de partida disponível para qualquer um e todos, do Papa-bispos-sacerdotes-monges até ao derradeiro leigo, do guru ao pária mais ignorado.

                   Onde fica a traição? Neste subtil desvio que parece praticamente irrelevante e é, no fim, todo o mundo da diferença: a traição é segui-los, em vez de inspirar-se neles. É tomá-los como ponto de chegada e não como ponto de partida. É tomá-los como receita eterna, não como soluções transitórias no transcurso das jornadas deles (e não das nossas). É copiar o produto, não o produtor, no dinamismo inspirador que o conduziu até àquela meta (e que aqui e agora o levaria sabe Deus onde...).

                   Isto, porém, é apenas o princípio da traição. Pior, a seguir, é que os consideram, primeiro, porta-vozes de Deus e, logo depois, Deus a falar por eles, a palavra divina (anulando, no extremo, a humanidade dos autores). Não é só nos textos fundadores, Tora, Bíblia, Alcorão, o que já seria traição demais (tomam tudo à letra: “escritas pelo dedo de Deus” – Êx. 31, 18). É que dali prolifera, na mentalidade geral, para tudo quanto é fruto de espíritos sublimes, mesmo sem apoio oficial explícito: o apoio tácito vale o mesmo e até permite mais defesas (pode-se sempre desmenti-lo sem comprometer ninguém nem a instituição, sendo que na prática continua tudo tal e qual).

                   Não pára por aqui a traição, todavia. Uma vez divinizado o receituário, torna-se sagrado: doravante é intocável, mais reservado que a Arca da Aliança mosaica, apenas acessível a alguns privilegiados que, obviamente, são sempre os sacerdotes do templo, em todas as eras.

                   A partir daqui é a orgia do poder sem mais limites: eles detêm o receituário divino na manga monopolista, dispõem dum deusinho a torto e a direito, a seu bel-prazer, metem no céu e no inferno quem muito bem entenderem, sem prestar contas de nada a ninguém. A Tora e a Bíblia ilustram-no nos livros históricos em todos os séculos, nos Patriarcas, nos Juízes, nos Reis... E sempre os Profetas que o denunciam são ostracizados e mortos, para serem reabilitados depois, quando já forem anacrónicos e não puderem incomodar a nova ordem entretanto implantada e que, em nome deles, mata os que actualmente lhe denunciam as traições presentes. Foi nesta roda letal que Jesus Cristo foi apanhado e morto, como os anteriores. Pouco importa ter ressuscitado, a roda continua sem lhe ligar coisa nenhuma, sempre sendo-lhe fiel... claro!

                   Nunca a instituição religiosa se reconverteu, reforma-se, eventualmente, para continuar indefinidamente a cometer as mesmas traições. Foi nos tempos bíblicos e eterniza-se história além. O nosso tempo não é diferente e o porvir decerto também não será.

                   Foi assim que se generalizou a classe privilegiada do clero, única com acesso à Vulgata latina de S. Jerónimo (séc. V d. C.). O acesso dos parcos leigos latinistas era condicionado ou mesmo proibido. Tradução da Bíblia em língua comum, nem pensar! Contra isto se rebelaram os protestantes, traduzindo-a, para o alcance de todos. Na mesma linha, a eucaristia em latim, um ritual mágico para as multidões, prolongado por dois milénios. E a pretensão de dominar o mundo, com o Papa a entronizar imperadores e reis, a coroar-se como deus na terra. Valha-nos Deus!

                   E que melhor modelo para isto que o do imperador romano e duma igreja-império, toda hierarquizada, um poder sagrado da base ao topo? Toca a embarcar por aí! Quanto mais o poder for sacralizado, menos contestado: é tão intangível como o Deus a que se reporta e com que pecaminosamente se encoberta (pretende sempre tê-lo domesticado a seu serviço).

                   Ao fim de dois milénios de traição institucionalizada, temos a hipóstase final consumada no dito daquela crente latino-americana que foi deslumbrar-se à passagem do actual sumo-pontífice, Francisco:

                   - O Papa é Jesus Cristo na terra!

                   Nem sequer relativizou com “este Papa”, não, é o Papa, é a instituição, seja qual for o ministro. É o que está nas massas, nos biliões de fiéis. Todos, portanto, mistificados, por mais que qualquer pontífice (e este em particular) pretenda o contrário, (como pretende). A ambiguidade da instituição é insuperavelmente diabólica. É-o na Igreja Católica, nas Evangélicas todas, como noutras quaisquer alternativas cristãs, judaicas, muçulmanas, hindus, budistas e assim por diante: institucionalizar é, simultaneamente, robustecer e trair. É traduzir em termos históricos o que não é jamais atingível nem esgotável em dimensão temporal nenhuma: o Infinito, o Eterno, numa palavra, Deus, seja qual for a epifania. Perder isto de vista envenena irremediavelmente tudo.

                   É confundir o tempo com a eternidade, o relativo com o absoluto, o finito com o infinito, o humano com o divino. Ora, toda a institucionalização tende a promover esta confusão e tanto mais quanto mais forte, mais poderosa for e se tornar. Por mais que se vigie e reconverta, cairá sempre uma e outra vez neste pego. E sempre as multidões tombarão nesta alucinação

                   E, claro, sempre isto é muito tentador para quem manda: quem não gosta intimamente de ser tratado como Deus, como Jesus Cristo? Que euforia!

 

                   5 – O ano passado fui a um concerto de música gregoriana numa igreja daqui. Foi precedido por uma ceia comunitária num refeitório anexo. Durante o convívio prandial, um dos bispos auxiliares foi passeando e cumprimentando as pessoas, seguido permanentemente, de mesa em mesa, por um cortejo de meia dúzia de corifeus. Todos iam de peito inchado, de olhares brilhantes, colhendo as migalhas do beija-mão como se a eles fora dado, parando quando o bispo parava, prosseguindo quando ele prosseguia, sorrindo quando sorria, ficando sérios quando ele ficava... E o bispo lá continuava, muito solene, muito deleitado com este culto processional, todo irradiante de felicidade.

                   Senti-me muito deprimida com o espectáculo. Nem sequer houve nenhuma criança que gritasse: “o rei vai nu!” E eu, infelizmente, já não sou nenhuma criança. Claro que há muito quem sinta como eu, mas vai engolindo para dentro, até em Roma (“ O Vaticano Contra Cristo” – I Millenari).

                   O mais grave neste extremo é que a preguiça é altamente premiada. O culto da personalidade é gritante e abunda a tal ponto que chega a sobrar para os apaniguados mais próximos. “Eu cá sou do círculo do bispo!” – gritavam todas as atitudes dos membros do teofânico cortejo, até sorriam como beatíficos serafins. E é assim tal e qual, no mundo inteiro e em todas as religiões. Não vale a pena iludirmo-nos com pedradas ao telhado do vizinho, todos os temos de vidro.

                   Que bispo se vai atrever a descer do altar em que o colocam e a eliminar a cadeia das traições próprias, reinstaurando a vivência espiritual, submetendo tudo ao crivo da instância íntima, ao juízo da consciência de cada um? Tem quase de ser um super-homem!

                   É muito mais cómodo deixar correr: ainda por cima é tudo assim (onde param as excepções?). É altamente compensador não fazer nada para alterar o rumo às coisas. É o reino do mundanismo mais grotesco, travestido de grandeza senhorial muito polida, muito elegante. Até os gestos acolá soavam a encenados, como num teatro de má qualidade, tudo artificialismo. E a plebe toda encantada! É o que é mais deprimente: o rei divino dignou-se descer ao povoado, misturar-se com o zé-ninguém, e o zé-ninguém ajoelha e beija o chão que os pés excelsos tocaram... Que coisa mais caricata! Que grande aldrabice!

                   Onde estão os servos dos servos de Deus? São todos senhores... E os servos de Deus não o são coisa nenhuma, imemorialmente se escravizaram a receituários e ementas alheias, fornecidas do altar abaixo como panaceias de cura universal. Em todo o lado. Que admira que os terroristas do estado islâmico vendam mulheres em mercados de escravos, em nome de Alá e de Maomé, o seu profeta? Era assim que ocorria na Arábia (séc. VI d. C.), no tempo da fundação... Não têm de se perguntar intimamente se tal faz algum sentido, se isto é construir comunhão humana, como questionou uma das vítimas ao respectivo carcereiro, no mercado de Mossul (Iraque) antes da libertação:

                   - Julgas que Alá aprova isto? Que Maomé, se estivesse aqui, mandaria cometer tal barbaridade? Alá é misericordioso, nunca pode acolher tanta desgraça infligida a tanta gente. Vocês estão todos errados. Isto não é ser muçulmano.

                   Esta, sim, foi mártir, mas eles é que se têm por mártires, quando abatidos. Que é que nos diz o coração? Ninguém por lá (nem por cá) pergunta, nos demais mercados de escravos que camuflados, mascarados, ocorrem, afinal, por todo o mundo, traindo a humanidade dos humanos de tanta forma disfarçada? Ninguém se pergunta deveras?

                   A verdade, todavia, é que todos mais ou menos dizem o que deveria ser feito, da boca para fora. Depois, porém, actuam daquele modo. Como é que isto é possível? As palavras tornaram-se ocas, de tão usadas, perderam todo o sentido? Há uma duplicidade generalizada, a atravessar todas as religiões? Que é que leva a tal estado de coisas, no mundo inteiro?

 

                   6 – Mais uma vez, é um desvio quase indiscernível que redunda nisto. Dei-me conta pela primeira vez do problema quando monitorei um curso de formação de professores na Universidade Autónoma de Lisboa. A turma era constituída por um grupo jovem de licenciados, todos vintaneiros, alguns sem terem logrado ainda colocação docente. Todos, porém, eram candidatos a ela ou já exerciam.

                   Logo desde o primeiro dia as atitudes se subdividiram em dois pendores: os primeiros interagiam comigo, perguntavam, partilhavam experiências vividas, contavam eventos; os outros ouviam siderados, ficavam desconfortáveis se questionados, muito nervosos, e arregalavam os olhos a cada novo aspecto abordado e desvelado. E foi assim até ao termo.

                   Nos trabalhos finais, os da primeira atitude conferiram o que havíamos abordado com ocorrências vividas, com soluções encontradas, com questionamentos em aberto. Os outros reproduziram, o mais textualmente que lhes foi viável, o que foram ouvindo, curiosamente mesmo quando as frases já nem faziam sentido nenhum por terem, algures a meio, perdido o fio à meada.

                   Quando falei com estes, ouviam-me numa atitude de veneração, deslumbrados, e bebiam cada palavra como se eu fora um oráculo doutro mundo. Senti-me, pela primeira vez, como a Pitonisa de Delfos, sem os eflúvios vulcânicos que a punham em delírio, a falar para os crentes que lá iam colher, com infinito cuidado, a mensagem dos deuses, para adivinharem o futuro. Mesmo quando o texto já não era nada, de tão truncado, continuava para eles intocável, tornado numa teofania, era a voz dum deus. Isto pôs-me mesmo desconfortável.

                   Ora, é aqui que bate o ponto. Não, não me pus a desfilar num cortejo processional, feita uma deusa de pés de barro. Isso é para os bonzos de todas as religiões de que o mundo há séculos anda já saturado, não é verdade?

                   Apercebi-me foi do desvio que faz a diferença: a primeira atitude é construtiva; a segunda, alienatória. E consiste apenas nisto: os primeiros recolhiam todos os dados, exemplos, modelos, entendimentos, alternativas e por aí fora, para os conferirem consigo próprios, com o que ocorria na vida deles ou em redor, com os casos com que se confrontavam - tudo em busca, com esta ajuda, de poderem ir mais longe, serem mais eficazes, sentirem-se mais realizados; os outros acolhiam tudo à margem deles próprios, ao lado da vida real que protagonizavam, como algo intocável, sagrado, que deveria ser respeitado e obedecido cegamente, tornado um dogma intangível proveniente doutro mundo, mundo que ignoravam, a que não tinham acesso, mas que veneravam nesta revelação deslumbrante, arrebatadora.

                   Aqueles, por aquela via, irão vida fora realizar-se com cada vez maior plenitude como educadores. Estes, nestoutro trilho, irão frustrar-se cada vez mais como educadores, a reproduzirem à letra, mecanicamente, receitas e soluções automáticas, tidas de facto por mágicas, mesmo inconscientemente, permanentemente alheios aos afectos e laços de cada grupo-turma entre si, com o formador, a família e a comunidade. Aqueles criam, estes estagnam. Daqueles provém a festa da vida, destes, o vale de lágrimas.

                   Ocorre o mesmo com os recursos da fé, qualquer que ela seja. Se são tão do outro mundo que eu até tenho medo de lhes tocar, não vá conspurcá-los, então ficarão à margem da vida real, postos num altar qualquer, e eu passarei a vida às vénias a eles e a incensá-los, sem terem mais impacto nenhum na realidade vivida. Ficam mesmo noutro mundo e este, o nosso, cada vez terá menos a ver com ele: duas paralelas que apenas se encontrarão no infinito. É o espectáculo dominante do mundo actual, em todas as religiões.

                   Os mentores espirituais enfrentam um dilema: ou sublinham a sublimidade dos místicos, teólogos, santos e autores sagrados e correm o risco de exacerbar mais e mais o pendor alienatório dos fiéis; ou não o fazem e correm o risco de tais espólios serem encarados como banais e, então, postos de lado com irresponsável ligeireza. Isto, em lugar de serem tomados como recurso de peso, eventualmente decisivo para fermentar mundos novos e um homem novo.

                   Em qualquer das hipóteses, porém, têm de ser postos ao alcance dos fiéis praticantes e de toda a humanidade que o pretenda. Depende de quem os acolhe a atitude que toma perante eles: ou os peneira em seu íntimo ou os venera fora de si, feitos ídolos de adoração. Ora, todas as religiões acabam, em geral, enclausurando toda a gente nesta derradeira atitude. É o resultado da cadeia de traições ao vislumbre das revelações espirituais, multiplicado pela preguiça de as peneirar e fazer peneirar pela vida e desmultiplicado pelo prémio gozoso do endeusamento comunitário de quem tal deturpação pratica.

                   Há, porém, ainda outro factor: é que, confrontados com as iluminações dos grandes espíritos da humanidade, todos nós tendemos a sentir-nos tão pequenos, tão irrelevantes, umas nulidades tão grandes que, colocados na função de ministrar tanta luz aos outros e às comunidades, quase insensivelmente nos colocamos na postura de os reproduzir acriticamente, fielmente os admirando, numa veneração na prática divinizadora e sacralizante. Quem sou eu para me atrever a ponderar, conferir ou, pior ainda, rever, mais, discordar de tais sublimidades? Quando é o próprio mentor espiritual (o clero, o sacerdote, o imã, o rabi, o guru...) – quem veicula esta atitude, então ela é mesmo normativa, o farol que todos seguem, sem, eventualmente, até ninguém reparar no desvio. Nem a boa fé, nem a boa vontade nem a inconsciência espontânea o evitam, todavia, nem desculpam.

                   Ocorre então a gradual cristalização deste comportamento, sem alguém, se calhar, dar conta disso. Lembras-te de nos contarem do exame do colega de Direito, em Coimbra, que na oral teve uma branca momentânea e comentou:

                   - Estou mesmo a ver a resposta, na página do lado direito, ao fundo...

                   E o catedrático:

                   - Então leia, senhor, leia!

                   O lente decerto não deu conta de que pretendia, no fundo, com tal brincadeira, de facto, a reprodução integral. E apenas isso o satisfaria: nem comentários, nem sinónimos, nem por outros termos... A mera lição tornava-se então ali o dogma do magister dixit. Devinha verdade absoluta e, como tal, intocável, sagrada. Só não é divina por estarmos no reino secular, senão...

                   São atitudes aparentemente inócuas deste teor que, sistematicamente acumuladas, redundam ao fim em desvios de magnitude incomensurável, eventualmente universais.

                   Pode parecer exagerado mas não é. Quando preparava a minha tese final sobre Nietzsche, anotei algumas discordâncias que tinha relativamente a certos pormenores propostos pelo filósofo. Imediatamente me caiu em cima o catedrático orientador:

                   - Nunca se pode fazer isto. Nunca se declara que um autor destes está errado. Isto é dum pretensiosismo, dum orgulho enorme! Não. Tem de ter uma postura humilde e de respeito para com um filósofo desta nomeada. Ninguém lhe acataria tal atitude num júri, quando a fosse defender.

                   Aqui está: eu tenho de me demitir de mim própria perante a grandeza do autor consagrado, embora inteiramente secular. Que fará se ele for bíblico, da Tora, do Alcorão ou reconhecido por qualquer destas ou doutras tradições! É pouco menos que uma blasfémia, um sacrilégio. É um muro intransponível.

                   Tolhida dela própria, a pessoa nunca mais pode ser igual a si mesma, corre a vida inteira sem viver a própria existência para viver a doutrem, a mando doutrem, com os pés num lado e o coração noutro. Inelutavelmente a se trair tanto mais quanto mais pretensamente se realiza. Por mais que lhe batam palmas...

                   Tudo isto piora, obviamente, quando tal itinerário destrutivo tem uma chancela espiritual, uma garantia pretensamente divina. Se Deus o quer e manda, quem sou eu para o recusar? Pior: se os que mo impõem, o impõem primeiro a eles próprios e actuam de boa fé, plenamente convictos de que é o rumo da nossa plenitude a caminho do Infinito, onde arranjo coragem para denunciar qualquer desvio, mesmo tão colossal que até Deus tenha de colocar o Espírito a falar e agir lá fora, sacudindo o pó das sandálias, ao abandonar estes incréus pretensamente fiéis, como às comunidades judaicas do tempo dele e da geração apostólica? Quem tem coragem para tal? Quem não hesita? Quem não julga que deve estar errado, de certeza, perante a multidão incitada por Anás e Caifás a gritar: “crucifica-o, crucifica-o!”?

                   Imagino a angústia do Papa Francisco a querer renovar a Igreja Católica e a dar pela frente, todos os dias, com a imensa multidão dos actuais judaizantes, sempre prontos a destituí-lo, em nome dos cadáveres de antanho que passam o tempo a incensar. Vivem das vénias e ele repudia as vénias?! “Que é isto?!” – gritarão, rasgando as vestes.

                   Por mim falo: sei lá bem se o que se me antolha tão evidente faz mesmo algum sentido! Já mudei tantas vezes de posição, já revi tantos entendimentos ao correr da vida, já reajustei tanto comportamento, tanta atitude que o mais certo é que tudo isto mude num amanhã qualquer, como sempre tem ocorrido. E o que aí virá, não faço ideia nenhuma. Entretanto é aqui que estou, por aqui é que vou indo até eventualmente descobrir trilho melhor. Apenas espero não me deixar dogmatizar nem cristalizar numa postura qualquer, não parar de vez num apeadeiro, algures perdida pelo caminho.

                   Ah! E de certeza que me não irei submeter a nenhum luminar de outrora que interiormente não me convença, não me toque o coração. Nisto aprendi com o Papa Francisco: teimosa, a reivindicar o direito de ser eu própria até ao fim, sempre em crescimento até onde a vida mo permitir. Para trás é que nunca! Trair-me, nunca! Quero tentar discernir Deus nas profundezas inefáveis de meu íntimo, com a ajuda de todos, evidentemente, sem nunca deixar-me encegueirar por nenhum mediador, por maior e mais inspirado que tenha sido. Quero a voz de Deus, não os sucedâneos, quero o original, não as cópias. Por mais felizes e fiéis que sejam.

 

                   7- Claro que isto é um mero voto: fácil de fazer, dificílimo de cumprir. Todo o caminho, porém, principia por um primeiro passo, não é?

                   Está-me sempre a lembrar a atitude final de S. Tomás de Aquino: deixou a suma Teológica a meio, ao descobrir que nada daquilo, afinal, tinha nenhum interesse particular. Nem validade. Que é que ele terá vislumbrado? Se ele já é tão espantoso, que outro espanto entreviu para além que levou a caducar tudo? Ninguém faz ideia nenhuma e ele não o confidenciou. Mas lá que eu gostaria de espreitar pela fresta, gostaria!

                   À falta de melhor e reduzindo-me à minha insignificância, também eu vou largar tudo o que alinhei atrás porque me dou conta de que há uma matriz mais funda de toda esta colossal alienação. Convém pôr aí o dedo, por mais longa que já vá toda esta conversa.

                   É o problema, mais uma vez, do sagrado, noutro ângulo. De repente reparo na insistência bíblica (Gén. I, 26-30) em Deus colocar tudo na mão do homem, com a ordem repetida de que domine sobre quanto existe à face da terra, em paralelo com a recorrência da afirmação de que criou a humanidade (Adão, no cap. II, é um plural, como está no plural o verbo do versículo 26 anterior) à sua imagem e semelhança. Lido doutra perspectiva: que o homem domine à imagem e semelhança de Deus. Isto é, em conformidade com o modo como Deus domina. Parece uma banalidade mas subitamente reparo que não é. Ao invés, é muito estranho.

                   É que o texto, dos mais recentes da Bíblia, datará porventura do séc. V a. C., redigido depois do regresso judaico do cativeiro de Babilónia, decerto pelos sacerdotes, empenhados na reconstrução do Templo. Linguagem erudita proveniente dos mais cultos, em nada é comparável ao cap.II, ao mito de Adão e Eva colhido da tradição oral comum aos povos da região, de origem imemorialmente mais antiga.

                   A estranheza provém disto: é que não há, na sequência inteira da criação, nada, rigorosamente nada declarado como sagrado. Toda a criação é secular, posta nas nossas mãos para a dominarmos e dela nos servirmos.

                   Isto foi registado há dois mil e quinhentos anos, por sacerdotes, a classe mais interessada em sacralizar o maior número possível de instâncias, em proveito próprio. Ao invés, dessacralizaram tudo. Num meio ambiente politeísta e animista é inacreditavelmente corajoso. E generosamente despojado. Teria de ser muito grave a alienação reinante para levar a uma atitude radical deste teor. Sacrificaram por inteiro os interesses próprios em nome duma humanidade não alienada, que tomasse em mãos o seu destino e o destino do mundo inteiro. Em conformidade com o modo como Deus o faria.

                   Quer dizer, há já 2.500 anos que aqueles mentores espirituais se deram conta deste pendor universal que a humanidade tem de declarar quaisquer realidades como intocáveis, proibidas e, daí, inalcançáveis, inefáveis, logo, da natureza ou, pelo menos, de comparticipação divina. Daqui até chegar a um ídolo qualquer é um ligeiro passo. Conheciam todos isto muito bem por experiência do próprio povo judaico, logo desde a fundação. Com efeito, nem com todos os rituais e a complexa liturgia instaurada em honra do Deus único, na geração mosaica (Êxodo e Levítico), o povo se satisfez e toca de modelar um bezerro de oiro para adorar (Êx. 32), à primeira contrariedade. Ora, isto ocorrera à roda de mil anos antes de redigirem aquele texto introdutório do Génesis. Durante aquele milénio a recaída na idolatria fora uma constante. E retornavam dum cativeiro em Babilónia, duma cultura religiosa dualista (Ormuzd e Ariman: o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas), mergulhada e cercada de politeísmo e animismo. Compreende-se o cuidado em pôr os pontos nos is.

                   O que mais admira é que tão liminarmente eliminem toda a cadeia de sacralizações que enxameiam a maioria das páginas do Pentateuco (os cinco primeiros livros bíblicos, reportados a Moisés, um milénio antes deles, nos textos mais primitivos). É como se tal nem existisse. Eles que o mais provável é serem os herdeiros beneficiários de todo aquele ritualismo (o Levítico impõe mesmo restrições explícitas às benesses, à ganância eventual da tribo sacerdotal). Ignoram aquela teia por inteiro no texto introdutório da criação. Claro que o cativeiro com a destruição do Templo (e dos rituais) lhes demonstrara a fatuidade, a inutilidade de todas as sacralizações: tudo obra humana, transitória, vulnerável, em última instância, inútil. Teriam tomado consciência de que também os avoengos deles haviam caído na tentação de se cercarem de ritos divinizadores que falseavam a imagem própria de cada um, cercando-a duma inexistente aura divina, usurpada ao Deus a que pretendiam prestar culto? A verdade é que é a isto, à traição à vontade divina, que atribuem uma e outra vez as desgraças que lhes ocorrem. É que não andarão a entender bem o que Deus quer e a concretizá-lo porventura pior...

                   O que mais admira é, por fim, que há um milénio que tinham o Livro, a Bíblia, que viera regularmente crescendo com o que fora sendo julgado relevante e imperdível, por cada geração. Ora, ali é que principiara a Arca da Aliança, para preservá-lo. Ela é que fora, para torná-lo inviolável, tornada proibida, intocável, numa palavra, sagrada. Aqui é que principiara a sacralização institucionalizada, oficial, explícita. Já não uma qualquer tendência humana espontânea, inconsciente, por norma infundada. Ora, isto já durava há mil anos. Era o núcleo de tudo o que era sacro, ela é que era o coração do Santo dos Santos. Todavia, no texto introdutório, programático da Criação, nem uma palavra. Como se nem existisse.

                   Se nem a Bíblia é sagrada, nada é sagrado? “...Deus abençoou e santificou o sétimo dia porque nele descansou...” (Gén. II, 3). Eis o único vestígio que resta no quadro da Criação: o sétimo dia. É um enorme despojamento de secularização: abarca tudo o mais.

                   Quinhentos anos depois, em dias de Jesus, que ocorreu com esta pontinha de nada restante?

                  

                   8 – Quando eu era criança, em noites de Lua Cheia, na aldeia ainda à luz da candeia e da lareira de faúlha e gravetos, contava-me a minha mãe a lenda daquele luar embaciado. As manchas que discerníamos no satélite que nos alumiava frouxamente, prateando de magia o mundo inteiro, eram devidas a um grande pecado.

                   - Estás a ver? – apontava a mão calejada. – Aquilo meio borratado, as sombras, são dum homem com um molho de silvas às costas. Sabes porquê? Foi cortar o silvado num domingo, o dia do Senhor onde é proibido trabalhar e pronto, foi castigado por Deus, atirado para acolá para sempre. É para nos servir de emenda, para nunca mais ninguém se esquecer. O Domingo é sagrado.

                   Mais tarde ouviria de minhas colegas estudantes a mesma lenda, com mais ou menos variações, às vezes com episódios aventureiros (era um patrão que obrigava um jornaleiro àquilo), a demonstrar como andaria generalizada na tradição oral dos povos nortenhos.

                   Já não havia vestígios da multissecular tradição originária da cultura grega clássica, segundo a qual as manchas lunares, introduzindo uma imperfeição no círculo selenita, se deveriam à proximidade daquele astro da Terra, esta, sim, emaranhada de imperfeições. Oriunda da noção greco-latina do perfeito como estático, acabado e, portanto, representado na figura da circunferência, ainda perdurava entre eruditos e classe dominante no séc. XVII, sendo um dos argumentos no processo de condenação à morte de Galileu (se a luneta mostrava montes e vales, não era que eles existissem lá, era o diabo que à vista os antepunha para enganar quem pelas lentes espreitava...).

                   É, todavia, a perenidade do tabu do sétimo dia, generalizado pelo pendor da cultura judaico-cristã: mantém-se inteiramente sacralizado na avaliação e mentalidade popular dominante.

                   Será que é mesmo sagrado? Jesus joga-lhe uma machadada decisiva. Os fariseus procuravam um pretexto para o matarem (Mt. 12, 9-16; Mc. 3, 1-6; Lc. 6, 6-11).

                   - É permitido curar ao sábado? – perguntaram-lhe.

                   - Qual de vós – retorquiu-lhes Jesus – se tiver uma só ovelha e ela lhe cair num sábado num buraco não lhe pegará e a tirará dali? Ora, quanto mais vale um homem que uma ovelha! Portanto, é permitido fazer bem ao sábado.

                   Quer dizer, a sacralização havia-se estereotipado tanto naquele meio milénio que, naquele tempo, ninguém podia já mexer uma palha, que entraria em infracção. Até colher umas espigas para matar a fome era infringir a lei (Mt. 12, 1-8; Mc. 2, 23-28; Lc. 6, 1-5). De bem pouco valera a dessacralização integral, a secularização completa derivada do capítulo da criação, proposta pelos sacerdotes aquando da restauração do Templo. A tendência sacralizadora invadira a minúscula frestazinha lá deixada e de novo ocupara tudo, infernizando a vida das gentes ignaras, uns séculos depois.

                   Ora, Jesus elimina a própria sacralização do sábado: “o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado” (Mc. 2, 27). Não resta sequer aquela fenda por onde sacralizar seja lá o que for. O sábado também nos é entregue para o dominarmos e dele nos servirmos, como Deus o faria: temos mesmo de discernir intimamente qual é o desígnio do Infinito também para ele, em vez de nos sujeitarmos preguiçosamente a leis, tradições, culturas, mentalidades, revelações, místicos, santos... – sem os triarmos pelo crivo de nosso íntimo, de nosso coração. E seguir o que a nossa interioridade for vislumbrando, sempre atenta, sempre revisível, em conversão infatigável rumo à Infinidade que daí perpetuamente nos atrai, no discernir e no agir por onde caminha a amorização do mundo.

                   A palavra final: “o Filho do Homem é senhor até mesmo do sábado” (Mt. 12, 8; Mc. 2, 28; Lc. 6,5). Portanto, não há mesmo nada de sagrado. Tudo nos é posto nas mãos, sem tabu em lado nenhum. E tudo é mesmo tudo, o que tem efeitos deveras inacreditáveis. A principiar pela nossa tentação de sacralizar seja lá o que for. E vejam só de quantos tabus sagrados vivemos rodeados, a algemar-nos de mãos e pés! Na vida religiosa e na vida civil... E quantos por nós próprios elevados ao altar! Preconceitos de raça, etnia, tribo, cultura... Preconceitos de classe, de comportamento, de atitude... Dogmatizações de leis, regulamentos, praxes, tradições... Ritualização de crenças em fórmulas, gestos, posturas, atitudes... E por aí fora. E ai de quem mexa no que quer que seja disto tudo, cai logo o Carmo e a Trindade! Nós somos assim... A conversão tem mesmo de ser permanente.

                   Mas Deus não é sagrado? Eis o que se chama uma pergunta disparatada. Se o tivéssemos nalgum lado, não seria Deus e, portanto, não era nada sagrado. Como o não temos nem teremos nunca, não o encontrando em lado nenhum, também não é sagrado, não há objecto nenhum a que se aplique a sacralização.

                   Por trás da pergunta há uma mistificação, a fazer passar gato por lebre aos desatentos.

                   Deus nele próprio revela-se-nos inefável, inatingível e inesgotável. Uma interioridade infinita, um Nós de comunhão eterna sem fronteiras, ilimitado. De quem é este que a si se refere como “serei o que for sendo”(Êx. 3,14; e não “eu sou aquele que sou” ou “eu sou aquele que é” das versões bíblicas comuns, uma vez que o original é de dois futuros), apenas logramos uns vagos vislumbres, fugidias intuições, esquivos riscos de luar na intérmina noite escura de nossas vidas.

                   Ora, por mais preciosos que sejam estes frágeis discernimentos; por mais vulneráveis que se revelem, em perene iminência de se diluírem no transcurso dos dias, perdidos de vez; por mais que os creiamos o maior tesoiro de que podemos dispor e compartilhar com os humanos peregrinos, sempre à borda do precipício, são sempre meras aproximações limitadas, historicamente enquadradas e relativas, mesquinhas pobrezas, migalhas insignificantes da mesa do rei. Nunca são o palácio, nem a ceia posta e muito menos o rei inominável.

                   Pretender sacralizar isto porque isto fala de Deus é uma burla. Tudo são conceitos humanos, vivências místicas de indivíduos como nós, teorias, modelos e práticas humanamente determinadas, limitadas.

                   Ora, quando se afirma que Deus é santo, o que se está operando é esta troca, é tentar fazer passar uma palavra, uma concepção, uma teologia, uma mentalidade como sendo Deus. Em derradeira instância é deveras falso, é uma criação humana, por mais depurada que seja, um ídolo talhado por mãos humanas a passar por Deus. Refere-se-lhe, é verdade, mas não o é nem poderá ser nunca.

                   Claro que todos farão esta ressalva, evidentemente. Desculpa de mau pagador: todos sabemos muito bem, desde há milénios, que não é isto que é vivenciado pelo vulgo, sempre mágico e milagreiro. Aliás, nem sequer pelos próprios, uma vez que não podem escapar à tendência sacralizante espontânea de qualquer indivíduo. E a prova é que consideram intocáveis (sagradas) uma caterva de tradições, teorias, concepções, normas práticas, dogmas, sei lá que mais. Têm a vida interior inteiramente aprisionada daquele pretenso deus sacralizado e que mais não é que uma inumerável chusma de ídolos, um imenso politeísmo apenas vestido doutra maneira que os antigos. Um deus sagrado sacraliza logo tudo, por inerência. Ele não passa, como tudo o mais, de mera criação humana: passageira e falível. Sacralizá-lo e ao mais que ele arrasta inexoravelmente é tentar eternizá-lo, fixá-lo no tempo duma vez por todas: é, de facto, em concreto, abandonar Deus, o inalcançável, o inesgotável, o imparável, o incomensurável.

                   É o cancro de todas as religiões institucionalizadas, todas cometem este erro crasso: todas se tornam sagradas. Em múltiplos domínios. Ora, o sacro escraviza-nos, não nos liberta. Anti-religioso, não nos religa ao Infinito, atola-nos na terra, amordaçados e algemados.

                   Jesus dessacralizou tudo: libertou-nos de raiz para darmos voz e corpo ao Amor Infinito, na intérmina caminhada do Cosmos, os céus e a terra que proclamam a glória de Deus eternamente abscôndito, pela magia do maravilhamento que em nós desencadeiam.

                  

                   9 – Eu sei que te estou a dar cabo da paciência e deveria terminar por aqui. Mas olha, não me apetece. Tens bom remédio: pára e pronto! Ou deita isto tudo para o lixo, uma vez que, bem vistas as coisas, não é mais do que isso: estaremos sempre infinitamente longe do Infinito! Só que continua a dar-me muito gozo... Desculpa lá!

                   Há dias vi na televisão uma pesquisa em busca da perdida Arca da Aliança, protagonizada por um investigador completamente fanático que cria que, se a encontrasse, encontraria um poder descomunal que viraria o mundo do avesso. Uma hilariante alienação radical. Como é que alguém inteligente, com formação científica, acredita e embarca em semelhante disparate? Não é capaz mesmo de entender nada de como opera a vivência espiritual, a nossa identidade íntima com que nos orientamos vida fora pelo mundo além? Anos atrás, Steven Spielberg, com “Os Salteadores da Arca Perdida”, bateu o recorde mundial de bilheteira. O mesmo tema numa obra-prima de ficção cinematográfica, em que o conflito é entre os bons e os maus, em aventuras carregadas de suspense, e onde a Arca, ao fim, derrete os perversos como velas de sebo, fazendo justiça onde a equidade humana falhara. Ao menos ficou por aqui! Não houve nenhuma sacralização desregrada, irracional do que quer que fosse. Uma metáfora da prática do que é justo, o alicerce do amor humano, a partir da matriz religiosa, ligada a um artefacto arqueológico (embora, apesar de tudo, mitificado).

                   Até aqui, esta mania da sacralização, em tais eventos, não provocou estragos de maior, os indivíduos vão por ali porque querem. Enquanto não virem mais longe e melhor, tudo bem. É o itinerário deles. Na pesquisa, no cinema ou onde quer que seja.

                   O que me não sai da memória, todavia, é o negativo caso-limite do que ocorreu com Hans Kung, perito conciliar do Vaticano II, após a publicação de “Veracidade”, a reflexão dele relativa ao dogma da infalibilidade papal. É o momento exemplar da doença da sacralização.

                   Os fanáticos do dogma (de qualquer um, mas deste em particular) sacralizam-no tanto que ele devém verdade absoluta: reinterpretar, nunca! As próprias palavras se tornam intocáveis, mesmo quando já ninguém as entenda por não fazerem sentido nenhum. Voltar a dar-lhes sentido? Jamais! Os obcecados com o sagrado têm de agarrar Deus de alguma maneira, nem que seja em palavras, e retê-lo ali aprisionado: caçaram-no, aleluia! Agora têm de proteger o depósito divino de usurpadores ou deturpadores que o deixem escapar por alguma frincha que tenha passado despercebida. Arvoram-se em guardiões da armadilha de Deus!

                   Um de meus mestres de teologia ria-se disto, muito divertido:

                   - O depósito da fé está furado!

                   O que o não preocupava nada, ao invés: dava-lhe uma enorme alegria. É que, finalmente, os que o furam têm algum respeito por Deus: não o confundem com os vislumbres. Reconhecem-lhe a intangibilidade. E reconhecem-se a si próprios: uns anõezinhos irremediavelmente míopes, muito parvos, por mais que tentem esticar os calcanhares. Isto é que é equilibrado: cada um no respectivo lugar.

                   Os sacralizadores, não: Deus tem de residir nalguma coisa aqui, tem de ter uma dimensão física qualquer, tem de estar historicizado, fisicalizado. Então, à falta de melhor, em desespero de causa, tem de incarnar pelo menos no Papa, apesar daquelas condições todas a que tiveram de ceder para aquilo ser conciliarmente aprovado. Aí, finalmente, cantam vitória e puxam das armas: H. Kung é perseguido, destituído, expulso, confinado ao limiar da excomunhão. E ficaram decerto muito felizes. E a quantos mais isto ocorreu pelo mundo inteiro! Uma razia!

                   Nem reparam que é a mesma lógica (e o mesmo erro) que levou os extremistas islâmicos a explodirem bombas no comboio de Madrid, nos autocarros de Londres, a raptarem e escravizarem centenas de raparigas na Nigéria, a desencadearem a guerra do estado islâmico...

                   Quando se absolutiza uma qualquer criação humana, quando se sacraliza, tornando-a divinizada, logo a seguir matamos as pessoas (basta uma divergência, até só uma suspeita). É assim há milénios e não há maneira de aprendermos. A sacralização das ideologias, mesmo militantemente ateias (marxismo), deu no mesmo. E será sempre igual enquanto não ganharmos juízo e arrepiarmos caminho. Este erro é da atitude, não das mensagens.

                   Pelo fruto conhecemos a árvore: se bom, ela é boa; se mau, ela é má (Mt. 12, 33; Mc. 6, 45). É o critério evangélico e não há como fugir-lhe.

                   Como é que ninguém reparou, durante dois milénios, que Concílios para decretar dogmas e anatematizar hereges só provocam desavenças, desgraças, sofrimentos e mortes e, portanto, com tais frutos, têm de estar errados nalguma coisa? Se ninguém, a partir deles, pode afirmar: “vede como eles se amam!”, mas antes: ”vede como eles se odeiam!”, quando não: “vede como eles se matam!” – como não gritar que isto é uma árvore má que tem de ser arrancada e reduzida a cinzas? Que importa que venha desde o princípio? É um pecado institucional, sistemático, multimilenar da organização eclesiástica que só não caiu nele no primeiro, o dos Apóstolos em Jerusalém (Act. 15), e no derradeiro, do Vaticano II. Tudo o mais, neste vector, é para esquecer, é o “pecado organizado” (Sophia de Mello Breyner Andresen) em tudo o que neles foi sacralização dum entendimento de seja lá o que for (e quase todos foram apenas isso, infelizmente). Claro que o dogma não é isto na teoria, mas é-o na prática generalizada.

                   Como é que ninguém reparou que não é jamais o entendimento que nos salva mas o amor? Que a razão é apenas um medianeiro instrumental deste, a ser julgada igualmente pelos frutos (não pela lógica, que dá para quanto se queira)? Quem se preocupou em amar Deus sobre todas as coisas como a si próprio?

                   Nada: a tentação de sacralizar é tanta que se passou sempre por cima de tudo, se violou tudo, se jogou ao lixo toda a mensagem, toda a Boa Nova, só para satisfazer um instinto irracional desregrado. Só quem queira fechar os olhos é que não vê isto, pelos séculos dos séculos.

                   Um conceito, uma definição, uma teoria, uma teologia, uma mentalidade... – tudo são criações humanas que, uma vez sagradas, intocáveis, ganham aura divina e findam a substituir o próprio Deus.

                   Um sacramento, um rito, uma celebração, uma bênção, uma tradição... – tudo são criações humanas que, sacralizadas, devêm incarnações de Deus, disfarçadamente embora, e ninguém mais precisa dele para nada, já ali o temos.

                   Ninguém viu que é isto exactamente que é um ídolo? Não precisa de ser feito duma matéria qualquer, basta sair de nossas mãos, mesmo todo mental em concepção, mesmo todo projecto  em execução ritualista: é um produto nosso, tenha a inspiração que tiver, vise que sublimidades sidéreas visar. É um ídolo tão humano como a máscara de pau da tribo africana ou a estátua de pedra da Ilha de Páscoa ou o bronze de qualquer Zeus ou Apolo. São criaturas nossas, não são o Deus que visam, a que apontam, a que pretendam sensibilizar (na melhor das hipóteses). E substituem-se-lhe sempre, queiramo-lo ou não.

                   Quando lhe sacrificam H. Kung, J. Cardonnel, Schilebeeckx, Boss, Gonzalez-Ruiz, Gutierrez... (a lista é infindável) – estão a fazer holocausto humano aos ídolos, como quaisquer idólatras de qualquer tempo e lugar. Estão a fazer o homem para o sábado, não o sábado para o homem.

                   Estão a confabular com fariseus e herodianos para crucificar Jesus Cristo, tal e qual como no tempo dele e pelos mesmos motivos: ele abala a ordem estabelecida pelos normativos sabáticos sacralizados, intocáveis, em nome de fazer bem às pessoas, aos povos, à humanidade. Como para quem vive a sério a espiritualidade isto é que é prioritário e inadiável, os militantes do sagrado, para quem só este conta, têm de matar Jesus em quenquer que ele aflore. Como hoje em dia não podem crucificar, fazem-lhe então a vida negra. Muitos, se calhar, nem se dão conta, cheios de boas intenções (de que o inferno está cheio). “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” – repetirá indefinidamente Jesus.

                   E cá vamos, também indefinidamente, com iguais asneiras, a requerer iguais soluções. E o Infinito tão infinitamente longe!

                   E sempre a mesma cegueira e sempre os mesmos atilhos e sempre os mesmos tropeções e sempre os mesmos membros e rostos trucidados.

                   Claro que também eu tenho saudades da ressurreição, também eu gostaria de armar a minha tenda no Monte Tabor. Não divirjo dos mais. Aquilo, todavia, apenas o continua a adiar indefinidamente, como referia S. Paulo.

 

                   10 – Andava eu um dia, em época de exames, a descontrair no Choupal, bordejando o Mondego, como muitas outras colegas faziam para recuperar energias e acalmar, quando, dos grupos que por ali vadiavam, se destacou um “repúblico” da “Ai-ó-Linda”, o Garcia, que por vezes gostava de conversar connosco.

                   - Viste ontem o telejornal? – perguntou-me. – Deram, numa reportagem, o desfile dos padres conciliares. Eu nunca liguei nada à religião mas fiquei impressionado: ver aquela multidão de homens do mundo inteiro, milhares e milhares, de idade madura, com aquelas barbas brancas... Não é uma miudagem irresponsável qualquer. Dá que pensar. Tem de haver ali alguma coisa, não é? Aquilo obriga a gente a parar, a ver como é que será...

                   Vem isto a propósito do efeito que um mero desfile pode ter sobre nós e a nossa liberdade interior. É que eu dei-me ao trabalho de pesquisar, depois do parágrafo atrás, o debate e reflexão acerca dos Papas hereges, matéria abordada desde há mil e quatrocentos anos entre cristãos, desde quando o Papa Honório I (625 d. C.), discípulo de S. Gregório Magno (um dos Padres da Igreja), foi declarado herético e excluído da comunhão eclesial já depois de morto, por mor dum conceito diferente em cristologia (debate dos monofisitas). Não é caso único: João XXII (séc. XIV), o primeiro de Avinhão, e Alexandre VI (séc. XV) que ratificou a primeira divisão do mundo entre Portugal e Espanha, anterior a Tordesilhas, - ambos foram em vida acoimados de hereges, embora não condenados oficialmente.

                   Ao deparar-me, na análise, com o desfile de consagrados canonistas (Caetano, Leymann...), santos (S. Francisco de Sales, S. Belarmino...), até de Papas (Adriano VI...), senti-me inesperadamente inibida, vergada por tamanhas autoridades. Quem sou eu para julgar que isto é uma ilusão multissecular, um tiro desviado do alvo? Como é que eu posso estar a ver o que eles não viram, se eu não sou ninguém e eles são as sumidades que são? E são-no para os cristãos, são-no para mim e são-no mesmo para a humanidade... Grandes peritos, grandes santos! Fiquei tolhida, tentada a calar de vez a boca, meia convicta de andar para aqui a escrever um chorrilho de asneiras.

                   Só passadas umas horas me dei conta de que deve ser exactamente assim que o Papa Francisco se deve sentir quando se confronta com a mole imensa duma Igreja desviada dos fundamentos para questões de lana caprina, abandonando o mundo ao acaso da sorte ou, pior ainda, tentando encafuá-lo em cemitérios mentais do passado, por mais gloriosos que sejam (e porventura até fecundos a seu tempo). Todos idolatrados, literalmente.

                   De certeza foi assim que se sentiram os sacerdotes judaicos, à espera da restauração do Templo após o cativeiro de Babilónia, quando se confrontaram com o problema de ignorar todo o complexíssimo ritual milenar do Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio, em nome do recentramento, no alicerce rigoroso, de sua fé originária.

                   E quantas dúvidas não deve ter tido Galileu perante a sacralização generalizada do magister dixit de Aristóteles e Ptolomeu! Quantas vezes deve ter interrogado o plano inclinado e a luneta até se convencer de que tinha mesmo razão contra o mundo inteiro! E que coragem para enfrentar os ídolos sacralizados correndo risco de morte!

                   Mas fê-lo, mas fizeram-no.

                   Os adoradores do que foi sacralizado não olham a meios nem têm limites: eles têm Deus acorrentado ali à mão, são dele os porta-vozes, os executores acreditados contra tudo e contra todos. Por mais inacreditável que isto nos pareça, eles até pretendem mandar em Deus e no outro mundo: o Papa Honório é excomungado depois de morto! Nem aí onde não chegamos eles param. Depois da morte é com Deus? Não, os idólatras até por lá dentro se imiscuem (como se o pudessem), pretendendo determinar o que de todo jamais poderão. E foi feito por via dum concílio! Evidentemente que só pode ter efeitos do lado de cá da vida. Mas alguém crê que foi mesmo assim que pensaram? Que era a isto que se pretendiam limitar? Não! Eles pretendem enfiar Honório no inferno, como se Deus andasse a seu mando, feito um fiel escravo deles. A idolatria, mais tarde ou mais cedo, conduzirá sempre aqui. Mais explícita, mais camuflada ou mais discretamente. Eles incarnam Deus, logo, não há outro Deus senão eles.

                   É inviável findar com o pendor sacralizante que é nosso por natureza. Como não podemos eliminar de nós qualquer outra faculdade que nos constitui, por mais que a descuremos, marginalizemos, pretendamos ignorar: não é por preguiçarmos na inteligência que a nossa estupidez é infinita, como Einstein ironiza? Mas nem isto elimina o facto de que somos racionais, sejam quais forem os pontapés com que tratemos a nossa mente. De igual modo com a mania do sagrado. Temo-la aqui e por aqui andará para sempre.

                   Logo, para lhe evitar os estragos, só tratando dela a contento e curando-lhe as lesões. Assim o fizeram os sacerdotes da reconstrução do Templo, assim o fez Jesus, pagando-o com a vida.

                   Correram mais de dois mil anos com uma infinidade de tropelias, as mais significativas a exigir mesmo uma varredura destas: Cisma do Oriente, Protestantes... Nunca mais, todavia, o Templo foi varrido. O lixo sacro acumulado atinge proporções nunca vistas, corrompendo a espiritualidade toda, com as dogmatizações mais descabeladas, numa imensa farmacopeia de mezinhas mágicas todas falsificadas, a alimentar crendices supersticiosas de proporções planetárias.

                   Não é isto que Deus pretende, não foi para tal mistificação que Jesus morreu. Não é a tais fiéis “praticantes” que Jesus convida para o Monte Tabor, não é a tais discípulos que aparece ressuscitado para subir aos céus, deixando-os deslumbrados para correrem a amorizar o mundo.

                   A Igreja precisa mesmo duma refundação, como a dos tempos do capítulo da criação do Génesis. E todas as demais confissões e todas as demais religiões também. Anda tudo atolado numa infinidade de sacralizações, de ídolos falsamente santos, cada qual o mais dogmatizado. Varramos de vez as posturas e atitudes dogmatistas, para enfim podermos dar as mãos, para mutuamente nos emularmos na gestação dum mundo fraterno, solidário, equitativo, onde amor e amizade não sejam palavras mas realidades de carne e sangue a fervilhar de alegria.

                   Para quando a festa planetária da Vida? Aqui, se calhar, poderíamos ver a face de Deus, quem sabe? A teofania, a ir-se revelando através de nós, cada dia mais...

                   Pelos frutos se conhece a árvore. É por aqui, não por onde milenarmente temos trilhado carreiros ínvios, onde todos nos perdemos multissecularmente uns dos outros. O que nos une é que está certo, o que nos separa é que está errado: não há outro critério. O dogmatismo mata-nos, com mil antros sacros. “Vede como eles se amam!” – é o que deve ser visado. Nem que para isto se tenha de dar a vida, como Jesus o fez, morto pelos adoradores do sagrado do seu tempo. Tentarão os actuais o mesmo no nosso, é eternamente assim, enquanto eles próprios se não reconverterem, abandonando os novos ídolos a que espontânea e inconscientemente se apegaram. E temos de ter compaixão, que nós também caímos no mesmo, a cada distracção.

                   É uma caminhada eterna, de progredir ao infinito. Gratifica a cada paragem do itinerário com o antegosto da nossa plenitude, nas primícias que lograrmos ir cultivando e recolhendo. Com as comunhões, não com as dissensões. Ao invés, portanto, do que até aqui. E a comunhão é de afectos, laços e actos de dádiva mútua compartilhados, não de conceitos, teorias nem teologias, uma vertente completamente secundária, meramente ancilar e subsidiária. A pôr de lado, a ignorar quando opera ao contrário. Jesus nunca foi teólogo nem mandou fazer teologia: amou as pessoas e agiu em conformidade. Que é que os discípulos devem fazer? Que é que a Igreja institucional tem de fazer para transparecer e não trair tanto a Igreja Corpo Místico de Cristo? Não é decerto o que milenarmente tem feito, predominantemente, até agora.

                   Vamos ter a coragem de nos converter a fundo? De largar a ganga pesadíssima dos tradicionalismos desviados que nos traíram a todos? Não têm nada de sagrado, são ídolos como tudo o mais que se declare como santo. Jesus libertou-nos há dois mil anos, como é que nos deixamos andar sempre a agrilhoar? Nós, os cristãos, como os outros e toda a humanidade?

                  

                   Pronto, já abusei demais. Muito obrigada pelo gozo que me permitiram de desbravar esta floresta virgem. Que vos dê tanto prazer a vós como a mim.

                   Abraça-vos a Sofia.

 

 

                   Chão de Vivos, 14 de Janeiro de 2019

 

                   Caro Luís:

                   Perguntas bem! Sei lá como reconverter o cristianismo! Menos ainda a religiosidade humana! É que, por cima, é uma tarefa interminável, andaremos sempre mais ou menos a enganar-nos, como toda a história nos ensina. Quer dizer, nunca nos reconverteremos de vez: vamo-nos reconvertendo, à medida que os olhos se abrirem à luz do íntimo, tão flébil e subtil quão vitaliciamente persistente. Aqui é que somos todos iguais, na chama do imo com que Deus nos toca, branda brisa a impelir-nos suavemente, que não pára nunca, murmúrio convidativo a uma ternura cosmicamente partilhada. Cá no fundo somos todos isto: o nosso bocadinho de Deus. Onde ele nos fala baixinho.

                   É isto que temos de amar em toda a gente, com amor incondicional, que tal fundura, por mais traída que seja por quenquer em quenquer que seja, nunca se extingue, nunca muda, vive a vida inteira em cada um, vive a vida eterna em cada qual: é a sua faúlha divina, o dedo de Deus nele, a atraí-lo para o Infinito infinitamente. Não se esgota cá nem se esgota depois: Deus habita o coração do homem para a eternidade. Em cada indivíduo.

                   Amar Deus implica amá-lo ali em cada sujeito, o afloramento dele acolá e que é, no eu de cada pessoa, a matriz de sua mais autêntica identidade. Nesta dimensão, ninguém pode deixar de amar alguém se pretende amar a Deus, já que Deus se manifesta noutrem perenemente, na derradeira fundura do imo. É o Emanuel, o Deus-connosco. Todos desfrutamos dele, por mais que o ignoremos, por mais que o traiamos. Ele é que nunca ignora nem trai ninguém, sempre ali disponível e a deitar-nos a mão. Anónimo, porventura, mas incrivelmente pessoal.

                   Que é que deriva daqui? Que nunca poderei garantir que estou certa, nem a mim própria. A primeira asneira que à partida estragaria tudo seria agarrar em quanto creio e proponho e transformá-lo num programa de agir para outrem, sem o peneirar cada um pelo próprio íntimo. Até pode vir a findar naquilo, não é? Só que há uma diferença fundamental: ou é itinerário próprio ou mapa doutrem que nunca foi apropriado por quem o percorre. Acolá liberta, aqui escraviza. Exteriormente é o mesmo, interiormente são antitéticos: quem é livre é libertador, quem é escravo asfixia e mata. Um empurra para um lado, o outro, para o outro, com sinais contrários.

                   Portanto, nada de pegar no que eu ou outro qualquer sugira como num receituário, num roteiro de cobrir automaticamente. Cada qual, se ele lhe tocar intimamente, que o torne seu, à sua maneira, com seu toque particular e particulares articulações e derivativos. Aí então a pegada é sua, eu (ou outro) fui apenas fermento, estímulo, alerta ou mesmo apenas um tropeço desajeitado: é isto que, fora de qualquer eu, todo o exterior lhe é, quando ele se assume, assumindo a própria vida. E assim é que tem de ser. Comigo ou com quenquer que seja: não pode haver caudilhos, generais, ditadores, imperadores... – a comandar cruzadas. Onde isto ocorrer, levando outrem a demitir-se de si para ser o braço estendido de alguém que não ele próprio, aí temos a traição a Deus que no imo dele por ele chama, não por outro qualquer.

                   Esta é a alienação que praticamente todos os fiéis “praticantes” de qualquer religião cometem permanentemente: ninguém torna o respectivo credo seu, com sentido íntimo para e na vida própria. É tudo genericamente uma série de superstições e de ritos mágicos: vivemos num mundo de idolatria generalizada mas toda muito bem disfarçada e inconfessa. A mando, evidentemente, de mentores e celebrantes eruditos que devem saber o que fazem, já que nós, não, mas lhes damos de barato a confiança de nossa boa fé de que assim serão e agirão em conformidade.

                   Daqui deriva a segunda grande reserva: não há caminhos incorruptíveis. Quaisquer que sejam as reformas a implementar, sempre a liberdade de cada um as poderá perverter. O livre arbítrio jamais é abolido. Apenas podemos estimular, encaminhar recursos, sugerir modelos, apontar itinerários... – solicitando concomitantemente a boa vontade e o coração puro para aproveitá-los. A fazer fé nas pessoas de que, pelo menos em maioria, irão dar o melhor de si para optimizar as oportunidades de bem-fazer com que depararem. Mais longe ninguém pode ir sem produzir algo pior.

                   O erro mais comum é justamente a tentação de substituir-se aos outros, a pretexto de que eles ignoram mas os peritos (sacerdotes, teólogos, bispos...) sabem o que é melhor para todos e cada um. Então toca de arrebanhar a carneirada para a pastagem predeterminada e que ninguém tenha a veleidade de trocar de trilho. Isto abole a autenticidade de toda a gente, ninguém mais ausculta seu íntimo e para onde ele o encaminha. Temos no fim, eventualmente, a espectacular materialização da alienação sistemática e maciça da humanidade inteira. Tem muito disto, infelizmente, o espectáculo actual da família humana. Com tal, esvai-se qualquer sentido do que é a espiritualidade e finda a vivência dela. Os pretensos crentes acabam mais materialistas, sem interioridade nenhuma vivida nem autenticidade, do que os materialistas confessos, quantos deles preocupados, atentos e servidores da humanização da comunidade (logo, espirituais). Pretender que isto é melhor do que respeitar o livre arbítrio e a intimidade e vontade de cada um é trair toda a liderança religiosa autêntica por uma ânsia de domínio, de poder despudorado sobre outrem, mesmo à custa da destruição de toda a vivência espiritual. É isto, porém, que a generalidade das religiões anda praticando há séculos pelo mundo fora. Não há dúvida de que o poder corrompe e, quanto mais absoluto, mais corrompe absolutamente: são os mentores que rotineiramente andam a praticar isto em toda a parte, são os cabecilhas. A plebe deixa-se encaminhar ordeiramente e cheia de boa fé para o matadouro. Não lhe passa pela cabeça que, ao fim, isto não lhe garanta salvação nenhuma, antes pelo contrário.  

                   Os sacerdotes de qualquer religião não têm nenhum rebate de consciência por andarem a fazer isto a toda a humanidade? A alimentar um ludíbrio que a todos priva do melhor da vida eterna? É que cada um, na morte, fica naquilo com que lá chega... Tenha ou não sido ludibriado: é a escolha dele. Deus respeita-a integralmente: se se deixou ali encurralar, vazio de si, é assim que fica, foi o que quis em vida, foi o que produziu. Deus nunca se lhe irá substituir, ao contrário dos pretensos mentores espirituais que, ao invés, afinal o castraram de sua frágil alma. E pretendem ser seguidores fiéis do divino... Anda tudo cego?!

                   Ora, é daqui que deriva o dogmatismo e a sacralização da mentalidade comum: a ignorância, multiplicada pelo alheamento, leva cada um a proibir-se de tocar no que não entende, a remetê-lo para um altar inacessível e, logo, a adorá-lo como magicamente divino, do outro mundo.

                   Demos as voltas que dermos em qualquer mudança, tudo ficará tal e qual se não atendermos primeiro, durante e depois, interminavelmente, pelo menos a estes factores onde, afinal, tudo se pode salvar ou perder de vez.

                   Lembras-te de ficarmos furiosos, nos tempos de Coimbra, quando descobrimos que Moscovo, então comunista, se apropriara do espólio das obras de Karl Marx e se recusava a editar os escritos da juventude? Iriam revelar um autor humano, a caminho, com concepções que desautorizariam os dogmas absolutizados, sacralizados no comunismo de então. Ele era até muito humanista...

                   É sempre assim quando um modelo se absolutiza, por mais ateísta que seja, como este pretensamente o era. Maior ainda é o risco quando se acoberta como sendo desígnio divino: quem se atreve a terçar armas contra Deus? Sempre os déspotas deste mundo se aperceberam disto e há milénios que, espertos, se tentam colocar debaixo deste guarda-chuva (origem divina do poder, dentro ou fora das igrejas).

                   Com estas prevenções todas, vou pensar alto no desafio que me propões. Mais aqui que no resto, porém, olha que pode tudo ser apenas um montão de lixo. Não hesites em lançá-lo no caixote mal o sintas. Combinado? Repara que no dia em que o sentir é isso mesmo que farei. Contra mim própria.

 

                   1 – Uns querem que o Papa Francisco resigne, outros confabulam num modo de acusá-lo de heresia para destituí-lo.

                   É engraçado como isto me evoca as cenas evangélicas do mesmo à volta de Cristo. Os falsos profetas conhecem-se pelos frutos (Mt. 7, 15-23; Lc. 6, 42-46). Ora, aqui são os mesmos (e a mesma corrente) que amordaçaram quanto saiu do Concílio Vaticano II, que ataram de pés e mãos quantos o inspiraram, que os perseguiram e reduziram ao silêncio, que lhes retiraram púlpitos, cátedras e comunidades. Pelos vistos, não lhes chega. Querem mais frutos de morte.

                   Naquele tempo, também os principais sacerdotes e os escribas procuravam um modo de matá-lo. Então Satanás convenceu Judas Iscariotes, um dos doze, e ele foi combinar com aqueles conspiradores mais os guardas do Templo de que forma entregaria Jesus (Lc. 22, 2-4). Muda o cenário, os personagens e as cenas são as mesmas. Lá como aqui.

                   Não é por acaso que é aquele Apóstolo: ele é um zelota. Os zelotas eram a corrente judaica mais fanatizada e sacralizadora: pretendiam restaurar o reino de Israel cá bem na terra, a fé judaica deles era toda mundana, tudo se tinha de materializar ali. Isto é que era sagrado, intocável. Aliás, naquela geração viviam divididos quanto a crer na imortalidade: uns acreditavam, inspirados na cultura grega; outros, porém, não, tudo é deste mundo e, com a morte, põe-se-lhe ponto final. Daí não acolherem na Tora nem o Livro dos Macabeus nem o da Sabedoria, que implicam a crença na imortalidade.

                   Pois os actuais zelotas conspiram contra o Papa como conspiram contra o anterior Concílio e os demais Papas antecedentes que o não denunciaram. Tudo isto, para eles, é herético (embora o não afirmem muito às claras), são todos seguidores mais ou menos secretos de Mons. Lefebvre que rompeu com Roma por discordar do rumo revitalizador do Vaticano II. Para todos, a ordem implantada é sagrada, a mentalidade dela decorrente é intocável e a salvação advém do respeitoso cumprimento ritual da tradição (pouco releva se primitiva, se acumulada milénios além). Sacralizaram toda a herança histórica, dogmatizada de vez, e, como ocorre com todos os idólatras, já não é precisa nem tolerável qualquer busca de Deus. Já o têm ali; portanto, anátema a quenquer que o pretenda trocar. É o erro clássico, multimilenar.

                   Que fazer?

                   Isto recorda-me uma cena que me ocorreu anos atrás, numa das minhas turmas da noite. Um aluno, desesperado porque eu pedia a todos que me não reproduzissem nenhum filósofo mas meditassem no que cada um propunha e concordassem ou discordassem com fundamentos próprios explícitos para tal, confrontou-me exigindo que eu aceitasse o mero domínio das teses de cada um. Tive tanta pena dele que me limitei a pedir sinceramente a toda a turma:

                   - Não me obriguem a servi-los mal! Ir por onde lhes proponho pode dar mais trabalho mas dá muito mais gozo. E, principalmente, permite-vos desenvolver capacidades e saberes que doutro modo nunca atingiriam. Isto é o fundamental. Ir por outro caminho é dar-vos muito menos, servir-vos muito pior. Aproveitem a oportunidade!

                   Felizmente tive sorte: o grupo aderiu e arrastou com ele o timorato. Todos tentaram desbravar trilhos com marca própria. Não houve mais resistentes.

                   Claro que ali foi muito mais simples. Agora à escala planetária, com biliões de pessoas...

                   Atrever-me-ia a dizer, todavia, que este é o fio condutor, da pequena até à grande escala. O repetidor cego e surdo dos saberes doutrem, das práticas doutrem, das atitudes e mentalidade doutrem, se o não cruza com o íntimo de seu coração, a auscultar que ecos em seu imo desperta, em que sentido, com que alcance, se o não confronta com a própria vida, a vida que o rodeia mais a do mundo, a aferir onde a pode alimentar, onde lhe é indiferente ou onde a ameaça e destrói, - o repetidor esvazia-se dele próprio, alheia-se do que realmente é e termina feito folha morta arrastada pela corrente anónima da história. Por mais que esta seja nobre, santa, sábia e deveras teofânica. Quanto mais esta o for, aliás, mais aquele a trai: serve-lhe um cadáver de si, não a vida inesperada, insubstituível, única que deveria protagonizar e de que, ao invés, se anda demitindo.

                   Pior: se crê que por aqui atinge qualquer salvação, está inteiramente enganado. Vazio de si, liquidado seu imo a que nunca atende, por onde deveria auscultar que é que Deus esperaria dele mas  que, ao contrário, recusa ouvir, é assim que comparece, ao integrar-se, com a morte, no Espírito do Universo: não reconhece nenhum apelo divino, apenas os humanos a que se escravizou a vida inteira e que nada são então senão ídolos terrenos abandonados, uma vez chegado ao Além. Fica perdido.

                   Ora, é isto que deve ser dito, avisado a todos os zelotas contemporâneos, para salvação deles próprios. Ninguém está contra eles, estamos todos com o Deus-neles. Não nos obriguem a servi-los mal, portanto. A sua verdadeira identidade é a que edificarem por esta vertente, não pelos trilhos alheios por onde andam desnorteados. Que sejam si próprios, que aí revelam Deus a caminho através deles, não já os cadáveres de antanho por onde ele caminhou eventualmente noutras eras. Não confundam fermento com massa levedada, menos ainda com a fornada cozida.

                   Claro que é itinerário incerto, claro que é inseguro, claro que requer vigilância permanente, que a todo o momento nos podemos enganar ou perder o pé. Ninguém, todavia, é autorizado a ser preguiçoso, ninguém pode ser conformista. Esta é a nossa condição humana, não aquela que pretendem e que é falsa e os engana, condenando-os nesta vida à fingida alegria dum triunfalismo oco e, na outra, a uma solidão alheia à Luz (de que escolheram alhear-se e que nunca se lhes imporá contra vontade, nem ali).

                   E também aqui a alternativa que lhes é oferecida, embora laboriosa, lhes irá dar muito mais gozo do que o beco sem saída onde se andam a encurralar. Na medida em que sejam transparentes ao íntimo próprio, mais autênticos são, mais neles prolifera a policromia da vida – maior é a alegria que vivem e espalham em redor. Mais Deus por eles se revela e semeia mundo fora. Mais festa bailará na humanidade.

                   É urgente informá-los permanentemente, infatigavelmente até que abram os olhos. Até que deixem de fazer mal a eles e a todos nós, por tabela.

                   Na minha turma não foi preciso mais; no mundo, porém, será decerto.

                   É que muitos deles estarão convictos de que, ao recusarmos salvação pela vereda deles, estaremos a fechar-lhes a porta do céu. Comportam-se como aqueles indivíduos que, quando o meteorologista prevê o mau tempo que aí vem, lhe fazem uma espera e o desancam, como se fora tal declaração que desencadearia a tormenta.

                   Não. Bem gostaríamos de fazer-lhes a vontade, mas aquilo em que crêem é mentira. Por muito que nela creiam, não a tornam verdade. Não depende deles nem de nós, declarem eles ou declaremos nós o que declararmos: a realidade é o que for, não nos pede licença para ser o que é. E opera em conformidade, por nós ou contra nós, sem nos pedir autorização, trilha o seu caminho indiferente. Jesus Cristo disse-nos qual o segredo para a ressurreição: amar a Deus, amar os outros. Mais nada. Nem crenças, nem rituais, nem tradições, nem dogmas... – o farão. Apenas a lei do amor em todas as dimensões. É o que tem de ser recordado a todos os zelotas infatigavelmente. Tudo o mais se pode perder, se o amor se salvar, fica tudo salvo, ao fim. O resto, ou é para isto, ou não serve para nada. Até o pode impedir, como neles verificamos.

                   Há, todavia, outro domínio de intervenção. Até como professora eu tinha de avaliar os meus alunos. E nunca os classifiquei por igual: os melhores eram os que mais longe logravam atingir pensamento próprio, evidentemente.

                   Parece que na Igreja (como nas demais confissões e religiões) conta pouco o que mais deveria contar: quem melhor é caminheiro do espírito é que deveria encabeçar o pelotão pelas estradas da vida. Este critério é fundamental. Tem de ser retomado na escolha de todas as lideranças, de todos os servidores da unidade, de todos os mentores... Como é que temos tanto peito inchado à cabeça de tudo? Como tanto pretensiosismo? Como tanto orgulho oco? Como tanto pedantismo, tanta fatuidade?...

                   Como é que fariseus, saduceus, escribas, zelotas... – proliferam aí por todo o lado, ocupando praticamente todos os lugares e funções de enquadramento, matando o Espírito em meia humanidade, como se fora recurso seguro para a salvação eterna? Como é que chegámos a isto, como não invertemos sistemática e maciçamente o caminho, sem mais hesitações?

                   Como não vemos a fuga generalizada da humanidade às religiões, não como perda mas como ganho, afinal, porque todos temos de fugir daquilo para nos salvarmos? Ateísmo, indiferença, agnosticismo – são o protesto planetário contra a mistificação e, em consequência, a tentativa de reencontrar o fio de meada que nos salva, primeiro aqui, depois Além, seja o que for, como quer que seja. É um grito de revolta e um pedido de ajuda.

                   Que cegueira nos mantém a marcar passo, em lugar de corrermos a salvar os náufragos do Espírito que anda cada vez mais traído e ignorado? É que é a bóia de salvação que todos buscam e a que pretendem agarrar-se. Nós temo-la. Continuaremos a recusar-lha? A servir-lhes uma bóia furada que os afoga? Bóia fingida de que eles se dão conta e por isso vão embora?

 

                   2 – O Eng. Nuno encontrei-o há meses no retorno dum casamento, todo aperaltado. Vinha risonho da festa. Tinha sido numa igreja da linha de Cascais, um casal de amigos. Confidenciou-me, com uma ponta de surpresa:

                   - Presidiu um padre novo, com ideias modernas. Afirmou, por exemplo, que ele não era ali preciso para nada, que quem celebra são os noivos, eles é que decidem que querem casar-se e o fizeram ali publicamente. Mais não é requerido. O acto religioso é o deles. Nós todos e o sacerdote somos meras testemunhas participantes. O nosso papel termina aí. Foi muito interessante.

                   Espantou-me o espanto dele: é que desde sempre é consensual na tradição cristã aquele entendimento – ministros do matrimónio são os noivos, mais ninguém. Pois o monopólio do clero que milenarmente andou em crescendo imparável foi de tal ordem que ainda hoje a convicção de toda a gente é a contrária. Não é a plebe ignara, é o inteiro povo de Deus, mesmo com formação superior, como eram praticamente todos naquele caso.

                   Este é o estado de coisas, não apenas relativamente ao casamento, mas a tudo o que se reporta à religiosidade: os padres (e monges, bispos, arcebispos, cardeais, papa...) é que sabem da tremenda confusão, alimentada pela complexidade inumerável em que se tornou, pelo acúmulo dos séculos, a gestão da espiritualidade. É matéria exclusiva de especialistas e dos mais especializados. O vulgo encara este universo mais ou menos como as áreas da saúde: sente-se mal, vai à consulta; se é complicado, o clínico remete-o para o perito; se é pior ainda, corre dum para outro, recorre a equipas de múltiplas complementaridades e por aí fora. Nas religiões, a espiritualidade tornou-se nisto: requer perícias de tal ordem que praticamente ninguém lhe chega. É só para alguns bem raros eleitos. O que é para o vulgo são os rituais. Nestes, as próprias palavras, de rotineiras, repetidas e estandardizadas (até nas homilias, sermões ou exortações...), perderam na prática, em geral, todo o sentido, já ninguém as ouve nem lhes liga.

                   Em termos de simplicidade, o Islão foi quem se manteve mais comedido. Não será alheio a isto, porventura, o crescimento de crentes que vai tendo (“O Islão” – Hans Kung), em contrapolo ligeiro à maioritária tendência mundial.

                   Como dar a volta à conjuntura?

                   O empolamento do clero tem vindo a decair há séculos. Até a designação deixou de ser comum, doravante é apenas de estudiosos e eruditos. A realidade de classe privilegiada, ao lado da nobreza, que ela foi durante múltiplos séculos, legalmente acabou extinta, embora se mantenha na mentalidade popular (“Manhã Submersa” – Virgílio Ferreira). E, pelo comportamento sobranceiro de inúmeros clérigos, também eles cultivam tal aura: são gente superior, crêem e tentam incuti-lo à volta.

                   A denúncia do empobrecimento espiritual em que isto redunda, com o sublinhar do estatuto e papel dos leigos, levou a remodelações superficiais de comparticipação litúrgica e deu-se o caso por arrumado (“Os Leigos na Igreja” – Yves Congar). É um caso típico de mudar tudo para que tudo fique tal e qual (Cardonnel chega a afirmar que tornar Congar cardeal não o tornou melhor teólogo nem melhorou a Igreja, apenas o domesticou, calando-o de vez). E é claro que não se entendeu nem se continua a entender que são fundamentalmente os leigos que transformam o mundo, eles é que têm a mão na massa, deles é que depende se o planeta se humaniza ou não, em concreto, se se vive mais fraternidade ou mais ódio, mais paz ou mais guerra.

                   Apenas uma igreja paralisada no deslumbramento do Tabor, a olhar as nuvens na quinta-feira da Ascensão, é que não repara que os executores são os que laboram no sopé do monte e que, sem estes, nada feito, do projecto de espiritualizar a humanidade, de nos levar a todos até à ressurreição. Não são só os cristãos que ficaram assim, em quaisquer variantes, todas as religiões empolam a função, a imagem e o estatuto dos respectivos celebrantes, dos mentores, embora sem Tabor nem Ascensão. É o efeito gradual do trilho inconsciente e espontâneo da sacralização.

                   Isto, portanto, tem de ser virado do avesso. Em conformidade, aliás, com a intuição originária, primitiva: aquela função, hoje hegemónica (outrora até monopolista, exclusiva) é a dos “servos dos servos de Deus”. Como é que os servos dos servos se tornaram os servidos? E como findaram os servos de Deus quase todos, para restarem fundamentalmente feitos servos daqueles? Todos tendem a servi-los, cumprindo-lhes ordens e mandatos, abolindo a vida interior própria por ignorância (quando não por temor), por demissão e alheamento. Tudo transformado num inumerável exército apenas de cumprir o que lhe determinam, que ninguém é pago para pensar (como dizem nas Forças Armadas). Nos antípodas da comunidade de Deus: o Deus Trino, do Infinito incontável de imos germinando em tudo, em todos e em cada um, tão transparente na mútua comunhão que o Trino é Uno no amor incondicional com que se funde e nos convida a unificar-nos, unificando tudo. Que fizemos disto? Ignorámo-lo praticamente por inteiro. Temos, portanto, de o refazer de raiz, não com uns remendinhos de faz-de-conta, a iludir os pategos.

                   Quando caminharmos neste sentido, toda a humanidade, à semelhança do que ocorreu durante o Concílio Vaticano II, irá ter um descomunal sobressalto de esperança. Inúmeros irão querer partilhar connosco, celebrar connosco, comungar connosco: finalmente encontrarão a bóia que os poderá impedir de afogar-se nas tempestades hodiernas. Se o fizermos com autenticidade e quão maior  e mais profunda e genuína for, mais crescerão aos milhões e milhões. Iremos colocar polícias à porta, escribas a regulamentar quantos passos se poderão dar no sábado, quem, em que condições e até onde lhe permitiremos entrar em comunhão connosco, com as comunidades, com as igrejas? Vamos fazer o sábado para o homem ou o homem para o sábado?

                   Os novos zelotas não admitirão nenhum abraço. Os sacralizadores irão erguer barreiras e barreiras intocáveis (partilhar dos sacramentos, que horror!), os dogmatistas imporão, à maneira do estado islâmico: primeiro converte-te, depois podes matar toda a gente!

                   E nem vale a pena apontar o dedo a ninguém: nós próprios o iremos fazer, à primeira distracção. Andamos todos carregados de dogmas, muros e mais muros cá por dentro. É muito difícil acolher e ser acolhido: as reservas serão tantas que ameaçarão, à partida, todo o avanço.

                   Quando estive em Roma, numa tarde soalheira de Agosto com um calor de abrasar, fui visitar uma igreja das inúmeras que lá proliferam. Ia de calções com blusa sem manga. À entrada fui impedida por um servente fardado muito zeloso: não podia avançar sem cobrir os braços e os calções. Eu até levava lenços para aquilo, já conhecia a regra do jogo. O tom peremptório com que ele falou, o dogma sagrado a que elevou a norma, indignou-me, todavia. Decidi que aquela não visitava mesmo, nem sequer tirei os lenços da mala. Virei costas.

                   Se até numa insignificância destas, que não tem qualquer espécie de sentido nem peso, acabamos com intolerâncias e prepotências constrangedoras, imposições arbitrárias, botas a calcarem os demais, que não será em temas e áreas cruciais que temos por sagradas, íntimas de Deus? Como iremos expulsar os fariseus que dominam todas as religiões do mundo, para que não expulsem os filhos de Deus que Deus, ainda por cima, nunca expulsa, façam o que fizerem, apresentem-se como se apresentarem? Somos seguidores de quem?

                   As entradas na Igreja não podem ter outras regras que a lei de Deus: apenas o amor, naquilo a que levar. Ninguém está autorizado a comportar-se com outrem de modo diverso de como Deus se comporta com ele: um amor incondicional eternamente presente e aflorando na derradeira fronteira do imo de cada um. É isto que temos de fazer ou a renovação não renova nada, continua a anatematizar, às claras ou às escondidas, seja lá de que maneira for. Só expulsa, não acolhe. Fecha as portas, não as abre.

                   E muitos e muitas, como eu, voltam as costas à entrada, sem mais paciência para aturar tanta estupidez. Estupidez? Tanta traição, tanta mentira, tento ludíbrio... Tanto engano a enganar tanto. E tantos.

 

                   3 – Um dos meus formandos era de Beja, lá professor, mais velho que eu. Ex-padre casado, sem filhos, um docente dos mais queridos da escola, culturalmente atento, e empenhado. Lá das minhas berças há dois em condições idênticas, um catedrático jubilado duma Universidade, outro reformado de locutor da TV.

                   Uma das questões que me ponho é como todos, são milhares e milhares, todos os sacerdotes suspensos cumprem tão obedientemente uma ordem que os violenta, impede de se realizarem, frustra, é cega e surda a qualquer apelo de tudo obrarmos para implementar a plenitude do outro (o outro que eles são dentro da instituição eclesiástica e perante a hierarquia).

                   Andam todos a salvar a Igreja?! Então e Deus, alguém lhe cumpre o chamamento? Aquilo é que é prioritário, não isto? S. Pedro era casado: anátema a S. Pedro?! O desvario dos fanáticos que tomaram conta da Igreja é de tal ordem que não tem limites: eles têm de corrigir Deus, anatematizando o Papa Honório depois da morte; eles têm de corrigir Jesus que ingenuamente se enganou, coitado, na escolha do primeiro Papa, um casado, estava cego...

                   Enquanto lhes não impuserem o freio aos dentes, correrão à desfilada até nos precipitarem a todos no abismo. E andam nisto há milénios e ninguém lhes vai às unhas! Que cegueira, oriunda da sacralização incônscia, nos anda perpetuamente encegueirando? Como trocámos tão rapidamente, tão persistentemente, Deus pelos ídolos que fomos inventando em nome dele, até findarmos por ignorá-lo por inteiro, por trocá-lo? Somos perfeitamente auto-suficientes, não precisamos mais dele para nada!  A monstruosa montanha de instrumentos sagrados que acumulámos, chega e sobra: já cá temos tudo, Deus pode-se reformar, vá lá para o seu sétimo dia descansar, que nós tratamos do resto... É isto?! Como é possível?!

                   O orgulho desmedido dos sacralizadores dogmatistas é tão grande e tão generalizado que se tornou natural e doravante ninguém o vê? Embarcamos todos nele, de coração atrofiado, de intuição morta, de olhos cegos às dores íntimas da humanidade, servindo, muito senhores de nosso nariz, a imensa farmacopeia pretensamente espiritual herdada dos ancestrais mais venerandos, sem pensar duas vezes: é a panaceia mágica, fica tudo resolvido! Vida interior própria? Não! Já temos a dos grandes luminares que transcreveram Deus (olhemos só Jesus!), não precisamos de tal subjectivismo para nada. Senão até pareceria que nem ligamos a Cristo nem a todos os mais, nem sequer à voz divina: vamos lá calar-nos bem caladinhos e toca a cumprir!... E todos nos pomos a aviar receitas! E, claro, o mundo desata a fugir de semelhante disparate.

                   Ninguém repara na traição? Ninguém repara que Deus anda a morrer asfixiado lentamente no íntimo da humanidade e de cada um, à medida que mais e mais nos sujeitamos a semelhante manobra de anulação do espírito em nome dum pretenso espírito outro que seria maior, tão grande que justificaria asfixiá-lo em meu imo definitivamente?

                   Como eu adoraria que aqueles ex-padres se rebelassem todos, em nome da solidariedade, da fraternidade dos caminhos inesperados e criativos do amor! Discretamente. Até secretamente, que não é preciso publicidade nenhuma. Mas que se pusessem a alimentar a comunhão real e vital entre os crentes que o quisessem, a celebrar a fé entre eles e com eles, sem limites de regulamentos, restrições, obstruções administrativas, distinções de poderes e faculdades e assim por diante – tudo fruto humano abusivo, mania de controlar Deus e de monopolizá-lo, à maneira imperial romana, usurpação do itinerário da espiritualidade em cada um, cada lar, cada comunidade, em benefício duma hierarquia monopolista, sedenta de poder e benesses que tudo pelos séculos açambarcou milenarmente e que, hoje em dia, debilitada e doente, ainda assim pouco liga à respectiva missão de unificadora e vela mais pelo resquício de autoridade, incenso e fatuidade com que alimenta a vaidade boba de “Crepúsculo dos Deuses” (filme de 1950, de Billy Wilder – não é só com estrelas de cinema, é com todas em todos os lados...).

                   Os silenciados têm medo de quê? Da Igreja una, santa, católica e apostólica? Mas esta é a Igreja do Corpo Místico de Cristo. A Igreja institucional é o contrário, quantas vezes, de tudo isto. Pior, vem aldrabando secularmente os fiéis crédulos, afirmando-lhes, desde a catequese, crianças indefesas e acríticas, que esta é aquela, descansando, a partir daí, na boa fé das multidões enganadas, para gozar dos louros roubados, sempre imerecidos (sempre aquilo é uma colossal mentira: esta Igreja nunca é o Corpo Místico de Cristo – este é feito da comunhão dos corações humanos, é o amor incarnado).

                   De facto, qualquer que seja a concretização espiritual, é sempre um misto de tradução-traição: nunca o espírito transparece nem se esgota na matéria, esta fica irremediavelmente aquém do que lhe é pedido. Em todo e qualquer domínio, muito mais na instituição eclesiástica, massa anónima de milhões de humanos todos cilindrados pelo aparelho administrativo, onde não há nem pode haver coração nem intuição (só em cada indivíduo). Ora, onde não há coração nem intuição a que ele se abra, não há espiritualidade. Portanto, é isto que é escamoteado de toda a gente. Os fiéis neste aspecto, andam todos ao engano. Como, todavia, acaricia o ego dos hierarcas, ninguém o denuncia.

                   Reparemos. Igreja una quando confabulam para correr com o Papa (João Paulo II tentaram assassiná-lo publicamente e suspeita-se que o conseguiram no que o antecedeu), quando os cristãos atiram dogmas à cabeça uns dos outros, quando as religiões vivem de costas voltadas, quando a humanidade se guerreia e mata permanentemente em tanto lado? Uno é o espírito de Deus no imo de cada um que se concretizar na vida dele em tudo em que lhe é fiel. Aí materializa o respectivo dinamismo amorizador, comungando então com todos os mais e todas as manifestações congéneres, historicizando no cotio a luz da inspiração divina, dando-lhe um corpo que é uno enquanto transparência possível e efectivada do apelo de Deus. Ocorra dentro ou fora da Igreja institucional: esta é que está vocacionada para ser a matriz primordial para a execução daquilo. Se o pratica, é fiel; se não, trai e nada daquilo se realiza nela. Jesus não anda a mando, ela é que tem de obedecer-lhe. Quando o trai, ele sacode o pó das sandálias, como ensinou, e vai pelo mundo: o corpo dele uno é que não pára de crescer, só porque um bando de fariseus fanáticos se apoderou das igrejas e pretende acorrentá-lo a seu arbítrio. O “Grande Inquisidor” (“Os Irmãos Karamasov” - Dostoievski) bem o tenta e é sempre inglório. Quanto mais depressa reconhecermos isto, melhor. Quem remar contra este tipo de maré, aí, sim, constrói o corpo uno da igreja. E sente-se unificado com tudo e todos os que remam em tal rumo, onde quer que seja que se encontrem: dentro da igreja, fora dela ou contra ela. Nada disto importa. A Igreja Una não é a institucional, é a outra. E bem corporizada. Assim a organizada ganhe juízo, para estar à altura da vocação que tem e que tanto trai.

                   Reparemos mais. Igreja santa: ainda é mais notória a discrepância. Santo, só Deus, enquanto inefável, indescritível, inviável de olhar de frente como com Moisés no Sinai e, por conseguinte, inatingível, intocável. Enquanto inspira os corações e eles se lhe permeabilizam, corporificam então e traduzem no mundo o Espírito, numa dimensão que, proveniente de Além, para Além aponta, referenciando nas nossas profundezas últimas o afloramento do mistério que aí nos habita e habita o Universo inteiro. Aqui a Igreja é santa. Só que isto ocorre na Humanidade inteira, dentro e fora de qualquer instituição eclesial que tem por vocação ser o lugar primordial da efectivação disto e de ser-lhe fermento. É-o em concreto? Dalgum, certamente, porventura de muito. Pergunto-me, todavia, que é que tem a ver com isto a sacralização de conceitos, dogmas, teorias, mentalidades, atitudes, comportamentos... É a traição àquilo: daquilo não é, em concreto, nada, só o é o espírito que habita ali. É tentar fazer passar gato por lebre: nada tem a ver uma coisa com a outra: o burro não é o oiro que transporta. E sagrar templos, objectos, moradias, hábitos, até comida, bebida, campos, colheitas... Que delírio é tudo isto?

                   E reduzir o sagrado ao intocável, ao proibido? Que santidade é a disto? Muito tem de caminhar a igreja institucional, pelos tempos fora, para ir podendo mostrar alguma coisa de santa! Deus é que não fica à espera, Jesus é que não pára na festa de mexer com todos. Quem se for tornando santo é que irá erigindo a Igreja Santa: senão, ela não o é de todo, em concreto, apenas na vocação, eventualmente jogada ao lixo, trocada por uma multidão de folclores, bem mais fáceis de cantar e dançar do que é incarnar o Espírito indecifrável, embora sempre discernível na fundura íntima de cada um.

                   E quanto à Igreja Católica, é mesmo universal? Em projecto, é indubitável para todos. Mas é quase hilariante a corruptela em que se degradou. Universal é o Espírito que habita no imo de cada um, é o Deus presente em todas as coisas, senão nem elas existiriam. E universal é o atractivo que sobre tudo e todos exerce e se manifesta em qualquer acto de harmonizar as pessoas, as famílias, as comunidades, os povos, a humanidade inteira. O nosso coração vem de Deus e não descansa enquanto a ele não torna, diria S. Agostinho. Vocação eclesial é dar toda a energia a este ímã polarizador do Infinito, reconhecendo-o, identificando-o, comungando com ele, entregando-se-lhe de alma e coração, a erigir os novos céus e a nova terra, com um povo humano transparente mais e mais a todos os itinerários do amor mútuo. Isto é que iria cumprindo Deus na terra, Deus na humanidade. Ora, em vez de tal, andamos há dois milénios a tentar converter os pagãos e os gentios ao ritual do baptismo, ao cerimonial da missa, às unções da confirmação e extrema-unção, ao genuflexório da confissão e assim por diante. Degradámos a festa da vida real a caminho da paz perpétua entre os humanos, comandada, não pelo ter, mas pelo ser do amor gratuito de partilha incondicional, numa cadeia de ritualismos alheios ao cotio da humanidade. E para ele, na prática, indiferentes.

                   Foi tanto assim (e continua sendo) que S. Francisco Xavier se fatigou a baptizar multidões da Índia até ao Japão, para as salvar, na sua boa fé. Nada mudava, em princípio, na vida de ninguém, apenas os ritos europeus enfiados lá. Ninguém se preocupou em discernir, identificar, apoiar e desenvolver o Deus catolicamente presente a agir naquelas pessoas, povos, culturas, empreendimentos: o que era preciso era transplantar para lá a nossa mentalidade e os nossos rituais. Uma vez cumpridos, estaria tudo salvo! O Emanuel, o Deus-connosco ali, é por completo ignorado (até condenado e mesmo perseguido) em toda aquela humanidade. Inteiramente trocado pelos produtos sacralizados que encegueiraram todos os intervenientes. Trocaram o oiro pelo burro que o transporta e já não viram mais quanto oiro andaria na vida de toda a gente. Ora, este é que contaria na catolicidade da Igreja: a instituição viveu e vive inteiramente alheada aqui da vocação própria. Não reconhece Deus em lado nenhum, apenas os sinais dela que o apontam e doravante o substituem. S. Paulo pregou no altar do deus desconhecido, revelando-o; aqui entre nós ele mantém-se ignoto, ninguém se preocupa por reconhecê-lo. Nem imaginam que tal é a tarefa e não a de exportar ritualismos, teologias, praxes, mentalidades... Até celebram missa com pão e vinho para esquimós, quando ali só há peixe e água: sabem lá o que aquilo é! Que grande sacramento!...

                   Porque é que os Apóstolos tinham de principiar pela comunidade judaica, a pregar na sinagoga? Não era para lhes dizer que estavam todos errados, antes que estavam todos certos e que tudo a que aspiravam, finalmente, se cumpria. É o mesmo no resto da humanidade: a faúlha de Deus em cada um, em cada sonho, em cada utopia, encontra, finalmente, um trilho de realização rumo à plenitude, pode trepar ao infinito: Jesus abriu a porta da ressurreição. O atractivo dele habita no coração de cada íntimo, o mapa do tesoiro é a vida dele, todos o podem seguir e encontrá-lo, apropriando-se do céu, muito para além do que teriam imaginado. Infinitamente mais, infinitamente melhor.

                   Ninguém se sente convidado a repor a carruagem no trilho? Andamos tão descarrilados que já nem o magnetismo acolhemos do itinerário fulgurante? E os marginalizados que o sentem, de que é que estão à espera?...

                   Finalmente, a Igreja Apostólica. Coitados dos Apóstolos! Ali de mãos vazias, sem nenhum fio de meada, habituados a trocar Iavé pelo riquíssimo ritualismo da Lei Mosaica, que admira que o tenham continuado, à falta de alternativa? Mas aí vieram Paulo e Barnabé e contaram como Deus se manifestava à margem de tudo aquilo, em toda a gente, nem à circuncisão (o maior dos rituais, a incarnação da aliança humano-divina) ele andava ligando. E Pedro compreendeu: se Deus o faz, quem somos nós para tolher Deus? Claro que a seguir ninguém lhe ligou coisa nenhuma. E ele, arrastado pelo hábito e pelo ambiente, toca de sujeitar-se ao ritualismo de não se misturar com os gentios, mal os circuncisos lhe aparecem em Antioquia. Paulo tem de o enfrentar abertamente, repreendendo-o de tal atitude (Gál. 2, 11-16). Ninguém é justificado pelas obras da lei (mosaica, cristã, muçulmana, budista...), nenhum ritual salva ninguém, apenas o amor em concreto vivido, na esteira de Jesus que amou até à morte: isto o levou à ressurreição, isto nos conduz para lá. Mais nada conta. Nem é relevante, senão para tal fito.

                   Ora, assim como Pedro recaiu no desvio, como as comunidades continuaram com a mentalidade vetusta, assim ocorreu depois dele e de todas elas: a salvação pelas obras rituais, por cumprimentos litúrgicos continuam como aposta generalizada, activamente cultivada pela organização eclesiástica: são estes (e apenas estes) os “cristãos praticantes”. Nas demais religiões, todavia, a predominância do desvio é igual. O altar e quantos o rodeiam colocam-se irremediavelmente ao centro. A vida real fica fora de portas, quantas vezes, além de postergada, vilipendiada: é o reino da carne contra o do espírito, o do mundo contra o sobrenatural. E a espiritualidade é para ser vivida fora da matéria, fora deste corpo de morte. E temos a mais inteira alienação instalada: o amor a fermentar a massa humana já não é requerido para nada.”Basta” – como ria um Marista meu colega em Teologia – “meu Senhor Jesus Cristinho no sacrário da porta entreaberta... Ai que coisa tão fofinha!”

                   Igreja Apostólica, aonde? Claro que há quem sinta o apelo do ressuscitado e trate de harmonizar a humanidade, desde o patim de seu lar ao areópago da ONU, da reivindicação de justiça social à dos direitos humanos, da sopa dos pobres à destruição da escravatura... Por aqui, sim, anda Jesus caminhando, anda o Espírito festejando a alegria das vitórias atingidas. Nenhuma igreja, porém, se reconhece nisto, nenhuma religião: todas martelam o centro na mensagem herdada, confirmada, a seguir, ritualmente e aí selada para a eternidade. Ponto final.

                   Ignorá-lo é ser ingénuo. A Igreja apostólica é para ser construída perenemente, até à consumação dos séculos. Não é uma realidade consumada, é um programa inesgotável, todos os dias a requerer renovação, uma sementeira pela história além, incansável e inesgotável.

                   E, em quanto se realiza, cruza todas as fés e crenças: Deus não pede autorização para amar agindo como ama, Jesus não se deixa tolher pela nossa inépcia. A Igreja Apostólica, enquanto comunhão militante em prol de toda a humanidade, viola todas as fronteiras (religiosas, culturais, políticas...), é o Espírito em acto. A organização eclesiástica só tem de a reconhecer, acolher, apoiar e promover, onde quer que a encontre: aí então poderá celebrar-lhe o epíteto da mensagem que a identifica como corpo de Deus. Fora disso, alheia a isso ou contra isso, então ainda não entendeu nada. Continua uma vocação vazia, toca a oco.

                   Quem abre os olhos e os vem abrir aos demais? Que paralíticos, abandonados à berma dos trilhos da vida, decidem curar-se e saltar para o meio do caminho, correndo a aventura da humanidade em gestação?

                  

                   4 – A criadora do movimento internacional “Nos Também Somos Igreja” foi excomungada pelo Papa Francisco. Celebrava missas no lar sem sacerdote. Reivindicava trato igual entre homens e mulheres dentro da Igreja Católica, como já vem ocorrendo, faz alguns anos, na Igreja Anglicana, onde até um bispo é mulher e muitas são sacerdotizas ordenadas, reconhecidas e normalizadas.

                   Num dos cursos de meditação que integrei, participou um mediático pastor evangélico da TV. Embora mais numa atitude de juiz que de elemento, acabou louvando a autenticidade da experiência, a espiritualidade compartilhada, o bom momento construtivo, consciencializador de que aqueles dias constaram. Ora, os meditadores integram-se genericamente no movimento informal de respiritualização actual da humanidade designado por Nova Era. Vem esta designação dos ancestrais Signos do Zodíaco, ligados ao ciclo das eras, segundo os quais estaremos, por estes anos, em trânsito duma para outra: de Peixes para Aquário, a partir de 2012. É um mero fenómeno astronómico decorrente da inclinação do eixo da Terra e da circulação imaginária que faz a sua projecção através das constelações, até voltar ao ponto de partida, o que demora um pouco mais de 25.000 anos a completar-se. Nenhum astrónomo reconhece qualquer relevância disto nos destinos humanos, ao contrário do Sol e da Lua, evidentemente. Os antigos, porém, suspeitaram sempre de algum efeito escondido, como no das posições diariamente a variar dos planetas, daí o milenar registo e transmissão das constantes que foram logrando identificar. Os crentes disto continuam hoje em dia, embora entre cientistas (da área) reduzindo tudo a divertimento e mero passatempo. Os meditadores, porém, levam-no a sério, que mais não seja para proporem mudanças pertinentes de orientação de vida e de prioridades de valores. Ora, mesmo que aquilo não importe para nada, isto importa, obviamente. E é deveras relevante, com apelos a conversões altamente significativas para os destinos individuais e da humanidade.

                   Esta conversa vem a propósito do seguinte: aqui, neste segundo caso, não há excomunhões nem são exequíveis porque não há organização nenhuma, é tudo informal, a diversidade varia indefinidamente, as tendências e dominâncias multiplicam-se, sem juiz em parte alguma que não o acolhimento popular e do mercado. Apenas as consciências e as fomes de cada um operam, num forum integralmente livre, de cobertura mundial. É muito idêntico ao movimento sócio-cultural do Renascimento ou, mais próximo, ao do Romantismo, ou, mais antigo, ao “século de oiro” de Péricles, na Atenas clássica. Ninguém manda, ninguém programa, ninguém lidera: há sensibilidades comuns que compartilham iniciativas, empreendimentos, investigações, testemunhos, vivências, criações nas áreas mais variadas... Não atacam nada porque atacam tudo: a mentalidade generalizada dominante, rasgando-lhe frestas para uma nova paisagem de mundo. É com isto que o fermentam. E desta maneira, não da outra.

                   Há já vários decénios que é conhecida a chamada “igreja subterrânea”, mormente na América (não a chinesa clandestina). É o mesmo que o movimento “Nós Também Somos Igreja” com esta diferença apenas: recusam, em norma, a bravata do protagonismo prosélito, do antagonismo explícito e de fornecer alvos. Vivem o cristianismo (mesmo católico) de muitas outras maneiras que não a rotina tradicionalista robotizada e sem qualquer alma que não fingida. Têm o eco que tiverem e ponto final. Não se escondem, estão abertos ao mundo e comunicam, mas não se impõem a ninguém nem a nenhuma instituição. Quando o fruto apodrecer de maduro, cairá por ele, não precisamos de varejá-lo. Entre nós também há disto, não precisa de manifestações de rua. O que conta é a vida real, também a da fé. É discreto como ela.

                   De facto, quando há um Galileu a propor uma revolução, é facílimo aos integristas de serviço apontarem ao alvo e abaterem-no com excomunhão e pena de morte. Trezentos anos depois, os herdeiros deles levantam-lhe sem problemas a excomunhão: está bem morto e enterrado, até fazem de gente arejada, moderna. Isto permite-lhes excomungar então impunemente qualquer Galileu actual. E o pesadelo nunca mais finda...

                   Claro que não faço ideia nenhuma se daqui a três séculos alguém irá levantar a excomunhão da mentora extremada (para a dominante mentalidade católica hodierna) do “Nós Também Somos Igreja”. Agora que ninguém vê como contraditar (sem ir contra o Espírito, a intuição íntima, o coração e o bom senso da equidade) a reivindicação da igualdade entre homem e mulher em direitos, liberdades, garantias, possibilidades, oportunidades, campos de realização pessoal... – disto não vejo como duvidar. Daqui a centúrias irão manter-se as proibições actuais? Não creio que ocorra em campo nenhum, também no dos tradicionalismos religiosos. Tudo são convenções humanas que infernizam vidas: isto, em nome do amor, mata-as a todas a prazo. Se os anglicanos o viram, não é mesmo de ponderar? Também aqui as tradições são feitas para as pessoas, não as pessoas para as tradições.

                   Os dogmatistas sacralizadores, os zelotas integristas não param, mesmo perante um movimento informal, uma tendência cultural difusa, um apuramento gradual e vago da mentalidade colectiva, da sensibilidade humana. Eles andam por todo o lado militantemente, fanaticamente a condenar a Nova Era como condenaram e perseguem os teólogos do Vaticano II e quantos mais vão renascendo, impelidos pelo Espírito, a dar conta da germinação de vida viva pela humanidade além. Só que, felizmente, aqueles ficam desnorteados e os tiros perdem-se-lhes no escuro do anonimato quando é tudo difuso. Coitados, julgam que andam empreendendo um grande trabalho! E sacrificam tudo aos seus ídolos, a principiar pelas pessoas, sem lograrem ver que todos os deuses deles são fátuas criaturas humanas, mais nada. E que, ao invés, temos o dever de as dominar e de nos servirmos delas em prol do povo de Deus, todos os humanos (Gén. I). Mesmo a mais sacra das tradições é um ídolo: perante Deus, intuído na consciência íntima auscultando o coração, se aquele se lhe opuser, terá de cair. Ninguém pode ir contra isto em si, senão condenar-se-á irremediavelmente. Quando é que o dogmatista, o sacralizador, o zelota hodierno, o integrista, o fariseu, o ritualista... – escolherão ouvir o coração e lê-lo com toda a consciência de que forem capazes?

                   O pior problema é que cada um de nós os tem a todos dentro de si próprio. Expurgar os outros é fácil, agora expurgar-se a si...

                   É uma caminhada de depuração interminável, por mim falo. Não posso mesmo atirar a primeira pedra... Quando olho para trás para o que já fui, meu Deus!

 

                   5 – Quando voltei a Coimbra, anos depois do nosso curso, confirmei um apuramento surpreendente no movimento académico. Numa manifestação na Via Latina, com pouca gente, uma líder apelava:

                   - Que ninguém faça provocações, nada de insultar, de agredir, seja o que for! Eles não estão à espera doutra coisa para carregar em cima da gente. Isso é dar-lhes um pretexto. Que ninguém caia na asneira!

                   Lembrei-me disto agora: é mesmo assim que ocorre com o farisaísmo contemporâneo. Bem pode um Papa pretender reformar quanto de podre encontrar pelo caminho, está cercado de dedos apontando quanto pretexto houver para não mudar, não varrer a lixeira sagrada e, ao invés, mondar cada renovo que germinar nas leiras do mundo.

                   É que o poder nas igrejas, nas sinagogas, nas mesquitas, nos mosteiros extremo-orientais... – está na mão de sacralizadores dogmatizados em superabundância tal que mal logramos discernir, lá pelo meio, alguma pontinha de espiritualidade viva, alimentada pela raiz. Abalar-lhes o tradicionalismo sacralizado é deitar-lhes o mundo abaixo e, com este, o outro mundo. É a desgraça completa! No geral não estarão de má fé, mas o efeito é o mesmo, aliás, é mais forte ainda: nem sequer terão a travá-los qualquer complexo de culpa, crêem piamente que têm toda a razão. Pegarão nas armas ao dispor e desatarão a dar cabo das pessoas, a estiolar a humanidade. E não há maneira de verem que é isto que demonstra que andam redondamente errados: pelo fruto se conhece a árvore. Não é por aí que sazonamos a seara humana, damos cabo dela.

                   Por conseguinte, nada de mais pretextos para mais perseguições.

                   Mas isto não é deixar tudo indefinidamente como está? Não, não é. Há um mecanismo inesperado, ignorado das massas (e da maioria dos peritos), que não depende de nós e nos polariza, mesmo involuntariamente, rumo ao mais autêntico, ao melhor, ao que leva a progredir.

                   Não teria reparado nisto, não fora a tua Natércia comentar-me de passagem, há meses, a pretexto deste problema:

                   - Pouco importa, não temos de nos preocupar. É só esperar pelo centésimo macaco. Um dia qualquer ocorre e pronto, não há mais volta a dar.

                   A conversa derivou, mas ficou-me esta mensagem a repercutir cá dentro.

                   É uma descoberta surpreendente dos etologistas. Uma equipa pôs-se a alimentar um bando de macacos, numa ilha inabitada do Pacífico, com batata doce atirada à praia, para observar-lhes o comportamento em ambiente natural. Certo dia, repararam que uma macaca deu conta de que a batata lavada na água do mar sabia melhor. Nos dias e semanas seguintes ensinou-o aos filhos dela e todos passaram a lavá-las. A seguir, ensinaram outros filhotes e respectivas mães. Os últimos a aprenderem foram os machos: resistiram a ceder. O mais inesperado, porém, viria a seguir. Quando os investigadores cuidavam que isto iria continuar gradualmente como sempre até ali, não. Num determinado dia, atingida já uma grande percentagem de animais que tinham mudado, inesperadamente mudaram repentinamente todos os restantes. Um salto qualitativo súbito que atingiu o grupo inteiro. Não terminou por aqui, todavia, a grande surpresa. É que eles alimentavam também outros grupos de macacos em ilhas vizinhas idênticas, onde o fenómeno não ocorrera. Como não havia contactos entre os símios, não aguardavam nada. Para espanto de todos, a partir do dia em que ocorreu a generalização do comportamento no grupo pioneiro, todos os outros das ilhas próximas, apesar do isolamento mútuo, passaram a lavar as batatas instantaneamente, sem passarem pela aprendizagem gradual. Houve uma conversão maciça.

                   É isto que explica a estranha convergência da cultura megalítica pré-histórica espalhada pelo mundo (quando os nossos avoengos nem sabiam da existência dos continentes por onde a humanidade se espalhava), o levantamento concomitante de pirâmides do Egipto à América do Sul e assim por diante. Intriga gerações de investigadores e o levantamento da ponta do véu apenas acendeu a primeira luz. De qualquer modo, é o bastante para concluirmos com a equipa de etólogos: ao centésimo macaco, ocorre um salto qualitativo que arrasta todos os mais instantaneamente para o novo padrão comportamental, irradiando para todos os grupos em redor.

                   Ora, é o que ocorrerá na Igreja, nas confissões, nas religiões... É só ir fermentando a massa, ir espalhando a semente pelos baldios. Atingido o ponto crítico, tudo virará então repentinamente para o outro lado. Apenas, portanto, é de manter a confiança, persistir na esperança e aprofundar infatigavelmente a autenticidade de nossa vivência espiritual, cada um atento à fundura de si próprio, à dos íntimos, à da família, dos indivíduos e grupos da comunidade, do país, da região, do mundo inteiro... E corresponder, agindo em conformidade com o que for discernindo em todos os planos da vida com que se defronte.

                   Para mim, isto é tremendamente calmante e pacificador. Dá-me a serenidade com que vi a Natércia apontar-mo, imperturbável. À semelhança de S. Pedro, ao admoestar os impacientes porque a ressurreição nunca mais ocorria, alerto-me (e alerto os demais) para o facto de que um dia, para Deus, são mais que os cinco biliões de anos que demorará até o Sol se expandir numa estrela gigante vermelha. Não há, portanto, pressa nenhuma. Inadiável é apenas a espiritualidade germinar cada vez mais autêntica. O resto é apenas o infinito calendário do Infinito.

 

                   Fico-me por aqui. Se calhar limitei-me a juntar mais a minha mancheia de lixo à lixeira planetária. Sei lá! É, todavia, o que se me antolha neste momento. Amanhã que direi eu? Não poderei adivinhar. Olhando para trás, que grande produtora de lixo outrora fui! E sem o suspeitar sequer nunca. Portanto, no porvir, decerto discernirei trilhos que hoje nem imagino que existam.

                   Se isto não fizer sentido nem te der gozo, lixo com tudo! Não tenhas escrúpulos. A mim bastou-me o gozo inebriante de passear por tanta paisagem inesperada. Bem hajas, mais a tua família, por tanta alegria.

                   O abraço da Sofia.

 

 

                   Chão de Vivos, 16 de Março de 2019

 

                   Caro Luís:

                   Agora é que me deixaste embatucada! Sei lá bem por onde a Igreja (e as religiões todas) andariam se se reconvertessem e refundassem nos termos que a espiritualidade íntima requer! Quem é que pode imaginar o que seria uma Humanidade autêntica, desalienada de vez? Tens a noção de que isto está para além de todos os limites, não tens?

                   Ainda bem que ressalvas que não pretendes falar de prospectiva, nem daquela que aponta para onde estamos a ir, nem da que traça o porvir que desejaríamos. Por aqui é que eu nunca me meteria, tenho bem a noção de que só diria asneiras.

                   Acredito que até poderia ser bem fecundo, como a “Utopia” de Thomas More que, tantos séculos corridos, continua a inspirar todo o ideário duma humanidade equitativa, das social-democracias aos socialismos e comunismos... E a ser usado para bem e para mal, dos maiores sonhos aos piores pesadelos, como tudo o que é proposto ao livre arbítrio dos “condenados à liberdade” que somos (Sartre). Mas tal nem me passaria pela cabeça.

                   Acolho, porém, o teu desafio. Nos meus termos, claro: é como eu sinto que deveria ordenar a minha vida, com que prioridades, em que campos, partilhando que contextos. O que logo implica que qualquer outro deverá ir por outro caminho, o dele próprio evidentemente, nos mesmos termos de significância para ele mesmo que os meus para mim. Com complementaridades, com contrastes, com contradições, eventualmente. E com os perenes desafios da mútua tolerância, da mútua relativização, da interminável procura de novas sínteses e compatibilizações.

                   Com um fundo comum, todavia, dou-me conta logo à partida: é que se atentarmos todos no aguilhão íntimo e lhe tentarmos ir sendo fiéis, procurando discernir ao que apela e respondendo aos vislumbres que formos tendo em conformidade, então haverá uma reviravolta nunca vista. Deixaremos de andar às arrecuas da história, a travar o tempo, a tentar engarrafá-lo em receitas anacrónicas, a forçar a humanidade a marcar passo indefinidamente. Em lugar disto, colocar-nos-emos na cabeça da corrida, a puxar por toda a gente, em qualquer que seja o domínio, de mãos dadas com quantos operem de igual modo, venham de que horizonte vierem. Este será o crivo que priorizará os laços e os afectos, não o actual clubismo da pertinência a esta ou aquela religião, igreja, instituição... Isto não teria então nenhum relevo particular. É meramente instrumental, põe-se de lado quando não serve.

                   Deixaríamos de ser os crónicos conservadores extremados, sempre aliados aos poderosos de momento, invulneráveis a qualquer apelo interior ou exterior, cegos a qualquer mudança, repudiando qualquer novidade como fruto de corrupção, atentatório do bem que é sempre a ordem estabelecida.

                   Passaríamos a zelar apenas por quanto humanizasse os indivíduos, as comunidades, as instituições, os países, a cultura, a humanidade inteira... Este é o apelo íntimo que todos temos bem fundo cá dentro de nós: isto é o espírito a mexer no corpo, a tentar que ele o incarne e o semeie mundo fora em todos os campos da vida. Andaríamos todos a empreender isso, portanto. Às avessas, pois, do que andamos hoje, predominantemente, pelo mundo inteiro operando.

                   Tudo isto, claro, uma vez descidos definitivamente do Monte Tabor e da colina da Ascensão. Evidentemente que, sem isso, nada feito. A traição continuará indefinidamente.  Milenarmente.

 

                   1 – Al Gore, o Prémio Nobel da paz da militância pela preservação do clima, afirmou há semanas, no simpósio em que participou entre nós, que a Humanidade quadruplicou no último século, o que, no entender dele, não seria obrigatoriamente mau, embora esgote energias, recursos, matérias-primas e polua num crescendo explosivo, cada vez mais incontrolável.

                   O panorama planetário é de tal ordem que António Guterres, o português Secretário-Geral da ONU, avisou o ano transacto que estamos a perder a batalha, pesem embora todas as medidas já mundialmente tomadas a tentar travar e inflectir a corrida para o cataclismo.

                   Já o Clube de Roma (“Os Limites do Crescimento”, 1972) prevenira que todas as restrições impostas pelos recursos planetários (petróleo, atmosfera, água, matérias-primas...) seriam geríveis e superáveis, excepto uma: a super-população humana. A explosão demográfica incontrolada levaria fatalmente ao esgotamento da Terra e, obviamente, ao risco da extinção humana.

                   Não é, aliás, novidade nenhuma: a população aborígene da Ilha da Páscoa extinguiu-se por ter dado cabo dos meios de sobrevivência; o homem de Cro-Magnon como o de Neanderthal extinguiram-se por não terem logrado adaptar-se às mudanças ambientais, superados pelo Homo Sapiens; o mesmo ocorreu com o gigante e o anão javaneses... Quanto mais os arqueólogos desvendam, mais fileiras humanas descobrimos que ficaram pelo caminho. Terá chegado a nossa vez? É que, atingidos determinados limiares, a progressão catastrófica devém irreversível: é o que verificamos todos os dias com as trinta e cinco espécies vivas que, em média, diariamente já se estão extinguindo por efeito da alteração ecológica que a nossa pegada está provocando no planeta. Só para termos uma ideia do que isto é, a extinção dos dinossáurios, após a queda do meteorito no Golfo do México, demorou cem mil anos. Neste período de tempo, calcularam os professores num dos meus cursos de formação, a manter-se o actual ritmo, extinguir-se-á a vida inteira na Terra. Não apenas nós, tudo.

                   Brian Weiss (“Muitas Vidas, uma só Alma”), tratando, enquanto psiquiatra, os doentes dele com a técnica de sofrologia prospectiva (hipnose não centrada em vidas passadas mas nas do porvir) encontrou uma curiosa convergência nos depoimentos: daqui a quatrocentos anos a humanidade estará reduzida a setecentos milhões de indivíduos, mas vivendo em harmonia com a natureza ambiente. Com os recursos renováveis que o planeta lhes logra regularmente fornecer. E parece que não haverá mais para mais ninguém.

                   Ora, nós já ultrapassámos os sete mil milhões de habitantes, dez vezes aquele limiar. E continua a aumentar a explosão demográfica...

                   De acordo com esta abordagem, a humanidade não se extinguirá. Contudo, a bem ou a mal, ficará reduzida à dimensão sustentável: não há, na indicação dos quatro séculos, nenhuma informação de como isto ocorrerá, aí a escuridão é total, nenhum paciente o discerne. O nosso livre arbítrio tem o campo inteiro em aberto, nós é que iremos decidir o caminho na noite multissecular. Sabendo, porém, que iremos lá chegar, queiramo-lo ou não, que a Terra, como ser vivo, imporá a lei dela. Podemos ir em harmonia ou em ruptura, em alegria ou em tragédia. O itinerário é de nossa escolha.

 

                   2 – Sabes o que mais me admira em toda a sequência? É Al Gore afirmar que a explosão demográfica não é obrigatoriamente má. Mais: dei-me ao trabalho de ir verificando as intervenções de todas as lideranças que mundo fora lutam pela ecologia (e são incontáveis): acreditas que nem uma para amostra encontrei que levante o problema da super-população? A demografia humana é território tabu!

                   Todos parecem acreditar que os pensos rápidos das receitazinhas próprias e alheias irão dar conta do recado. Por mais que os factos, planeta além, gritantemente provem o falhanço completo disto. Continuam a justificar ingenuamente que é porque ainda não lograram mobilizar toda a gente e redobram generosamente de esforços. São crianças a esvaziar o mar com uma concha. E a gritar inocentemente por todo o lado: “tragam mais gente e mais conchas!”  Recusam reparar no tamanho do oceano. Como se fosse indiferente o impacto provir de setecentos milhões ou de sete biliões ou sei lá de quantos mais... Como é possível?

                   Para agravar tudo isto, os cálculos feitos da necessidade de recursos para desenvolver todos os povos até ao nível do primeiro mundo, o dos países industrializados, resultam nisto: precisaríamos de três planetas Terra para dar conta do recado! Estamos, pois, inteiramente encurralados.

                   É que, onde a explosão demográfica parou e tende a regredir ou estabilizar é neste sector, incluindo o nosso país. Poderíamos resolver o problema com um programa mundial de erradicação do terceiro-mundismo, um plano Marshal planetário para desenvolver economicamente todos os continentes, como ocorreu na Europa no pós II Guerra Mundial. Ora, a Terra apenas dispõe dum terço dos recursos requeridos para isto, no modelo actual da economia global. Seria, porém, a forma espontânea de começar a abrir caminho, sem violência, crime nem arbitrariedade, sem algum cataclismo planetário maciço que extermine nove décimos da humanidade presente. O desenvolvimento pararia a explosão demográfica mas a porta está trancada.

                   Este, porém, é o único caminho viável até agora encontrado, sem graves lesões humanas. Sem trair o itinerário rumo à plenitude de cada um e de todos. É que já outros foram tentados e findaram em rotundo fracasso.

                   A China é o exemplo mais completo das duas vias, a do desenvolvimento e a da imposição pela força. Nos tempos da ditadura maoísta tentou executar a lei do filho único, exterminando os filhos supervenientes e perseguindo os respectivos progenitores. Não valeu de nada, a explosão demográfica continuou imparável até atingir (e ultrapassar) o actual bilião e trezentos milhões de habitantes, o país mais populoso do mundo. Posto de lado o maoísmo e abrindo-se à economia de mercado, desatou a desenvolver-se explosivamente, industrializando-se e ocupando o segundo lugar das economias mundiais, a caminho do primeiro, a breve trecho. Ora, imediatamente parou a expansão demográfica, caindo abruptamente na classe dos altos quadros, gestores e tecnocratas, bem como dos novos magnatas de todos os domínios das emergentes redes económicas. Isto levou a que a lei do filho único fosse abolida. Curiosamente, num clima meio alarmista: a China estaria a perder população, o que lhe ameaçaria o futuro!

                   Paralelamente, o Japão, muito antes industrializado, deu por ele nestes anos a perder milhão e meio de habitantes anualmente, dentre os quase seiscentos milhões que sobrepovoam o arquipélago nipónico. Também aqui com estranhos alarmes: requerem medidas para travar a queda demográfica, não vá o Japão perder gradualmente o respectivo lugar no mundo!

                    Em igual trilho vão a Índia, os Tigres Asiáticos (Coreia do Sul, Taiwan, Tailândia, Malásia e Singapura) e, a entrar nele, anda a Indonésia.

                   À roda de dois terços da humanidade actual, a região do planeta mais densamente povoada.

                   Todos celebram a vitória económica, todos deploram a pretensa derrota demográfica. Não é estranho? Como é que andam tão alheios ao problema de fundo?

                   Curiosamente, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) foi tão sensível ao desafio que optou por uma solução radical: vasectomia proposta (imposta?) a todos os pastores! Há meses ouvi o depoimento choroso dum ex-pastor a lamentar a asneira de se ter deixado castrar e de ter tão mal encaminhado quem do apoio dele ali se socorreu. Pois. A imposição não resulta, nem sequer disfarçada. Para além de aqui, uma vez mais, isto ser montar a tenda no Monte Tabor: não é fermentar um caminho libertador no mundo cá de baixo, é tentar erigir um mundo paralelo lá nas capelinhas da igreja, repudiando todos estes ratos reprodutores que enxameiam o planeta. O desvio renasce permanentemente de todas as cinzas. A intenção, não há dúvida, é boa. O caminho, porém...

                   Isto leva-me à pergunta do que andará por trás de tudo. Como é que Al Gore, os movimentos ecologistas, os países industrializados, os recém-desenvolvidos, todos tornaram intocável o questionamento da explosão demográfica? Como é que é um dogma ter muita população? Como é que isto prestigia e é motivo de orgulho, mesmo entre povos? Anda tudo distraído?

                   Também por cá tal entendimento está inteiramente enraizado. Há dias ouvi na televisão um responsável político afirmar muito convicto: “a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa espero que chegue perto dos trezentos milhões de habitantes bem antes do fim deste século. Isto dá-nos um grande peso internacionalmente.” E uma líder partidária afirmava concomitantemente que urge pôr fim à queda demográfica com uma série de medidas de protecção às famílias numerosas.

                   Diminuir a população é, portanto, pouco menos que uma tragédia. É verdade que se levantam sempre os velhos problemas: como garantir a segurança social com uma demografia de idosos e, em paralelo, como segurar um serviço nacional de saúde cada vez mais superlotado de anciãos enfermos. Só que uma coisa não tem nada a ver com a outra, são problemas como os mais desafios que têm de solucionar-se ao correr do caminho. A vida é feita de confrontos, estes não diferem dos demais. Enfrentam-se e solucionam-se com os meios disponíveis. Não implicam nem requerem obrigatoriamente nenhuma explosão demográfica, nem sequer a manutenção da população, muito menos se isto for, como é, suicidário a prazo.

                   Donde vem, todavia, aquela permanente conotação negativa? Como é que toda a gente, em todo o mundo, considera um mal que a população não cresça e, pior, que diminua? Como é que isto entrou na cultura mundial e é acolhido acriticamente de forma tão generalizada? Como é que se tornou intocável, mesmo com o risco presente de nos aniquilar?

 

                   3 – Claro que houve razões de peso para tal, basta reparar nas estirpes humanas extintas através dos milénios, o que confirma o risco permanente que durante três milhões de anos todos os grupos da espécie sofreram. Ora estes, quanto maiores, melhor se defendiam, mais provável era alguém sobreviver e garantir laços e afectos e solidariedades. Quando, há dez mil anos, a revolução agrária ocorreu e se foi generalizando, quanto mais braços disponíveis, mais agricultura e mais rebanhos, melhores e mais recursos para não morrerem. Daí, quanto maiores as famílias, mais riqueza, melhor qualidade de vida.

                   Por outro lado, até ao séc. XIX nem sequer se contavam os filhos menores de três anos de idade, tal era a mortalidade materno-infantil: nos primeiros cinco anos de vida morriam quase todos os recém-nascidos. Ainda em meados do século transacto faleciam no parto 7% das mães portuguesas. Então as sujeitas a cesarianas finavam-se ainda quase todas na primeira vez e praticamente sem sobreviventes à segunda. Isto levava a uma enorme pressão sobre as parturientes bem sucedidas para desmultiplicarem o mais possível as gravidezes.

                   Não é preciso ir mais longe: em minha casa, a minha mãe teve nove filhos e todos sobrevivemos. Um dos meus colegas da Primária, duma das famílias mais pobres da aldeia, era um de catorze irmãos, todos vivendo do campo arrendado, do gado doméstico e da ajuda dos vizinhos. Ainda há tempos me confessava que andavam sempre famintos, em miúdos. Pudera!

                   Ante um panorama destes, os maiores responsáveis por garantir as tradições e os valores de que dependia a sobrevivência do grupo, da tribo, da etnia, do povo, que foram sempre predominantemente os feiticeiros, os xamãs, os gurus, os druídas, enfim, os sacerdotes e curandeiros transmitiram imemorialmente a noção de que o ideal é a grande família, de três a quatro gerações. A Bíblia sela-o confirmando que isso tem a bênção de Deus (Job 10, 12-16). Todas as religiões e confissões nela ancoradas repetem-no há milénios. E as demais seguem-lhes o exemplo, herdando aquela imemorial e comum tradição que recobre o planeta.

                   É um caso gritante em que a repetição rotineira, automática e acrítica das boas receitas de antanho, por mais veneráveis e por mais eficazes que tenham provado ser milenarmente, não respeita espiritualidade nenhuma, é uma alienação perigosa que até poderá dar cabo de nós. Temos de verificar se agora e aqui farão sentido e em que termos, até onde nos tocam intimamente, a partir de onde nos traem os sonhos e os projectos. Doutro modo somos alheios a elas, reduzimo-nos a meros instrumentos, em vez de sujeitos responsáveis e empreendedores dos caminhos que trilharmos. Ora, aqui a reviravolta terá de ir para os antípodas. Se quisermos ser fiéis ao Espírito.

                   Até lá, todas as religiões são responsáveis pelo cultivo e manutenção do ideal da grande família como benquisto por Deus, sendo que a chancela divina tende a escravizar o livre arbítrio de cada um, obscurecendo-lhe o discernimento e empurrando-o no sentido de lhe dar cumprimento, pese embora isto aumentar o risco de colapso colectivo, doravante, da humanidade. E, claro, este rumo coloca entre parêntesis a vocação particular de cada um, sobrepondo-lhe o fito comunitário, nem que tal implique a frustração mais completa das potencialidades individuais, cuja realização pode sempre ser incompatível com aquilo. É assim, porém, há milhões de anos. Todavia, a sobrevivência é a motivação mais radical em todos nós, condição basilar para viabilizar todas as demais (os mortos não podem visar nenhuma...), pelo que se entende muito bem que isto tenha imemorialmente operado assim (“pirâmide das motivações”, de Maslow).

                   Doravante, porém, continua a fazer algum sentido? Que é que anda a ocorrer para terem mudado os termos da equação?

 

                   4 – A partir da industrialização (séc. XVIII) que continua lentamente a alastrar pelo mundo hoje em dia ainda, a agricultura mecanizou-se gradualmente. Ter mais filhos passou a ter um significado contrário ao de antanho: não aumentam os recursos, diminuem-nos com os gastos que requerem de os alimentar, vestir, curar, educar... Aumentam as responsabilidades e diminuem a qualidade material de vida, até arriscarem a miséria em famílias de menores recursos. Na fábrica e no campo mecanizado isto empurra para o lar sem filhos ou com o menor número tolerável. A família torna-se celular e não em árvore de várias gerações, muito menos debaixo do mesmo tecto.

                   Os casais privilegiam a qualidade de vida e já não a quantidade, uma vez que doravante é uma permanente ameaça àquela.

                   Então e o risco de sobrevivência que moldou a prioridade de valores até aqui? De facto, no séc. XVIII, a humanidade crescera lentamente e já não estava no limiar de sobrevivência, como nos tempos da Peste Negra (séc. XIV), por exemplo, em que ficámos reduzidos, calcula-se, a um terço da população, no nosso território. Quando desencadeámos a epopeia dos Descobrimentos estimam que éramos à volta de um milhão e meio de portugueses, ainda a recuperar da derrocada demográfica daquela epidemia, entretanto finda.

                   Não havia, porém, o risco dum retorno? De facto, entre nós como no resto do mundo, as epidemias eram regulares, mormente as de cólera que levavam os nobres e a realeza a refugiarem-se em áreas e terras mais invulneráveis, para lhes escaparem. Por cá, durante séculos, a fuga era para o Alandroal, a meio do Alentejo, onde os surtos pestíferos nunca chegavam, ninguém sabia porquê. A família real e as da nobreza de mais recursos, todos montaram casa de refúgio ali, alastrando o povoado tanto que acabaram por destruir a floresta de aloendros que deu nome à vila e que hoje sabemos que era o filtro natural do ar que protegia das epidemias: os eflúvios deste arbusto matam micróbios e bactérias de todo o tipo na aragem que por ele correr. Actualmente, derrubada a floresta, não protegeria, portanto, de nada.

                   Não foi, todavia, preciso. No séc. XIX descobrem-se e multiplicam-se as vacinas que gradualmente controlam e irradicam as doenças mortais infantis (Louis Pasteur). No séc. XX descobrem-se e multiplicam-se os antibióticos capazes de debelar todo o tipo de infecções e respectiva mortalidade (a penicilina, o primeiro, descoberta por Alexander Fleming em 1926). Concomitantemente, a tecnologia das cirurgias avança de tal modo que, hoje em dia, qualquer cesariana é corriqueira e podem-se multiplicar sem risco de maior (há parturientes que sobreviveram a sete!).

                   O efeito combinado de tudo isto foi tão brusco que ninguém o previu nem se deu conta nem se adaptou aos riscos que implica. Duma humanidade apenas escapada ao limiar de sobrevivência saltámos em meia dúzia de gerações para a super-população a devastar rápida e imparavelmente o planeta inteiro. E continuamos com a mentalidade e escala de valores de antanho inteiramente alheia à conjuntura e desafios que enfrentamos doravante. E que não são, de maneira nenhuma, um episódio passageiro, bem pelo contrário: todo o mundo tende a generalizar os benefícios dos novos recursos para a saúde e vida, como não podia deixar de ser. E ainda bem.

                   Como evitar, porém, o precipício?

                   Claro que é imprescindível todo o tipo de reconversões de hábitos e atitudes, como os ecologistas preconizam (os três erres: “Reduzir, Reutilizar, Reciclar”), todos os tratados internacionais de controlo, todas as medidas económico-políticas que permitam modelos menos predatórios, mais construtivos e assim por diante. Tudo isto permite ir adiando o inevitável; não o exorciza, porém, de vez. Melhor que nada, todavia, portanto. Enquanto, contudo, continuar a explosão demográfica, nada feito, a prazo. Apenas ocorrerá mais tarde, mas o colapso é fatídico: o planeta ficará esgotado.

                   No salve-se quem puder, generalizar-se-á, como sempre, a lei da selva. A menos que façamos o que deve ser feito e se espera de nós: a muda de paradigmas, a alteração da cultura mundial, a troca da escala de valores e prioridades por aquilo que se revelar salvador e eficaz, como requer o nosso íntimo, a espiritualidade autêntica. E não o simulacro preguiçoso e ronceiro em que toda a gente anda irresponsavelmente embarcada, em todas as religiões, em todas as culturas: no presente a marcar passo do passado, fechando a porta ao futuro.

 

                   5 – Há semanas, encontrei num centro comercial daqui uma monitora de ginástica, a Débora, que os utentes tendem a considerar como fora de série (para alguns é a melhor que algum dia tiveram). Com um carrinho de bebé, passeava uma recém-nada de dois meses, o segundo rebento dela (o outro filho tem um ano e pouco). Confidenciou-me que viera arejar, já não aguentava mais o enclausuramento:

                   - Com os dois dá muito trabalho. Não devo voltar mais a dar aulas no ginásio, não aguento. Ainda não decidimos bem, eu e o meu marido, mas quase de certeza irei ter de desistir. Não quer dizer que não volte daqui a três ou quatro anos, mas por ora é praticamente impossível, não consigo dar conta de tudo.

                   Lamentei a perda da excelente professora que ela é. Depois dei comigo a ponderar: ainda ela era uma recém-casada sem filhos, anos atrás, alguém me contara que toda a família, mormente as tias a pressionavam: “então quando é que temos bebés?” Rigorosamente como decorre da cultura dominante. Será que isto faz sentido? A verdade é que ela se me mostrou muito feliz com a sua progenitura. As aulas, porém, chegavam a ser uma euforia para ela e para os participantes.

                   Como é que tudo isto deve ser equacionado, no contexto da presente demografia mundial?

                   Desaparecida a prioridade da sobrevivência da espécie, urgindo ao invés diminuir a pressão populacional à escala planetária, ficamos livres para reformular eticamente as nossas atitudes.

                   Ora, o fundamento ético mais correcto, se durante o risco de sobrevivência do grupo era o de sacrificar o interesse individual ao colectivo, senão nem um nem outro poderiam acabar por se realizar, desaparecido tal contexto não logra mais justificar-se. Doravante a prioridade deve ser outra. Qual? Há quem opte pelo extremo oposto.

                   Num dos meus cursos, ao examinarmos “Os Limites do Crescimento” (Clube de Roma), uma das alunas que, por acaso, até estava noiva, ficou tão perturbada que declarou que ia acabar com tudo, nestas condições não queria casar-se. Contrariei-a, tão preocupada fiquei com tal atitude. É difícil evitar respostas emocionais destas quando alguém anda alheado da realidade e é surpreendido pelo corredor da morte em que desfilamos em tropeada no matadouro do planeta.

                   Tal escolha, todavia, apenas se justificaria se fora para, já não digo extinguir a nossa espécie, mas travá-la bruscamente na borda do precipício, antes da iminente queda fatídica. Doutro modo, não morreríamos da doença mas morreríamos da cura. Ora, a conjuntura também não é essa, tão extremada. Temos várias gerações pela frente para darmos conta do recado (uma dúzia, a darmos crédito a Brian Weiss).

                   É a hora de abrir caminho, finalmente, pela primeira vez na história de três milhões de anos da Humanidade, a mais um patamar de aproximação à plenitude individual. Doravante é viável criar e desenvolver cada família em conformidade com a vocação e propensões conjugadas de cada casal nos mais variados domínios, englobando desde agora se querem ou não filhos e, se sim, quantos. O ideal não é mais a grande família, mas a família que melhor realize as potencialidades dos cônjuges em todos os campos, incluindo a progénie. E a escolha e gestão do itinerário, neste como nos demais âmbitos do protagonismo da vida, é da livre opção de cada um e de ambos os intervenientes, não de alguém de fora, muito menos duma cultura dominante anónima. Nem sequer duma doutrina qualquer, duma moral, duma ideologia ou duma teologia. Não, é da responsabilidade (que se deseja livre e consciente) intransmissível de cada qual, no contexto do casal e do lar. Doutro modo, a alienação espiritual continua e não há maneira de ultrapassarmos a mistificação generalizada da humanidade.

                   Isto implica várias consequências.

                   Desde logo teremos de varrer de nossa mentalidade o culto da grande família: nunca foi o ideal, pese embora a longuíssima tradição planetária de três milhões de anos, em todas as estirpes humanas. Foi sempre uma solução de menor perda: sacrificavam-se os indivíduos ao colectivo, não se realizavam de maneira nenhuma as vocações e potencialidades de cada um, mormente as das mulheres mães. Temos, finalmente, a possibilidade de respirar, nós, o universo feminino, também neste domínio. É urgente, porém, limpar a cultura e mentalidade dominante em todos os continentes, em todos os povos. As religiões têm aqui uma tarefa descomunal para mudarem de agulha, arrastando para diante todos e todas as escravas de antanho que zelaram (e outrora bem e para bem) por se acorrentar à procriação desenfreada.

                   Doravante é preciso libertar toda a gente. Dar luz verde a todo o protagonismo individual responsável, de maneira que mais ninguém pressione ninguém para ter filhos, para dar netos, proporcionar sobrinhos e assim por diante, como hoje em dia continuamos a verificar por todo o lado.

                   Feito isto, outro efeito decorre em paralelo. Não podemos mais ler o declínio populacional como um mal, pelo contrário, é o maior bem que nos pode ocorrer, o único que pode a prazo evitar o colapso planetário.

                   O Japão não poderá continuar a encarar a regular quebra de habitantes como uma ameaça mas como uma esperança. O resto do mundo tem de agradecer-lhe e incitá-lo à coragem de continuar neste rumo, para bem dele e de todos nós. O mesmo quanto à China que acabou com a lei do filho único para evitar o declínio demográfico: não, é bom que ele ocorra em maior escala até que o japonês, correspondente à dimensão populacional dela. E que todos tratem é de optar (e proporcionar meios) para cada um e cada casal ir o mais longe possível no trilho da plenitude própria, a bem do lar, da família, da comunidade, do país, do mundo. Esta é a utopia doravante viável, pela primeira vez na imemorial história da humanidade.

                   E entre nós e nos territórios industrializados, igualmente. Nada de leis a proteger e promover famílias numerosas. Nem o contrário. Antes medidas para cada lar ter o tamanho correspondente à melhor e mais equilibrada realização individual e interpessoal possível, leve isto à grande, média ou pequena família. Nada de abrir-se à imigração para repor a população em declínio, como argumentam na União Europeia e América do Norte (também por cá, conseguintemente). Antes como medida humanitária até que os povos e regiões de origem desenvolvam a economia própria, tornando-a capaz de corresponder e integrar todos os nativos, evitando o sofrimento e riscos da erradicação de massas humanas. Isto, sim, é um ideal, aquilo, não. Lutemos por um ideal, portanto, não por uma falsa panaceia.

                   Aliás, no que se reporta à família portuguesa, andamos mesmo muito distraídos. Continuamos a impor o matrimónio indissolúvel e os filhos “que Deus quiser” (controlo de natalidade ineficaz) no âmbito da Igreja Católica, de longe a predominante, embora em acelerado declínio (não tanto em favor doutras, mas da indiferença, agnosticismo e ateísmo).

                   Entretanto, mais de dois em cada três casamentos terminam em divórcio. Os crimes de violência doméstica, tirada a tampa do encobrimento (“entre marido e mulher não metas a colher”) e configurados legalmente como públicos, dispararam nas denúncias de tal modo que nem polícias, nem tribunais, nem serviços de assistência lhes dão tramenho. Para além de as respectivas decisões se revelarem profundamente desajustadas da realidade, para grande escândalo comunitário.

                   Ora, isto é que deveria constituir a primeira prioridade de preocupação e abordagem das comunidades crentes, não para se colocarem à margem, a sacudir olimpicamente a água do capote da pureza pretensamente invulnerável, que foi o que desembocou, afinal, naquilo, mas para tomarem medidas no mundo (não nas igrejas, mesquitas, sinagogas, templos...) capazes de findarem com tamanho sofrimento: tanto os divórcios como as violências, quando embora não cheguem a matar, rasgam as pessoas por dentro, dão-lhes cabo da vida. É urgente descobrir caminhos de saída à altura.

                   Mas não. Continuamos triunfalistamente a assobiar para o lado, cheios de dogmas intocáveis na cabeça, a atirá-los às consciências das comunidades reunidas, em celebrações míticas de utopias, cá nas tendas do nosso Monte Tabor e o mundo lá de baixo que se amanhe: já demos as receitas, se lhes não ligam o problema é deles. Sacudimos o pó das sandálias, que isto aqui é muito bom, como dizia S. Pedro ante a transfiguração.

                   Nem nos passa pela cabeça que mentalidade, doutrina, tradições, dogmas, práticas, tudo possa provir de fanatismos, de sacralizações que dominaram instituições e pessoas, que alienaram milénios e séculos fora a espiritualidade, em lugar de se lhe sujeitarem e a promoverem em todos e cada um. Que foi o que ocorreu e continua a ocorrer, doutro modo não estaríamos aqui, com tanto inferno na terra.

                   Isto é de tal ordem que, perante o espectáculo de tamanha tragédia a estraçalhar o País inteiro, até a minha proposta de rever a escolha ética da progenitura deixa de ser aqui prioritária, em termos de oportunidade: aquilo é muito mais urgente, obviamente. E claro que irá ficar sem achega nenhuma do lado das religiões, por muito que eventualmente se empenhem: continuarão a repetir o receituário ancestral dogmatizado, por mais inadequado que se revele, por mais erróneo que seja ante a exigência da espiritualidade íntima que em cada um requer ser respeitada e seguida. Esta porá irremediavelmente em causa todo o dogma (no sentido cristalizado e definitivamente morto em que é tomado), toda a imposição de ideais (não por ser ideal mas por ser imposto, como, por exemplo, a indissolubilidade matrimonial é), toda a sujeição ao exterior (não por vir de fora mas por não ser triada pela sensibilidade íntima, pelo murmúrio do imo ante o despertar ou não do coração).

                   Todas as hierarquias, todas as classes sacerdotais serão tão ciosas do poder de dominar e manipular as consciências alheias que ninguém tolerará que alguém ponha o pé em ramo verde. Quem pisar o risco será anatematizado, como sempre. E eis como todos continuarão a trair o Espírito e a tentar aniquilá-lo em cada um, sempre a coberto de que é para servi-lo, indiscutivelmente. A melhor cobertura imemorial de toda a mentira. Tanto pior quanto mais inconsciente e feita de boa fé: é vivida então como atitude natural.

                   É pessimismo demais?

                   Não o creio, que o Espírito continua a polarizar toda a gente mas é fora das instituições confessionais que mais anda a ser ouvido, respeitado e seguido. Até pelos crentes de qualquer área, por muito estranho que se revele.

 

                   6 – O caso mais flagrante é o da moral da contracepção, mais especificamente, do uso da pílula, por parte dos católicos (as restantes igrejas e religiões mantiveram-se espertamente de fora, a olhar para ver). Apesar das sucessivas condenações papais, toda a gente a usa (melhor, toda a mulher, que a versão para o homem não logrou ter sucesso, com efeitos secundários que acabaram com ela, até agora).

                   É o meio mais prático e simples de controlar a natalidade, quando não houver contra-indicação médica. O mesmo é dizer que é inestimável doravante, confrontados que vivemos com a urgência de pôr fim à explosão demográfica e de ir gradualmente diminuindo a pressão populacional sobre os recursos do planeta. Enquanto é tempo.

                   Durante o meu curso de Teologia, perante o desânimo dos fiéis ditos praticantes com a repetência doutrinal dos Papas a proibir, contra a contestação generalizada, dentro e fora da igreja, de tal postura, confrontei um dos meus professores, o mais genuíno para a minha sensibilidade.

                   - Olha, que é que esperavas – respondeu-me – de celibatários que não têm experiência nenhuma nem qualquer vivência em tal domínio, na melhor das hipóteses? Aí têm de ser vocês, os que casam, criam filhos, formam famílias, que deverão pronunciar-se. Não é quem está de fora e não entende nada. Por isso não admira a situação que se criou.

                   Numa resposta aparentemente tão simples, duas denúncias cruciais. A primeira, a de meter foice em seara alheia: ninguém (nem o Papa) pode substituir-se à decisão ética de qualquer sujeito, em qualquer que seja a conjuntura de vida. A obediência cega é demissão de si próprio, em si mesma é imoral, ninguém deve pôr-se entre parêntesis para ser a pegada doutrem. Nem um escravo o deverá fazer, quanto mais... E, obviamente, o outro lado da moeda: a tentativa de mandar de fora na consciência e decisão alheia. A corrupção do poder: anular o outro para o tornar a voz do dono, a sombra estendida de quem manda, não ele próprio.          Nem o Papa tem o direito de fazer isto: as tomadas de posição oficiais neste domínio, a este nível, são abusos do poder, a evitar a todo o custo, a pôr de lado. Por muito boa intenção que as mova, não ajudam mas traem a espiritualidade, como é constante, aliás, na instituição eclesiástica, ao suspeitar, negar e abolir a voz da interioridade de cada um. E a culpabilizá-lo se acaso a seguir, o que ainda é mais grave. Lê como um mal aquilo que é o bem – obedecer cada qual o mais fielmente possível ao impulso interior, ao que for conseguindo discernir como o melhor.

                   E uma segunda linha de denúncia: ignoram do que tratam. Como o ignoram, foi inevitável a sacralização: o funcionamento espontâneo do organismo devém intocável, torna-se o novo ídolo incensado no altar. A atitude papal neste domínio é uma idolatria de que não deram conta. Trai por completo a ordem do I Cap. do Génesis de pegarmos na natureza (sem excepção, também, portanto, na nossa) e a sujeitarmos ao que melhor nos convier. Tão simples como isso.

                   Claro que nunca liguei àquilo na minha vida, como milhões e milhões pelo mundo além e entre nós. Planeámos os nossos filhos no meu lar e a pílula foi uma ajuda inestimável para decidirmos quantos e quando. Como a generalidade, País fora. À margem da instituição mas dentro da espiritualidade, em conformidade com o desígnio de Deus.

                   Isto é que é obedecer ao Espírito. Como o mundo inteiro entende fazer, o que tem acesso a tal recurso, que infelizmente ainda não é disponível em todo o lado. Isto é que é abrir caminho à interioridade e incarná-la no tempo que é o nosso. Não é obedecer ao Papa, é obedecer a Deus. O papado nem sequer deveria nunca ter-se pronunciado em tal domínio, é, ao tentar mandar em consciência alheia, manter num perene infantilismo o crente. Isto trai flagrantemente a função, não é servir, é incensar a fatuidade do poder. E é não entender nem aceitar que, descidos do Tabor, a tarefa de fermentar o mundo é prioritariamente dos leigos, não dos alheados nos píncaros. Aqueles é que a lideram, não estes. A Cristandade findou, foi um erro. E o leigo tem de ouvir o Espírito que nele murmura, não o Papa (e hierarcas), por mais que gritem, se à margem da intimidade da consciência (e, pior, se contra ela).

                   O mundo felizmente vai ouvindo, a instituição eclesiástica continua triunfalistamente muito cega e surda. É pena. Até quando? Estaremos mesmo fatalmente condenados, como milenarmente se constata, desde os tempos bíblicos, a algemar-nos uns aos outros a todo o tipo de tradicionalismos e mentalidades obsoletas, sem discernimento algum, sem lucidez nenhuma? Foi sempre assim. E continua...

 

                   7 – Ora, o que opera como algema, quando foi criado era para libertar. Como é que nunca vemos isto? E, quando o vemos, como é que nunca quebramos as grades da prisão para arejarmos à luz do sol? Isto não é apenas nas religiões do Livro, é em todas: institucionalizar é trair. Tudo, gradualmente, desata a operar ao contrário, sem ninguém dar conta, com o correr do tempo.

                   Jesus Cristo, por exemplo, formou Apóstolos e discípulos e nunca precisou de os baptizar. Agora só pertencem à Igreja os baptizados. E não vemos para além disto. Como é possível?

                   Jesus não instituiu, decerto, os sacramentos e a eucaristia que dele provém foi o brinde final duma ceia comemorativa duma libertação histórica, para memória vindoira do que Ele foi para aquele grupo íntimo: a carne e o sangue libertadores do pecado, do desvio de nossa plenitude. Em que é que tornámos esta partilha, esta festa, esta alegria a culminar na ressurreição, dias após? No fóssil estereotipado da missa donde toda a vida real anda ausente, onde não há partilha (a comunhão teria de ser comunhão de vidas concretas...), a festa é, quando muito, um concerto musical (e vá lá quando o é ao menos...) e onde não há ceia nenhuma, muito menos deveras compartilhada, nem libertação efectiva celebrada (quando muito alguma coisa vagamente recordada ou evocada). Mas não deixámos de discutir a sério se o pão e vinho são mesmo corpo e sangue e dividimo-nos e zangámo-nos e guerreámo-nos pelo sim e pelo não... Ninguém viu que não tem nada a ver? Somos mesmo radicalmente estúpidos!

                   Hoje em dia, o que mais se aproxima da Última Ceia é a noite de consoada, com todo o lar celebrando o nascimento do Menino, em clima de comunhão íntima, de alegria a evocar o sonho e a ternura, a partilhar no fim prendas de amor gratuito (o pão e vinho reais) – e tudo em nome de Jesus. Ora, “onde dois ou mais se reunirem em meu nome, eu estarei no meio deles” – garantiu-nos Ele. Quer dizer: na noite de consoada todos andam a celebrar missa em todos os lares sem o saberem e Jesus está presente a todos, a partilhar da alegria. Não é formal mas é real. Ora, na missa formal, qual é a realidade? Um fóssil não tem vida lá dentro, em geral, lembra-nos que já houve, outrora. É isto que queremos? Basta-nos? Cristo andará satisfeito com tal dessoramento?

                   E nem falo dos restantes sacramentos, criados pela tradição, ainda incertos em pleno séc. XIII: S. Tomás de Aquino, na dúvida, opta pela conveniência de serem sete. É um número arquetípico, remete para os sete dias da criação (Gén.I) e para a duração da semana, a culminar no dia do Senhor, o Domingo. Ora, desta indefinição, desta relatividade, desta arbitrariedade, eis que elaborámos regulamentos, códigos, proibições, tabus, imposições a cercar cada um, sacralizando-o, dogmatizando-o e enclausurando os fiéis atrás de grades e mais grades de prisão. E é o estado em que estamos. Que é que isto tem a ver com um itinerário libertador de salvação? Endoidecemos todos?...

                   Sabes onde isto me leva? Ao motivo porque o Concílio Vaticano II falhou estrondosamente, traído por inteiro, no pós-concílio, em todo o mundo.

                   É que tudo pode ficar tal e qual, nas estruturas e instituições, até nas teologias e mentalidades. Não é aqui que bate o ponto. A questão é da atitude, da postura com que se assumem, vivem e partilham. Também neste domínio o problema é este, aquele é um derivado: desaparecerá por si quando o de raiz for resolvido. É uma subtil, quase inapreensível muda de fundo. Um pequenino reajustamento de nada no alvo apontado por cada um em qualquer prática, religiosa ou profana.

                   Nem sequer tem nada de misterioso ou complicado. É apenas em tudo visar que cada um e todos logrem auscultar cada vez mais fielmente o Espírito que por nós apela e nos impele das profundezas do imo. Depois, que cada um e todos logrem ser o mais fiéis possível a esta inspiração vida fora, em todos os caminhos que trilharem (pessoais, familiares, comunitários, profissionais, políticos...). Finalmente, que respeitem, apoiem e alimentem idêntico itinerário em cada um e todos os mais com que cruzarem vida fora, seja lá qual for o domínio e leve isto a que transformações levar. As contradições e conflitos requerem a mesma postura por parte de todos os implicados (e dos que com eles se cruzarem). Não é pegar em armas, lançar anátemas, consumar excomunhões... Onde é que Deus opera isto? Ora, temos de ser perfeitos como o Pai do Céu – ordenou Jesus. Ninguém pode ser excluído da comunhão, uma vez que Deus não o exclui nunca, nunca o abandona, aflorando perenemente das profundezas do imo. “Se Deus o não faz, quem somos nós para ir contra Deus?” – perguntaria S. Pedro.

                   Isto é uma conversão de dentro para fora, de baixo para cima, do íntimo para o exterior, pelas atitudes e comportamentos, do corpo próprio para as comunidades e para o mundo inteiro.

                   O Concílio Vaticano II fez o outro lado: elaborou documentos, tomou posições, formulou apelos de cima para baixo, de fora de cada um e do mundo para dentro, do exterior (concepções, modelos, teorias, propostas...) para a interioridade de cada qual (em contexto pessoal, familiar, comunitário, mundial...).

                   Esta parte foi completada, aquela, não, nem sequer iniciada. Logo, sem aquilo, nada feito. Ficou tudo fora de portas, abandonado, ignorado.

                   Importa, portanto, refazer a outra metade do Concílio para completá-lo, ou nada terá valido a pena, como há já duas gerações constatamos. Tudo findou despejado no caixote do lixo das meras boas intenções. E os sepulcros continuaram a ser caiados de branco, mais nada.

                   Ora, se o foco for o outro, muda tudo. Ao seguir um ritual, ou ele toca as pessoas ou então pomo-lo de lado, alteramo-lo, reinventamo-lo, substituímo-lo... Ao referir sentidos, ao interpretar, ou despertamos corações nos olhos iluminados, nos entusiasmos desencadeados, ou então mudamos de modelos, de conceitos, de ângulos de abordagem, de perspectivas a desvendar, de caminhos a vislumbrar... Ao cumprir rotinas, ao obedecer a leis, regulamentos, a imposições e proibições, ou isto vai ao encontro de aspirações, sonhos e utopias partilhados ou então inovamos, transgredimos, reformulamos (também aqui a lei é feita para o homem e não o homem para a lei)... Se atendermos ao impulso do Espírito em cada um e todos, os estereótipos cairão logo por terra, as rotinas enriquecer-se-ão de intermináveis inovamentos, acaso até irrepetíveis, as estruturas transformar-se-ão, adaptando-se às apetências de comunidades, grupos e indivíduos... As mentalidades e culturas, fermentadas deste modo, desatarão a transmudar-se: a prazo não ficará pedra sobre pedra do antigo e brotarão edifícios mentais novos e polarizadores de vida. Todos os ossários herdados de antanho se erguerão das tumbas revitalizados e revitalizadores da festa da vida a que o Espírito jogará todo o povo humano.

                        Isto não parará em campo nenhum. As teologias fossilizadas ou se inovam ou cairão em desuso, remetidas à poeira dos arquivos mortos. A rigidez mental, os dogmatismos (e as dogmatizações), as sacralizações, todos se relativizarão em busca da carne e sangue dos sentidos de vida. Todas as formulações serão sucessivamente ultrapassadas, em busca dum Infinito jamais alcançável (e menos ainda esgotável), mas sempre fascinante, inelutavelmente atractivo.

                   Todos andarão a caminho, pondo a caminho o mundo inteiro. Todos surpreenderão a faúlha do Espírito em todos os caminheiros, de seu grupo de fé e de todos os demais, e com tal faísca se unirão, cada vez mais em comunhão com o último apelo do íntimo de cada companheiro de viagem, de todos os humanos, afinal.

                   E tudo isto ocorrerá cada vez mais no mundo real, não em capelinhas confessionais, à margem da vida e em paralelo com ela (não há mais Cristandade, Estado Islâmico, Tibete Budista...), é o corpo do mundo em transformação de acordo com as utopias humanas, pela mão de todos os que aprenderem e quiserem obedecer ao impulso íntimo que discreta e permanentemente por eles clama para humanizarem cada vez mais a humanidade, o planeta inteiro e o Cosmos que habitamos. Em todas as dimensões que nos tocarem, a que formos sensíveis.

                   Caminhar rumo à utopia fica ao nosso alcance: irmos sendo o corpo incarnado do Espírito a caminho. Queremo-lo ou não? Quando é que o entenderemos?

 

                   Já te esgotei a paciência demais, não é verdade? Muito obrigada por tanto me aturares. Só espero que não seja tudo um interminável rosário de asneiras. Tu logo o dirás. O abraço para todos vós, do tamanho do mundo novo com que sonhamos, da Sofia.