DO FACTO À REALIDADE
Histórica
O mundo da actividade
Histórica é uma floresta,
De sombras opacidade
Pálida que se me empresta,
De sinais e de mensagens
Contraditórias, mentiras,
Bruxuleios de miragens,
Verdade aflorando às tiras,
De linhas entremeadas...
- Toda a gama dos obstáculos
Que emperram as caminhadas
Da ideia rumo aos pináculos.
Ossários
No fim do emancipador
Sonho, ficam-nos ossários.
Ao fim da luz do sol-pôr,
É a noite: não há um alvor
Dos bons revolucionários.
Bárbara revolução
Não é aquela que falhou
Mas as que levadas são
Ao termo e que aí, então,
Revelam: tudo se errou.
Quanto mais sucesso têm,
Mais funestas, criminosas:
Homem não há, não convém;
Exterminado, porém,
Que vitórias gloriosas!
Sempre assim terminam todas:
O dogma leva a tais bodas.
Bastava crer: é inseguro...
Que logo o inverso é que apuro,
No tentear duvidoso
Buscando o acerto do gozo.
Quando se diz científica
Uma utopia qualquer,
Logo devirá terrífica
A matar todo e quenquer.
E então se se crer divina
Tudo o que é humano malsina.
Repouso
Nunca o homem é repouso
Como o não é o Universo.
Movimento eterno que ouso,
Nunca aqui encontro pouso,
Sempre à frente é que me verso.
Queira ou não, é evoluir
E ando a tentar progredir...
- Mas quanta vez é o inverso!
Desculpas
Um pedido de desculpas
Por norma é esquivo e mesquinho,
A evitar ao próprio culpas.
O bom pedido é um cadinho
Em que a ti próprio te inculpas.
Tudo assumindo em teu ninho,
Ave já de asa madura
Que todo o voo depura,
Semeias o chão maninho.
Violência
O mais estranho
Na violência
É não ver ela outra via para o ganho:
É uma impotência.
O violento,
Conseguintemente,
É, no evento,
Um impotente.
Apenas por não dar tempo, em norma,
Para vir a amadurecer
Uma libertadora nova forma
De ser.
Corpo
Deveras o corpo é estranho.
É, sem alma, animalesco;
Sem corpo, vai de alma o ganho
Gelando o calor ao fresco.
Acolá, reles baixeza;
Aqui, gelada beleza.
Só da vida a tela encorpo
Quando lhe acrescento corpo,
Só da fusão entre os dois
Vem pleno o rumo depois.
Dinheiro
Dar dinheiro dá poder
E mais dá se o emprestar.
Quem dá não vai receber,
Quem empresta vai prender
A pessoa que ajudar.
Pode esta uma vida inteira,
Ao dever, ser prisioneira.
Sério
O poder de perdoar,
Fazer bem sem nada em troca,
Ajudar por ajudar,
Gostar de alguém por gostar,
Sem nada haver que o provoca...
- Isto é que é tamanho a sério:
De tudo escapa ao império.
Culpado
Após a calamidade
Todos buscam o culpado.
É tentação, na verdade.
Sem tal, que capacidade,
Porém, de algo haver mudado?
A culpa, ao se definir,
Se não vestir envoltórios
De bodes expiatórios,
É o custo de evoluir.
Decisões
As decisões racionais
São todas uma mentira:
Todas são emocionais
E a razão não será mais
Nelas que um ponto de mira.
Todas, depois de tomadas,
Mais ou menos bem então,
Vão ser racionalizadas.
E não há nestas pegadas
Jamais nenhuma inversão.
Escol
Um escol vai-se acabando,
Outro escol vai germinar.
Vai este aquele imitando
Na pegada que gravar:
Fica ao fim tudo igual quando
Era de tudo inovar.
É a pegada-mor da História,
Dela até onde há memória.
Requer
Quando entrei no grande mundo
Requeri somente aquilo
Que quer um bebé jucundo:
Do frio ir para o tranquilo
Quente dum colo fecundo;
De só para acompanhado;
De receptor do que é dado
Para dador dum enleio;
Do vazio ir para o cheio...
- Somos bebés toda a vida
Sempre nalguma medida.
Crise
A crise encrespa o político.
Que faz a gente comum?
Tem sempre um poder granítico,
Não o quebra maço algum.
A escravidão nunca foi
Crise para quem mandava?
O abolicionismo opõe
Massas e a crise estalava.
Discriminação de sexo
Não foi crise? O feminismo
Logo atou o que é conexo
E eis da crise aberto o abismo.
Que os políticos bem mais
Manda do povo o pendor
Dos insólitos sinais
Que em crise tudo irão pôr.
Conhecer
Ao conhecermos alguém
Principia então o esboço
Retocado vida além
Da relação que eu me endosso.
Vai ser a óleo um retrato,
Depois a pastel, a tinta,
Uma aguarela... E remato
Quando a morte ao fim o pinta.
E talvez nem nesta altura
Se remata o que figura.
Feia
Uma feia bem-amada
Espalha beleza em volta.
Uma bonita ignorada,
Por muito que elaborada,
É decoração à solta.
Nem é do meio elemento,
Que não traz contentamento.
Desastre
Um desastre, embora horrendo,
Pode gerar a beleza.
Hotel em chamas ardendo,
Embora de medo enchendo,
A bravura logo preza
Dos vizinhos que persuade,
Testemunhas como são
De tão grande majestade,
A pôr a boa vontade
O inferno a apagar então.
E fá-lo-ão comovidos
Da beleza dos sentidos.
Hesita
Aquele que viu no céu
Toda a manhã de Natal
Hesita em tirar o véu
Perante os mais sobre tal.
O porquê da hesitação?
- A prenda quer ser total.
Daqui vem a proibição
De abrir antes do Natal.
Equilíbrio
O equilíbrio
Entre a vida das artes e as artes da vida
É um ludíbrio,
Que não há comum medida.
É por isso
Que uma à outra negaceiam o feitiço,
Uma à outra puxando pela mão
Na corrida pelo chão.
Fé
Viva, a fé
Não é um encarceramento,
É um deslumbramento
Perante o desvelamento
Do que, no fundo, me tem de pé:
- É o momento
Do que é.
Demasiado
Demasiado capital
O capital ao fim mata:
Não há lucro social
Que apague o que dele acata.
E demasiado trabalho
Também o trabalho mata:
Os escravos são baralho
Trocado entre quem maltrata.
A convulsão, tarde ou cedo,
Tudo estoirará de medo.
Contas
O cintilar das estrelas
Quando o apaga a cotovia,
Da escuridão quando as telas
Escorregam para a via
Do outro pendor do monte,
Da vida concreta a ponte
Fazer-nos as contas vem,
Onde nem tudo é agradável:
Prático é o que o dia tem,
A noite é ilusão sonhável.
A noite, nela, é segura;
O dia a dureza apura.
Experiência
A desgraça de experiência
Não é nunca transferível.
O jovem quer a vivência,
Sangue na testa visível.
Feito após progenitor,
Mais vinte anos decorridos,
Vai sofrer o mesmo horror
De o filho não dar-lhe ouvidos.
Da vida a maledicência:
- Todos sofrem de impotência.
Ramo
Toda a vida é um frágil ramo
Suspenso no precipício.
Agarro-me, em quanto tramo,
Sempre a ele, desde o início,
Sempre enquanto força houver.
Um dia findo a cair,
Como cairá quenquer,
Sem ver que vem a seguir.
Que há lá em baixo a me apanhar
No escuro e fundo lugar?
Bote
A vida é conduzir o nosso bote
Pela corrente intérmina dos votos,
Promessas em perene mutação.
Esquecemos aquelas que, bom dote,
De evocar gostaríamos ignotos.
Lembramo-nos daquelas (maldição!)
Que esquecer preferíamos de vez:
As promessas quebradas sem mercês.
Normais
Não há pessoas normais,
É uma visão distorcida
À qual os poderes reais
Nos convencem de seguida:
Massa da normalidade,
Sem nem sequer o desejo,
Nem a possibilidade
De ver diferente o ensejo.
Ao contrário, cada dia,
Tudo diverso varia.
Devagar ou mais depressa
Tudo a mudar recomeça.
Detestam
Detestam não ser bem-vindos
Para onde quer que vão.
Dinheiros, uma vez findos,
Que desprezo lhes trarão!
Logo então se desfiguram,
Matam a quem nunca viram.
No fundo, nunca se curam,
Gritam a dor que sentiram
Dalguma anterior ferida
Que jamais é compreendida.
Tentam comprar simpatias...
- Só que é gratuita em bons guias.
Muralhas
Há uma rede de muralhas
E cada dia é pior.
Dividem-nos como calhas,
A lonjura a nos impor.
Mais tudo então nos separa,
Nem nos vemos cara a cara.
É, na aparência, o contrário:
Do subúrbio à cidade
O percurso é curto e vário
E a lonjura, imensidade.
Entrar noutro mundo? Não.
É o mesmo em cada estação...
Porém, cada uma é um muro.
Quando chego ao arrabalde,
Ou encaro o facto duro
Ou não e tudo é debalde:
É sempre a periferia
Que ao fim é o centro da via.
Porque o centro da cidade
Descentra quanto me invade.
Caranguejo-eremita
Sou caranguejo-eremita
Mas não deixo encurralar-me
Na concha que me limita,
Grito meu “porquê?” de alarme.
Se eu desconheço as respostas,
A verdade, todas juntas,
É que outrora nem supostas
Eu sabia haver perguntas.
Ferramentas
Os homens são ferramentas
De Deus em tudo o que inventas:
Coloca-me a ideia em mente
Ele em tudo o que eu intente.
E ao invés faz o demónio:
Desarmoniza o harmónio.
E os títeres somos nós,
A ver mal, de pais a avós.
A responsabilidade
Nossa é que mal se ver há-de.
Maltratado
Aquele que é maltratado
Cuida não valer nenhum.
Por mais que haja laborado
E durma sem sonho algum,
Nunca há-de ser o bastante.
Finda tímido e nervoso,
Acaba a errar adiante,
O que devém perigoso,
Mais maus tratos atraindo.
Os rufias nunca param,
Seja feio, seja lindo
Quem eles assim encaram.
O maltratado fará
Quanto for preciso então,
Para o murro parar lá,
- E eles nunca pararão.
Topo
O topo não é feliz
E não é bom para estar.
Abaixo um degrau, servis,
São os bens que é de gozar.
Quem isto entendeu, decerto,
É quem deveras é esperto.
Se ainda ao topo se aplica
É que, herói, se sacrifica.
É o critério que distingue
Onde é que a ética vingue.
Influência
Será o poder da influência
Um dos mais especiais.
Ninguém domina, na essência:
Desenvolve a competência
De transmitir os sinais
Daquilo que ele pretende
De modo que quem o entende
Convicto o siga, sem mais.
Pequenas
Das pequenas decisões
Muda o poderio as vidas:
Investimos uns milhões
Num burlão que ao lar convidas;
De Lincoln o guarda-costas
Foi ao bar fazer apostas
Enquanto um atirador
Disparava o percutor;
O motorista enganado
Vira para o beco errado
E o arquiduque da terra
Morre e então começa a guerra...
- Da História o grande portão
Roda, com as forças plenas
Rasgando os traços no chão,
Em dobradiças pequenas.
Trança
Se procurar a vingança
E me detiver no ódio,
Ficarei preso na trança
Do passado, atado ao pódio.
Obcecado no episódio
Do que me tiverem feito,
Fico incapaz, deste jeito,
De projectar-me, seguro,
Para um qualquer futuro.
- Além da velha ferida,
Já me amputaram a vida.
Bala
Uma bala, uma granada
Não sabe nem quer saber
Quem foi nosso avô na enfiada
Que a nossa mãe veio ter.
Matar é matar, mais nada.
Um rato com dente de oiro
Continua a ser um rato.
Que é que lhe importa o tesoiro
Quando for de morte o trato?
Coiro sagrado é de coiro!
É tão fatal qualquer facto
Que o não verga nenhum pacto.
Previsto
Jamais há desastre humano
Que imprevisto tenha sido
Para todos. É um engano:
Sempre alguém o há pressentido.
E quem fez a previsão
Nunca, acendido o chamiço
A mostrar que tem razão,
Ganhará nada com isso:
Ninguém vai prestar ouvidos
A tais malucos varridos.
Tal é o mundo e não há nada
Que o leve a trocar de estrada.
Força
A força é tão implacável
Para aquele que a detém
Como para o vitimável.
A este, quando lhe advém,
É verdade que o esmaga,
Porém, àquele embriaga:
Ao fiar demasiado
Sempre em cacos há findado.
Certeza
Nenhum homem a certeza
Pode ter de que ele apenas
É a criatura que preza
Nele o dom das cantilenas
De pensar e de sentir,
Sendo os demais que ele vir
Máquinas que apenas fingem
Pensar, sentir o que atingem.
Se a dúvida ninguém põe,
É que faz acto de fé:
O que o Homem tem de pé
É, pois, crer no que supõe.
A fé não é irracional:
- São todos, é universal.
Festa
Se, quando eu sair de casa
Dum amigo, este uma festa
Der à qual me não apraza,
Pouco importa, é que não presta.
Porém, se sente uma dor
E não partilhar comigo,
Devo tudo em causa pôr,
Devo ficar ressentido.
Se ele me fechar a porta
De sua casa magoada,
Devo então ser quem o exorta
A abrir-me de vez a entrada,
Até partilhar comigo
O que comigo merece,
Que o partilhado ao abrigo,
Quando partilhado, esquece.
E, se indigno me julgar
Ou de ser pessoa errada
Para com ele chorar,
Isto é a pena mais pesada
Que uma desgraça bem firme
Podia, ao fim, infligir-me.
Crianças
Nós, quando éramos crianças,
Brincávamos no Verão
Das árvores sob as franças,
Colhendo dentes-de-leão
Com que íamos para casa,
Pela poeira das vielas,
Pés nos charcos, sol em brasa,
Folhas chutando singelas...
Quem ia pensar na idade?
Em cada estação, mil dons,
A brincar com a verdade
De quanto marcam: que bons!
Ora, as árvores tombaram,
Desapareceram prados
E as vielas se ignoraram
Nos quarteirões reordenados.
Envelhecemos, portanto.
Falemos dos tempos idos,
Vívidos em cada canto
Da memória dos sentidos
Cá nos nossos corações.
A vida mantém-se bela
Nos dois mundos que aqui pões
Perante a nossa janela.
Em ambos hoje vivemos
E ainda vislumbramos
O brilho de olhos que houvemos
Quando, crianças, brincámos.
Vamos aqui, pois, sorrir
Ao que a vida nos apura.
O que é bom tem o porvir,
Para sempre, sempre dura.
Navios
Navios cruzam na noite,
Um ao outro murmurando,
Vago sinal que se afoite
Mutuamente os revelando,
E resta uma voz distante
Pela escuridão hiante.
É o oceano da vida:
Cruzamos e murmuramos
Uns aos outros; em seguida,
Só um olhar revelamos,
Uma voz que soa em vão
- E de novo é escuridão.
Só o silêncio no fim fala
No final porto de escala.
Mudança
A mudança nunca muda,
Nunca deixa de mudar.
A vida que não iluda
É tudo a se transformar.
Se aguarda que tudo acalme,
Irá ter uma surpresa:
O que disto ao fim empalme
É o vazio que então lesa.
Não vai haver acalmia,
Sempre o mundo é convulsão,
No todo e em cada fatia,
Na vida em que lavro o chão.
Pode mudar é a maneira
Como lidar a mudança
E como a mudança inteira
Me muda em quanto me alcança.
Alcançar
Não me consigo alcançar,
Não sou eu no meu melhor
Porque minha história, a par,
Obstrui-me o trilho em que eu for.
Cuido que sou tal história,
É a verdade a meu respeito.
Tudo o mais é outra glória
Para a qual não terei jeito.
Mas era tudo o que é bom...
- E eu que não canto no tom!
Realidade
A realidade não é
O que esteja a acontecer
Mas o que eu cuido com fé
Que a acontecer estiver.
Aquilo que experiencio
É o que ocorre interiormente
Sobre quanto desconfio
Que ocorreu exteriormente.
E a lonjura que os separa
Não há ponte que os atara.
Real
O real que vivencio,
Afinal, não é real.
Toda a muda tem o ousio
De me despertar, total:
Sempre é muda por melhor
Quando eu sempre temo o pior.
E é nesta reconversão
Que o real me fica à mão:
Nele mesmo inatingível,
Aproximá-lo é gerível.
Pedinte
Qualquer alma é uma pedinte
Ali, à esquina da rua,
A estender-me a mão seguinte
Ao meu sol, à minha lua.
Porque não vai trabalhar?
- Se o fizera, quem ficava
Neste preciso lugar
A abrir meu vulcão de lava?
A fazer-me ver se vou
Sendo o que deveras sou?
Dois
Dois modos de decidir:
Num decido qualquer coisa,
Noutro, não, não quero agir.
Porém da razão a loisa
Diz que ambos são modos de ir.
É que isto nisto repoisa:
- Decidi não decidir!
Erga
A vida é oportunidade,
Por mais que erga uma obstrução.
É boa sorte, em verdade,
Não azar em contramão.
É a dádiva com que eu urdo
Tudo, jamais um absurdo.
- E a minha gesta na vida
Cria-a numa igual medida.
Livre arbítrio
Todos temos livre arbítrio.
Interpretar as mensagens
Do Espírito como imagens
À letra, num cristal vítreo,
Em vez duma indicação
Subtil, um apoio à mão,
À confusão é levar
E a frustração consumar.
Assim é no mundo de hoje
Como na Revelação
Que hoje os crentes sagrarão
Dum passado que nos foge.
Nunca Deus ditou receitas
Mesmo às almas mais eleitas.
Quem isto não vislumbrou
Não vê o homem que as filtrou.
Permeiam
Deus mais os anjos e guias
Permeiam de lés a lés
Tudo, mil a inspirar vias,
Dentro de todas as fés.
Nenhuma a que é verdadeira:
Todas são em tal cumeeira,
Embora o filtro da cor
Filtre umas que outras melhor.
A escolha do coração
É que dita quais serão.
Guias
Os guias não interferem,
Só guiam suavemente.
A intuição que conferem,
O instinto em que alguém assente,
Coincidências, palpites,
Uma sensação fortuita...
- São moldes em que os concites,
Aos guias de mão gratuita.
Se o não são os terrenais,
São isto os espirituais.
Atraídos
Seja a religião qual for,
Eis-nos, morrendo, atraídos
Pelo Deus feito do amor
Até por desconhecidos.
Não há nuvem de judeu
Nem nuvem de protestante,
Tanto se atrai o ateu
Como o fiel de qualquer vante.
O distintivo é o amor
Fraterno de cada actor.
Tudo o mais, inerme guia,
Até afasta da alegria.
Muda
Os homens não se respeitam
Nem amam como deviam.
Deus adora os que se ajeitam
À muda em que mudariam
Tal mundo de desamor.
Não para nos controlar
Mas para a vida melhor
Em que Ele, enfim, se espraiar.
Nisto é que encontro, afinal,
Quanto eu for espiritual.
Morte
A morte tem emissários
Que vagueiam pela rua,
Buscando ignaros primários,
Cabeças ocas, na lua,
Que então caem na esparrela
Por nunca pensarem nela.
Quando um destes infelizes
Encontrar o mensageiro,
Sem que entenda os chamarizes
É guiado mui ligeiro
À cilada: no imo interno
Há uma portada do inferno.
O emissário, no seu posto,
Oculta que não tem olhos,
Ocultando sempre o rosto
Por trás de humildes refolhos.
Tem lá dois buracos pretos
Sem ter fundura nem tectos.
Quando já não houver mais
Escapatória possível,
Mostra o arauto os sinais
Daquele seu rosto horrível.
Então só, pálida e parda,
Viu a vítima o que a aguarda.
Mudas
Mudas de mentalidade
E de atitudes implicam
Mondas de mortalidade
Que os de hoje aqui sacrificam.
São as novas gerações
Que então erguem os pendões
A podar os galhos secos
Que doravante estão pecos.
Nunca os factos que acontecem
Mudam os que então fenecem.
Asneira
Um dogma é sempre uma asneira
Tão maior quão mais sagrada:
Da verdade só se abeira
O caminhante da estrada.
Sendo Deus sempre inefável,
Nunca a verdade adivinho.
No dogma o que é confiável
É o dedo a apontar caminho.
Caminho de toda a sorte
De horizontes de abordagem.
Deus é sempre o pólo norte
De mil rotas de viagem.
Que importa a contradição?
Quando se é grande demais
Convivem o sim e o não,
Enquanto o nunca alcançais.
Tece
A repressão enfraquece
Qualquer estabilidade,
Novas ameaças tece,
Protestos de liberdade.
Estala então a revolta,
Deus e diabo andam à solta.
Que é que, ao invés, estes danos
Previne sem mais enganos?
Fortalecem tudo a eito,
Estabilizando os planos,
Democracia e respeito
Pelos direitos humanos.
Vera
Na vera democracia
Qualquer um tem o direito
De viver quanto queria,
Trabalhar, tomar a peito,
Professar o que aprecia,
Seja homem ou mulher,
Muçulmano, ateu, cristão,
Ou doutra crença qualquer,
Qualquer outra tradição
Ou sem tradição sequer.
Nenhuma facção ou grupo,
Nenhum líder pode impor
Sua crença sem apupo,
Fé, religião, o que for,
Ao imo que a sós ocupo.
A outrem impor, no ensejo,
Ninguém pode o seu desejo.
Respeitando esta fronteira
Voa livre a vida inteira.
Perda
Num aeroporto há beijos,
Mais do que num casamento,
Sinceros em seus harpejos,
Tanto um adeus é tormento.
A parede do hospital
Orações mais fervorosas,
Mais que a igreja, por sinal,
Ouviu de almas dolorosas.
- O beijo como o fervor
Na perda ateiam calor.
Realidade
A realidade é moeda
Que tem sempre duas faces.
Por mais que um homem proceda,
Não há como isto ultrapasses.
Porém, a verdade inteira
É que entre ambas há a terceira.
E todos nos esquecemos
Da interface em que vivemos.
Desejo
Todo e qualquer coração
Tem ao menos um desejo,
Necessidade, pulsão,
Medo incrível do papão:
De ser, no que dele vejo,
A dar-lhe por fim sentido,
Deveras reconhecido.
Intolerância
As religiões cometem
Da intolerância o pecado.
Como é que depois prometem
Um homem regenerado?
Vivem com tanta soberba
Que nem sequer dão por isso.
O inferno lhes cobra a verba:
De alma mal têm chamiço.
Tão fanáticas mentiras
Tanto se tomam por Deus
Que, ao fim, o que ali respiras
É que todos são ateus.
Ateus até militantes
Dum deus que é só de pedantes.
Ética
A moral é colecção
De mandamentos e regras.
Ética é do imo a pulsão
Que naturalmente integras
Que te inspira a procurar
Para ti e para os mais
A plenitude que, a par,
Insatisfeitos buscais.
Quando naquela alguém fica,
Esta nele mortifica.
Tanto então a debilita
Que, às tantas, nem a concita.
Lista
Cristandade,
Estado islâmico,
Raça superior,
Comunismo...
- Contemporânea lista da inverdade,
Do erro tão balsâmico
E tão dinâmico
Que, em sangue e suor,
Vem jogando a humanidade no abismo.
Nunca a verdade é verdade,
É mera aproximação
A requerer da irmandade
Mútua complementaridade
Que é o cimento da união.
Então, fruto do tolerante amor,
Aflora, tarde ou cedo, uma síntese superior.
Que não é nunca a derradeira,
Antes a primeira
De todo o tempo que for.
Triste
É bem triste não ser mais
Do que o que deixei de ser
E de não fazer jamais
O que deixei de fazer.
Sou vida que não vivi:
Nesta, sim, estou aí.
Pendular entre o que sou
E o que não consigo ser,
Por isso é que sempre vou
Mesmo ao ter de me conter.
Vou ficando sempre a meio,
Sou um quase sem recheio.
Sou o que sou, que aí vou,
E mais inda o que não sou.
Pobre
Nenhum pobre é desmedido,
Que a pobreza é ilimitada:
Qualquer que seja o sentido
Sempre é rumo de jornada.
Rumo de quem continua
Vendo que pegada é sua.
Não é por compreensão,
É por busca de razão,
Ou de razão pela falta
A quem vida não deu alta.
Âmago
Ao descobrir minha deficiência
Acalmo o ego.
Não tenho orgulho, não, é mera ausência
Em meu refego,
Mas muda por inteiro de meu âmago o tom
E é tão bom!
A deficiência já não é por culpa minha,
É da natureza a linha.
- Que descanso
No meu remanso!
Fim
No fim da tristeza
Ergue-se a vida
E reza.
Sem aviso
Convida
Ao riso.
E tudo preza
Com todo o siso.
Sozinho
Desabar sozinho
Na solidão deserta,
Um caminho
Que aperta...
- Credo,
Que medo!
Desequilibrados
Que bom sermos desequilibrados!
O tédio jamais é feliz.
Ir caindo, caindo para os lados
E jamais cair de raiz...
Há quem não entenda,
Mas que prenda, que prenda!
Forte
Destróis-me todos os dias
E findo mais forte que nunca.
As escaras que de mim cortas e desvias
Adubam o chão que minhas pegadas junca.
Desbastado o escuro,
Eis-me cada dia mais luminoso e puro.
Maturidade
É uma frieza
A maturidade,
Silente avelhamento,
Lento e lento,
Da represa
Da possibilidade.
Amadurecer
Amadurecer
Pode ser
A viagem
De renascer
Do selvagem
Verdor amargo da escuridão.
- E há tanta luz então!
Presença
A presença de Deus
No imo de nossa felicidade
Não são os céus
No pasmo
Da alacridade:
- É o orgasmo!
Brincadeira
Entre os olhos e o que vemos
Ninguém lê.
Uma brincadeira entre anjos e demos
Tens no rosto de quem te vê.
Tens aí uma criança de olhos grandes:
Por ela o mundo inteiro vai onde o mandes.
Mistérios
Cultivar a vida é preservar mistérios,
Segredos por desvendar,
Lacunas por preencher em rostos sidéreos
Que passamos os dias a tentar ocupar.
É sempre tentar uma nova pegada
Que garanta que nunca falte nada.
Desde que falte, eis meu passo a requerer,
Sempre, sempre, uma coisa qualquer.
Bebé
Um bebé é irresistível,
Apreciamos começos, nunca fins.
Um velho assusta, previsível,
Do canteiro já não brotam mais jasmins.
Um amor carcomido,
A se acabar,
Amamo-lo na queda desprendido,
No precipício a despencar.
É uma véspera de morto,
Urge compensar as falhas
Com os beijos apressados do horto
Onde trabalhas.
Tudo é urgência
Mais que segurança
E, na premência,
Nada deveras, afinal, já vida alcança.
Ao invés, um bebé será promessa:
Ali tudo começa.
Contra
Quando perdemos, ficamos
Mais juntos contra o inimigo de fora:
Ai de quem entale os ramos
Entre nós!
Logo após
Não perde pela demora!
Demasias
A vida é incrível,
Com demasias para doer,
Carências de inatingível,
Mil dados a se perder,
Gente demais cheia de medos
A escorregar-nos dos dedos...
É horrível a vida.
- É a minha prenda preferida!
Valoriza
A Lua existe e valoriza o Sol,
O Sol existe e valoriza a Lua
- Só um no rol
E logo a magia não actua.
Do mesmo e único a repetição
É maldita,
Mata tudo o que concita,
A beleza em pó no chão,
Mero escalracho
Que piso feito capacho.
É da pluralidade
Que germina, de surpresa,
A beldade
Da beleza.
Ódio
Ter ódio de tudo, andar
É no trilho do suicídio
Que, se não se consumar,
Invertendo o trilho, a par,
Vai findar num homicídio.
É sempre o comum roteiro
Da tragédia mais certeiro.
Vencedores
A História,
Sejam quais forem os humores,
Foi sempre a memória
Dos vencedores.
Dos vencidos,
Uns mortos,
Outros banidos,
Nunca nada germinou em tais hortos.
Nada nos garante, porém, então,
Que deles não fora, afinal, a razão.
Mesmo
Povo
e terra o mesmo são:
Se negligencias um,
Logo o outro tomba ao chão,
Sofrendo, sem rumo algum.
Numa aldeia ou no planeta
Rasga o peito a mesma seta.
Trabalho
O trabalho do homem livre
Rende mais do que o do escravo.
Aquele faz com que vibre,
Este de prisão tem travo.
Aquele provoca orgulho
E todo o que cria os bens
Gosta de tentar do entulho
Inventar, em vez de améns,
Melhor modo de fazer
Para próprio benefício,
Da família que tiver,
De quem o dobrar no ofício.
Ao fim é tudo a dobrar
Que das mãos lhe há-de jorrar.