DO  FACTO  À  REALIDADE

 

 

 

Histórica

 

O mundo da actividade

Histórica é uma floresta,

De sombras opacidade

Pálida que se me empresta,

 

De sinais e de mensagens

Contraditórias, mentiras,

Bruxuleios de miragens,

Verdade aflorando às tiras,

 

De linhas entremeadas...

- Toda a gama dos obstáculos

Que emperram as caminhadas

Da ideia rumo aos pináculos.

 

 

Ossários

 

No fim do emancipador

Sonho, ficam-nos ossários.

Ao fim da luz do sol-pôr,

É a noite: não há um alvor

Dos bons revolucionários.

 

Bárbara revolução

Não é aquela que falhou

Mas as que levadas são

Ao termo e que aí, então,

Revelam: tudo se errou.

 

Quanto mais sucesso têm,

Mais funestas, criminosas:

Homem não há, não convém;

Exterminado, porém,

Que vitórias gloriosas!

 

Sempre assim terminam todas:

O dogma leva a tais bodas.

 

Bastava crer: é inseguro...

Que logo o inverso é que apuro,

 

No tentear duvidoso

Buscando o acerto do gozo.

 

Quando se diz científica

Uma utopia qualquer,

Logo devirá terrífica

A matar todo e quenquer.

 

E então se se crer divina

Tudo o que é humano malsina.

 

 

Repouso

 

Nunca o homem é repouso

Como o não é o Universo.

Movimento eterno que ouso,

Nunca aqui encontro pouso,

Sempre à frente é que me verso.

 

Queira ou não, é evoluir

E ando a tentar progredir...

 

- Mas quanta vez é o inverso!

 

 

Desculpas

 

Um pedido de desculpas

Por norma é esquivo e mesquinho,

A evitar ao próprio culpas.

O bom pedido é um cadinho

Em que a ti próprio te inculpas.

 

Tudo assumindo em teu ninho,

Ave já de asa madura

Que todo o voo depura,

Semeias o chão maninho.

 

 

Violência

 

O mais estranho

Na violência

É não ver ela outra via para o ganho:

É uma impotência.

 

O violento,

Conseguintemente,

É, no evento,

Um impotente.

 

Apenas por não dar tempo, em norma,

Para vir a amadurecer

Uma libertadora nova forma

De ser.

 

 

Corpo

 

Deveras o corpo é estranho.

É, sem alma, animalesco;

Sem corpo, vai de alma o ganho

Gelando o calor ao fresco.

 

Acolá, reles baixeza;

Aqui, gelada beleza.

 

Só da vida a tela encorpo

Quando lhe acrescento corpo,

 

Só da fusão entre os dois

Vem pleno o rumo depois.

 

 

Dinheiro

 

Dar dinheiro dá poder

E mais dá se o emprestar.

Quem dá não vai receber,

Quem empresta vai prender

A pessoa que ajudar.

 

Pode esta uma vida inteira,

Ao dever, ser prisioneira.

 

 

Sério

 

O poder de perdoar,

Fazer bem sem nada em troca,

Ajudar por ajudar,

Gostar de alguém por gostar,

Sem nada haver que o provoca...

- Isto é que é tamanho a sério:

De tudo escapa ao império.

 

 

Culpado

 

Após a calamidade

Todos buscam o culpado.

É tentação, na verdade.

Sem tal, que capacidade,

Porém, de algo haver mudado?

 

A culpa, ao se definir,

Se não vestir envoltórios

De bodes expiatórios,

É o custo de evoluir.

 

 

Decisões

 

As decisões racionais

São todas uma mentira:

Todas são emocionais

E a razão não será mais

Nelas que um ponto de mira.

 

Todas, depois de tomadas,

Mais ou menos bem então,

Vão ser racionalizadas.

E não há nestas pegadas

Jamais nenhuma inversão.

 

 

Escol

 

Um escol vai-se acabando,

Outro escol vai germinar.

Vai este aquele imitando

Na pegada que gravar:

Fica ao fim tudo igual quando

Era de tudo inovar.

 

É a pegada-mor da História,

Dela até onde há memória.

 

 

Requer

 

Quando entrei no grande mundo

Requeri somente aquilo

Que quer um bebé jucundo:

Do frio ir para o tranquilo

Quente dum colo fecundo;

 

De só para acompanhado;

De receptor do que é dado

 

Para dador dum enleio;

Do vazio ir para o cheio...

 

- Somos bebés toda a vida

Sempre nalguma medida.

 

 

Crise

 

A crise encrespa o político.

Que faz a gente comum?

Tem sempre um poder granítico,

Não o quebra maço algum.

 

A escravidão nunca foi

Crise para quem mandava?

O abolicionismo opõe

Massas e a crise estalava.

 

Discriminação de sexo

Não foi crise? O feminismo

Logo atou o que é conexo

E eis da crise aberto o abismo.

 

Que os políticos bem mais

Manda do povo o pendor

Dos insólitos sinais

Que em crise tudo irão pôr.

 

 

Conhecer

 

Ao conhecermos alguém

Principia então o esboço

Retocado vida além

Da relação que eu me endosso.

 

Vai ser a óleo um retrato,

Depois a pastel, a tinta,

Uma aguarela... E remato

Quando a morte ao fim o pinta.

 

E talvez nem nesta altura

Se remata o que figura.

 

 

Feia

 

Uma feia bem-amada

Espalha beleza em volta.

Uma bonita ignorada,

Por muito que elaborada,

É decoração à solta.

 

Nem é do meio elemento,

Que não traz contentamento.

 

 

Desastre

 

Um desastre, embora horrendo,

Pode gerar a beleza.

Hotel em chamas ardendo,

Embora de medo enchendo,

A bravura logo preza

 

Dos vizinhos que persuade,

Testemunhas como são

De tão grande majestade,

A pôr a boa vontade

O inferno a apagar então.

 

E fá-lo-ão comovidos

Da beleza dos sentidos.

 

 

Hesita

 

Aquele que viu no céu

Toda a manhã de Natal

Hesita em tirar o véu

Perante os mais sobre tal.

 

O porquê da hesitação?

- A prenda quer ser total.

Daqui vem a proibição

De abrir antes do Natal.

 

 

Equilíbrio

 

O equilíbrio

Entre a vida das artes e as artes da vida

É um ludíbrio,

Que não há comum medida.

 

É por isso

Que uma à outra negaceiam o feitiço,

 

Uma à outra puxando pela mão

Na corrida pelo chão.

 

 

 

Viva, a fé

Não é um encarceramento,

É um deslumbramento

Perante o desvelamento

Do que, no fundo, me tem de pé:

- É o momento

Do que é.

 

 

Demasiado

 

Demasiado capital

O capital ao fim mata:

Não há lucro social

Que apague o que dele acata.

 

E demasiado trabalho

Também o trabalho mata:

Os escravos são baralho

Trocado entre quem maltrata.

 

A convulsão, tarde ou cedo,

Tudo estoirará de medo.

 

 

Contas

 

O cintilar das estrelas

Quando o apaga a cotovia,

Da escuridão quando as telas

Escorregam para a via

Do outro pendor do monte,

Da vida concreta a ponte

 

Fazer-nos as contas vem,

Onde nem tudo é agradável:

Prático é o que o dia tem,

A noite é ilusão sonhável.

A noite, nela, é segura;

O dia a dureza apura.

 

 

Experiência

 

A desgraça de experiência

Não é nunca transferível.

O jovem quer a vivência,

Sangue na testa visível.

 

Feito após progenitor,

Mais vinte anos decorridos,

Vai sofrer o mesmo horror

De o filho não dar-lhe ouvidos.

 

Da vida a maledicência:

- Todos sofrem de impotência.

 

 

Ramo

 

Toda a vida é um frágil ramo

Suspenso no precipício.

Agarro-me, em quanto tramo,

Sempre a ele, desde o início,

 

Sempre enquanto força houver.

Um dia findo a cair,

Como cairá quenquer,

Sem ver que vem a seguir.

 

Que há lá em baixo a me apanhar

No escuro e fundo lugar?

 

 

Bote

 

A vida é conduzir o nosso bote

Pela corrente intérmina dos votos,

Promessas em perene mutação.

Esquecemos aquelas que, bom dote,

De evocar gostaríamos ignotos.

Lembramo-nos daquelas (maldição!)

 

Que esquecer preferíamos de vez:

As promessas quebradas sem mercês.

 

 

Normais

 

Não há pessoas normais,

É uma visão distorcida

À qual os poderes reais

Nos convencem de seguida:

 

Massa da normalidade,

Sem nem sequer o desejo,

Nem a possibilidade

De ver diferente o ensejo.

 

Ao contrário, cada dia,

Tudo diverso varia.

 

Devagar ou mais depressa

Tudo a mudar recomeça.

 

 

Detestam

 

Detestam não ser bem-vindos

Para onde quer que vão.

Dinheiros, uma vez findos,

Que desprezo lhes trarão!

 

Logo então se desfiguram,

Matam a quem nunca viram.

No fundo, nunca se curam,

Gritam a dor que sentiram

 

Dalguma anterior ferida

Que jamais é compreendida.

 

Tentam comprar simpatias...

- Só que é gratuita em bons guias.

 

 

Muralhas

 

Há uma rede de muralhas

E cada dia é pior.

Dividem-nos como calhas,

A lonjura a nos impor.

Mais tudo então nos separa,

Nem nos vemos cara a cara.

 

É, na aparência, o contrário:

Do subúrbio à cidade

O percurso é curto e vário

E a lonjura, imensidade.

Entrar noutro mundo? Não.

É o mesmo em cada estação...

 

Porém, cada uma é um muro.

Quando chego ao arrabalde,

Ou encaro o facto duro

Ou não e tudo é debalde:

É sempre a periferia

Que ao fim é o centro da via.

 

Porque o centro da cidade

Descentra quanto me invade.

 

 

Caranguejo-eremita

 

Sou caranguejo-eremita

Mas não deixo encurralar-me

Na concha que me limita,

Grito meu “porquê?” de alarme.

 

Se eu desconheço as respostas,

A verdade, todas juntas,

É que outrora nem supostas

Eu sabia haver perguntas.

 

 

Ferramentas

 

Os homens são ferramentas

De Deus em tudo o que inventas:

 

Coloca-me a ideia em mente

Ele em tudo o que eu intente.

 

E ao invés faz o demónio:

Desarmoniza o harmónio.

 

E os títeres somos nós,

A ver mal, de pais a avós.

 

A responsabilidade

Nossa é que mal se ver há-de.

 

 

Maltratado

 

Aquele que é maltratado

Cuida não valer nenhum.

Por mais que haja laborado

E durma sem sonho algum,

 

Nunca há-de ser o bastante.

Finda tímido e nervoso,

Acaba a errar adiante,

O que devém perigoso,

 

Mais maus tratos atraindo.

Os rufias nunca param,

Seja feio, seja lindo

Quem eles assim encaram.

 

O maltratado fará

Quanto for preciso então,

Para o murro parar lá,

- E eles nunca pararão.

 

 

Topo

 

O topo não é feliz

E não é bom para estar.

Abaixo um degrau, servis,

São os bens que é de gozar.

 

Quem isto entendeu, decerto,

É quem deveras é esperto.

 

Se ainda ao topo se aplica

É que, herói, se sacrifica.

 

É o critério que distingue

Onde é que a ética vingue.

 

 

Influência

 

Será o poder da influência

Um dos mais especiais.

Ninguém domina, na essência:

Desenvolve a competência

De transmitir os sinais

 

Daquilo que ele pretende

De modo que quem o entende

Convicto o siga, sem mais.

 

 

Pequenas

 

Das pequenas decisões

Muda o poderio as vidas:

Investimos uns milhões

Num burlão que ao lar convidas;

 

De Lincoln o guarda-costas

Foi ao bar fazer apostas

 

Enquanto um atirador

Disparava o percutor;

 

O motorista enganado

Vira para o beco errado

 

E o arquiduque da terra

Morre e então começa a guerra...

 

- Da História o grande portão

Roda, com as forças plenas

Rasgando os traços no chão,

Em dobradiças pequenas.

 

 

Trança

 

Se procurar a vingança

E me detiver no ódio,

Ficarei preso na trança

Do passado, atado ao pódio.

Obcecado no episódio

 

Do que me tiverem feito,

Fico incapaz, deste jeito,

 

De projectar-me, seguro,

Para um qualquer futuro.

 

- Além da velha ferida,

Já me amputaram a vida.

 

 

Bala

 

Uma bala, uma granada

Não sabe nem quer saber

Quem foi nosso avô na enfiada

Que a nossa mãe veio ter.

Matar é matar, mais nada.

 

Um rato com dente de oiro

Continua a ser um rato.

Que é que lhe importa o tesoiro

Quando for de morte o trato?

Coiro sagrado é de coiro!

 

É tão fatal qualquer facto

Que o não verga nenhum pacto.

 

 

Previsto

 

Jamais há desastre humano

Que imprevisto tenha sido

Para todos. É um engano:

Sempre alguém o há pressentido.

 

E quem fez a previsão

Nunca, acendido o chamiço

A mostrar que tem razão,

Ganhará nada com isso:

 

Ninguém vai prestar ouvidos

A tais malucos varridos.

 

Tal é o mundo e não há nada

Que o leve a trocar de estrada.

 

 

Força

 

A força é tão implacável

Para aquele que a detém

Como para o vitimável.

A este, quando lhe advém,

É verdade que o esmaga,

Porém, àquele embriaga:

 

Ao fiar demasiado

Sempre em cacos há findado.

 

 

Certeza

 

Nenhum homem a certeza

Pode ter de que ele apenas

É a criatura que preza

Nele o dom das cantilenas

 

De pensar e de sentir,

Sendo os demais que ele vir

 

Máquinas que apenas fingem

Pensar, sentir o que atingem.

 

Se a dúvida ninguém põe,

É que faz acto de fé:

O que o Homem tem de pé

É, pois, crer no que supõe.

 

A fé não é irracional:

- São todos, é universal.

 

 

Festa

 

Se, quando eu sair de casa

Dum amigo, este uma festa

Der à qual me não apraza,

Pouco importa, é que não presta.

 

Porém, se sente uma dor

E não partilhar comigo,

Devo tudo em causa pôr,

Devo ficar ressentido.

 

Se ele me fechar a porta

De sua casa magoada,

Devo então ser quem o exorta

A abrir-me de vez a entrada,

 

Até partilhar comigo

O que comigo merece,

Que o partilhado ao abrigo,

Quando partilhado, esquece.

 

E, se indigno me julgar

Ou de ser pessoa errada

Para com ele chorar,

Isto é a pena mais pesada

 

Que uma desgraça bem firme

Podia, ao fim, infligir-me.

 

 

Crianças

 

Nós, quando éramos crianças,

Brincávamos no Verão

Das árvores sob as franças,

Colhendo dentes-de-leão

 

Com que íamos para casa,

Pela poeira das vielas,

Pés nos charcos, sol em brasa,

Folhas chutando singelas...

 

Quem ia pensar na idade?

Em cada estação, mil dons,

A brincar com a verdade

De quanto marcam: que bons!

 

Ora, as árvores tombaram,

Desapareceram prados

E as vielas se ignoraram

Nos quarteirões reordenados.

 

Envelhecemos, portanto.

Falemos dos tempos idos,

Vívidos em cada canto

Da memória dos sentidos

 

Cá nos nossos corações.

A vida mantém-se bela

Nos dois mundos que aqui pões

Perante a nossa janela.

 

Em ambos hoje vivemos

E ainda vislumbramos

O brilho de olhos que houvemos

Quando, crianças, brincámos.

 

Vamos aqui, pois, sorrir

Ao que a vida nos apura.

O que é bom tem o porvir,

Para sempre, sempre dura.

 

 

Navios

 

Navios cruzam na noite,

Um ao outro murmurando,

Vago sinal que se afoite

Mutuamente os revelando,

E resta uma voz distante

Pela escuridão hiante.

 

É o oceano da vida:

Cruzamos e murmuramos

Uns aos outros; em seguida,

Só um olhar revelamos,

Uma voz que soa em vão

- E de novo é escuridão.

 

Só o silêncio no fim fala

No final porto de escala.

 

 

Mudança

 

A mudança nunca muda,

Nunca deixa de mudar.

A vida que não iluda

É tudo a se transformar.

 

Se aguarda que tudo acalme,

Irá ter uma surpresa:

O que disto ao fim empalme

É o vazio que então lesa.

 

Não vai haver acalmia,

Sempre o mundo é convulsão,

No todo e em cada fatia,

Na vida em que lavro o chão.

 

Pode mudar é a maneira

Como lidar a mudança

E como a mudança inteira

Me muda em quanto me alcança.

 

 

Alcançar

 

Não me consigo alcançar,

Não sou eu no meu melhor

Porque minha história, a par,

Obstrui-me o trilho em que eu for.

 

Cuido que sou tal história,

É a verdade a meu respeito.

Tudo o mais é outra glória

Para a qual não terei jeito.

 

Mas era tudo o que é bom...

- E eu que não canto no tom!

 

 

Realidade

 

A realidade não é

O que esteja a acontecer

Mas o que eu cuido com fé

Que a acontecer estiver.

 

Aquilo que experiencio

É o que ocorre interiormente

Sobre quanto desconfio

Que ocorreu exteriormente.

 

E a lonjura que os separa

Não há ponte que os atara.

 

 

Real

 

O real que vivencio,

Afinal, não é real.

Toda a muda tem o ousio

De me despertar, total:

 

Sempre é muda por melhor

Quando eu sempre temo o pior.

 

E é nesta reconversão

Que o real me fica à mão:

 

Nele mesmo inatingível,

Aproximá-lo é gerível.

 

 

Pedinte

 

Qualquer alma é uma pedinte

Ali, à esquina da rua,

A estender-me a mão seguinte

Ao meu sol, à minha lua.

 

Porque não vai trabalhar?

- Se o fizera, quem ficava

Neste preciso lugar

A abrir meu vulcão de lava?

 

A fazer-me ver se vou

Sendo o que deveras sou?

 

 

Dois

 

Dois modos de decidir:

Num decido qualquer coisa,

Noutro, não, não quero agir.

Porém da razão a loisa

 

Diz que ambos são modos de ir.

É que isto nisto repoisa:

- Decidi não decidir!

 

 

Erga

 

A vida é oportunidade,

Por mais que erga uma obstrução.

É boa sorte, em verdade,

Não azar em contramão.

 

É a dádiva com que eu urdo

Tudo, jamais um absurdo.

 

- E a minha gesta na vida

Cria-a numa igual medida.

 

 

Livre arbítrio

 

Todos temos livre arbítrio.

Interpretar as mensagens

Do Espírito como imagens

À letra, num cristal vítreo,

Em vez duma indicação

Subtil, um apoio à mão,

 

À confusão é levar

E a frustração consumar.

 

Assim é no mundo de hoje

Como na Revelação

Que hoje os crentes sagrarão

Dum passado que nos foge.

Nunca Deus ditou receitas

Mesmo às almas mais eleitas.

 

Quem isto não vislumbrou

Não vê o homem que as filtrou.

 

 

Permeiam

 

Deus mais os anjos e guias

Permeiam de lés a lés

Tudo, mil a inspirar vias,

Dentro de todas as fés.

Nenhuma a que é verdadeira:

Todas são em tal cumeeira,

 

Embora o filtro da cor

Filtre umas que outras melhor.

 

A escolha do coração

É que dita quais serão.

 

 

Guias

 

Os guias não interferem,

Só guiam suavemente.

A intuição que conferem,

O instinto em que alguém assente,

 

Coincidências, palpites,

Uma sensação fortuita...

- São moldes em que os concites,

Aos guias de mão gratuita.

 

Se o não são os terrenais,

São isto os espirituais.

 

 

Atraídos

 

Seja a religião qual for,

Eis-nos, morrendo, atraídos

Pelo Deus feito do amor

Até por desconhecidos.

 

Não há nuvem de judeu

Nem nuvem de protestante,

Tanto se atrai o ateu

Como o fiel de qualquer vante.

 

O distintivo é o amor

Fraterno de cada actor.

 

Tudo o mais, inerme guia,

Até afasta da alegria.

 

 

Muda

 

Os homens não se respeitam

Nem amam como deviam.

Deus adora os que se ajeitam

À muda em que mudariam

 

Tal mundo de desamor.

Não para nos controlar

Mas para a vida melhor

Em que Ele, enfim, se espraiar.

 

Nisto é que encontro, afinal,

Quanto eu for espiritual.

 

 

Morte

 

A morte tem emissários

Que vagueiam pela rua,

Buscando ignaros primários,

Cabeças ocas, na lua,

Que então caem na esparrela

Por nunca pensarem nela.

 

Quando um destes infelizes

Encontrar o mensageiro,

Sem que entenda os chamarizes

É guiado mui ligeiro

À cilada: no imo interno

Há uma portada do inferno.

 

O emissário, no seu posto,

Oculta que não tem olhos,

Ocultando sempre o rosto

Por trás de humildes refolhos.

Tem lá dois buracos pretos

Sem ter fundura nem tectos.

 

Quando já não houver mais

Escapatória possível,

Mostra o arauto os sinais

Daquele seu rosto horrível.

Então só, pálida e parda,

Viu a vítima o que a aguarda.

 

 

Mudas

 

Mudas de mentalidade

E de atitudes implicam

Mondas de mortalidade

Que os de hoje aqui sacrificam.

 

São as novas gerações

Que então erguem os pendões

 

A podar os galhos secos

Que doravante estão pecos.

 

Nunca os factos que acontecem

Mudam os que então fenecem.

 

 

Asneira

 

Um dogma é sempre uma asneira

Tão maior quão mais sagrada:

Da verdade só se abeira

O caminhante da estrada.

 

Sendo Deus sempre inefável,

Nunca a verdade adivinho.

No dogma o que é confiável

É o dedo a apontar caminho.

 

Caminho de toda a sorte

De horizontes de abordagem.

Deus é sempre o pólo norte

De mil rotas de viagem.

 

Que importa a contradição?

Quando se é grande demais

Convivem o sim e o não,

Enquanto o nunca alcançais.

 

 

Tece

 

A repressão enfraquece

Qualquer estabilidade,

Novas ameaças tece,

Protestos de liberdade.

 

Estala então a revolta,

Deus e diabo andam à solta.

 

Que é que, ao invés, estes danos

Previne sem mais enganos?

 

Fortalecem tudo a eito,

Estabilizando os planos,

Democracia e respeito

Pelos direitos humanos.

 

 

Vera

 

Na vera democracia

Qualquer um tem o direito

De viver quanto queria,

Trabalhar, tomar a peito,

Professar o que aprecia,

 

Seja homem ou mulher,

Muçulmano, ateu, cristão,

Ou doutra crença qualquer,

Qualquer outra tradição

Ou sem tradição sequer.

 

Nenhuma facção ou grupo,

Nenhum líder pode impor

Sua crença sem apupo,

Fé, religião, o que for,

Ao imo que a sós ocupo.

 

A outrem impor, no ensejo,

Ninguém pode o seu desejo.

 

Respeitando esta fronteira

Voa livre a vida inteira.

 

 

 

Perda

 

Num aeroporto há beijos,

Mais do que num casamento,

Sinceros em seus harpejos,

Tanto um adeus é tormento.

 

A parede do hospital

Orações mais fervorosas,

Mais que a igreja, por sinal,

Ouviu de almas dolorosas.

 

- O beijo como o fervor

Na perda ateiam calor.

 

 

Realidade

 

A realidade é moeda

Que tem sempre duas faces.

Por mais que um homem proceda,

Não há como isto ultrapasses.

 

Porém, a verdade inteira

É que entre ambas há a terceira.

 

E todos nos esquecemos

Da interface em que vivemos.

 

 

Desejo

 

Todo e qualquer coração

Tem ao menos um desejo,

Necessidade, pulsão,

Medo incrível do papão:

De ser, no que dele vejo,

A dar-lhe por fim sentido,

Deveras reconhecido.

 

 

Intolerância

 

As religiões cometem

Da intolerância o pecado.

Como é que depois prometem

Um homem regenerado?

 

Vivem com tanta soberba

Que nem sequer dão por isso.

O inferno lhes cobra a verba:

De alma mal têm chamiço.

 

Tão fanáticas mentiras

Tanto se tomam por Deus

Que, ao fim, o que ali respiras

É que todos são ateus.

 

Ateus até militantes

Dum deus que é só de pedantes.

 

 

Ética

 

A moral é colecção

De mandamentos e regras.

Ética é do imo a pulsão

Que naturalmente integras

 

Que te inspira a procurar

Para ti e para os mais

A plenitude que, a par,

Insatisfeitos buscais.

 

Quando naquela alguém fica,

Esta nele mortifica.

 

Tanto então a debilita

Que, às tantas, nem a concita.

 

 

Lista

 

Cristandade,

Estado islâmico,

Raça superior,

Comunismo...

- Contemporânea lista da inverdade,

Do erro tão balsâmico

E tão dinâmico

Que, em sangue e suor,

Vem jogando a humanidade no abismo.

 

Nunca a verdade é verdade,

É mera aproximação

A requerer da irmandade

Mútua complementaridade

Que é o cimento da união.

 

Então, fruto do tolerante amor,

Aflora, tarde ou cedo, uma síntese superior.

 

Que não é nunca a derradeira,

Antes a primeira

De todo o tempo que for.

 

 

Triste

 

É bem triste não ser mais

Do que o que deixei de ser

E de não fazer jamais

O que deixei de fazer.

Sou vida que não vivi:

Nesta, sim, estou aí.

 

Pendular entre o que sou

E o que não consigo ser,

Por isso é que sempre vou

Mesmo ao ter de me conter.

Vou ficando sempre a meio,

Sou um quase sem recheio.

 

Sou o que sou, que aí vou,

E mais inda o que não sou.

 

 

Pobre

 

Nenhum pobre é desmedido,

Que a pobreza é ilimitada:

Qualquer que seja o sentido

Sempre é rumo de jornada.

 

Rumo de quem continua

Vendo que pegada é sua.

 

Não é por compreensão,

É por busca de razão,

 

Ou de razão pela falta

A quem vida não deu alta.

 

 

Âmago

 

Ao descobrir minha deficiência

Acalmo o ego.

Não tenho orgulho, não, é mera ausência

Em meu refego,

Mas muda por inteiro de meu âmago o tom

E é tão bom!

 

A deficiência já não é por culpa minha,

É da natureza a linha.

 

- Que descanso

No meu remanso!

 

 

Fim

 

No fim da tristeza

Ergue-se a vida

E reza.

 

Sem aviso

Convida

Ao riso.

 

E tudo preza

Com todo o siso.

 

 

Sozinho

 

Desabar sozinho

Na solidão deserta,

Um caminho

Que aperta...

 

- Credo,

Que medo!

 

 

Desequilibrados

 

Que bom sermos desequilibrados!

O tédio jamais é feliz.

Ir caindo, caindo para os lados

E jamais cair de raiz...

 

Há quem não entenda,

Mas que prenda, que prenda!

 

 

Forte

 

Destróis-me todos os dias

E findo mais forte que nunca.

As escaras que de mim cortas e desvias

Adubam o chão que minhas pegadas junca.

Desbastado o escuro,

Eis-me cada dia mais luminoso e puro.

 

 

Maturidade

 

É uma frieza

A maturidade,

Silente avelhamento,

Lento e lento,

Da represa

Da possibilidade.

 

 

Amadurecer

 

Amadurecer

Pode ser

A viagem

De renascer

Do selvagem

Verdor amargo da escuridão.

- E há tanta luz então!

 

 

Presença

 

A presença de Deus

No imo de nossa felicidade

Não são os céus

No pasmo

Da alacridade:

- É o orgasmo!

 

 

Brincadeira

 

Entre os olhos e o que vemos

Ninguém lê.

Uma brincadeira entre anjos e demos

Tens no rosto de quem te vê.

Tens aí uma criança de olhos grandes:

Por ela o mundo inteiro vai onde o mandes.

 

 

Mistérios

 

Cultivar a vida é preservar mistérios,

Segredos por desvendar,

Lacunas por preencher em rostos sidéreos

Que passamos os dias a tentar ocupar.

 

É sempre tentar uma nova pegada

Que garanta que nunca falte nada.

 

Desde que falte, eis meu passo a requerer,

Sempre, sempre, uma coisa qualquer.

 

 

Bebé

 

 

Um bebé é irresistível,

Apreciamos começos, nunca fins.

Um velho assusta, previsível,

Do canteiro já não brotam mais jasmins.

 

Um amor carcomido,

A se acabar,

Amamo-lo na queda desprendido,

No precipício a despencar.

 

É uma véspera de morto,

Urge compensar as falhas

Com os beijos apressados do horto

Onde trabalhas.

 

Tudo é urgência

Mais que segurança

E, na premência,

Nada deveras, afinal, já vida alcança.

 

Ao invés, um bebé será promessa:

Ali tudo começa.

 

 

Contra

 

Quando perdemos, ficamos

Mais juntos contra o inimigo de fora:

Ai de quem entale os ramos

Entre nós!

Logo após

Não perde pela demora!

 

 

Demasias

 

A vida é incrível,

Com demasias para doer,

Carências de inatingível,

Mil dados a se perder,

Gente demais cheia de medos

A escorregar-nos dos dedos...

 

É horrível a vida.

- É a minha prenda preferida!

 

 

Valoriza

 

A Lua existe e valoriza o Sol,

O Sol existe e valoriza a Lua

- Só um no rol

E logo a magia não actua.

 

Do mesmo e único a repetição

É maldita,

Mata tudo o que concita,

A beleza em pó no chão,

Mero escalracho

Que piso feito capacho.

 

É da pluralidade

Que germina, de surpresa,

 A beldade

Da beleza.

 

 

Ódio

 

Ter ódio de tudo, andar

É no trilho do suicídio

Que, se não se consumar,

Invertendo o trilho, a par,

Vai findar num homicídio.

 

É sempre o comum roteiro

Da tragédia mais certeiro.

 

 

Vencedores

 

A História,

Sejam quais forem os humores,

Foi sempre a memória

Dos vencedores.

 

Dos vencidos,

Uns mortos,

Outros banidos,

Nunca nada germinou em tais hortos.

 

Nada nos garante, porém, então,

Que deles não fora, afinal, a razão.

 

 

Mesmo

 

Povo e terra o mesmo são:
Se negligencias um,

Logo o outro tomba ao chão,

Sofrendo, sem rumo algum.

Numa aldeia ou no planeta

Rasga o peito a mesma seta.

 

 

Trabalho

 

O trabalho do homem livre

Rende mais do que o do escravo.

Aquele faz com que vibre,

Este de prisão tem travo.

 

Aquele provoca orgulho

E todo o que cria os bens

Gosta de tentar do entulho

Inventar, em vez de améns,

 

Melhor modo de fazer

Para próprio benefício,

Da família que tiver,

De quem o dobrar no ofício.

 

Ao fim é tudo a dobrar

Que das mãos lhe há-de jorrar.