QUADRAS  DO  SER

 

 

 

Totalitária

 

A crença totalitária

Provém sempre deste engano:

Foi na ideia originária

Amiga de quanto é humano.

 

 

Errado

 

É sempre um conceito errado

A sociedade perfeita:

É humano o passo mal dado

Na pegada a que se ajeita.

 

 

Aguilhão

 

A verdade nunca pode

Ser de vez enunciada,

É aguilhão que nos sacode

Em perene caminhada.

 

 

Prescrito

 

O tempo de qualquer modo

Tem o destino prescrito:

Sempre todo e qualquer Todo

É sugado do Infinito.

 

 

Querela

 

Eliminem a querela

Do meio da humanidade:

- Logo acendemos a vela

À morte que nos invade.

 

 

Sagrado

 

De sagrado não há canto,

Seja qual for a magia:

Seja qual for, lugar santo

É sempre uma idolatria.

 

 

Identitária

 

Uma falha identitária

Pode levar-me a odiar

Por esta razão primária:

- Há os que são de ódio lugar.

 

 

Paz

 

O combate é o dia-a-dia.

É a paz perpétua de sorte

Que só se encontra na morte:

- Só que é o sonho que me guia.

 

 

Via

 

A verdade não é una,

Integral não se enuncia

Nem ao mundo se coaduna

Dela, aqui, uma só via.

 

 

Apostas

 

A verdade são apostas

Sobre a luminosidade:

Nunca errar é andar de costas,

Nunca alcançar a verdade.

 

 

Catapulta

 

A verdade não resulta,

Jamais ela é resultado,

Antes sempre é catapulta

Que me atira a um outro lado.

 

 

Erro

 

Sempre aqui nos mora o erro,

No coração da verdade.

Quão mais a esta me aferro,

Mais de erro tudo ela invade.

 

 

Sombra

 

Uma verdade sem erro

Nunca fará mais sentido

Que uma luz em que me encerro

Sem sombra atrás ter erguido.

 

 

Sujeito

 

Todo o sujeito é uma fera

A quebrar com fero abalo

A grade, a jaula da era

Em que tentem encerrá-lo.

 

 

Diálogo

 

Um diálogo deveras

É o que dá-me um abanão,

Responde a minhas esperas

Pondo-me a fundo em questão.

 

 

Pulmão

 

A terra tem um pulmão

Onde, da vigília à sesta,

Todos lá respirarão:

Será o pulmão da floresta.

 

 

Insegurança

 

Sofro aqui de insegurança:

Comparo meu bastidor

Com o que além outro alcança

...E é dele a cena melhor!

 

 

Heróis

 

Os heróis duma criança

São na história imaginados

Mais quem de os ler não se cansa,

Apesar dos pés cansados.

 

 

Ventos

 

Quando há ventos de mudança,

Muitos constroem muralhas,

Outros, o moinho que alcança

Moer o vento nas calhas.

 

 

História

 

A história com que topamos

É luta, conflito e falha,

Mas aquela que contamos

É todo o sol que nos calha.

 

 

Acredito

 

Acredito na unidade:

Ninguém nela desfalece.

Como na diversidade:

A diferença enriquece.

 

 

Começa

 

A vida começa quando

Um indivíduo dá conta

De quão cedo e sem comando

Acaba, logo ali pronta.

 

 

Sombra

 

Quando alguém hoje se senta

À sombra, é que há muito atrás

Alguém plantou esta lenta

Árvore que sombra faz.

 

 

Instante

 

O instante ante o desespero

Muitas vezes, na triagem,

É apenas momento mero

Que nos precede a coragem.

 

 

Prémio

 

O melhor prémio da vida

É ser viável trabalhar

Com medida e sem medida

No que vale a pena obrar.

 

 

Maldições

 

Maldições não vêm de Deus,

Vêm de nós, de nossos actos:

Isto, em crentes ou ateus,

São do castigo os impactos.

 

 

Injusto

 

Todo e qualquer acto injusto,

Embora por boa causa,

Trará com ele e sem custo

A maldição, finda a pausa.

 

 

Pisem

 

Não temo, não, que me pisem,

Erva do campo maninho:

Mal erva pisada visem,

Torna-se ela num caminho.

 

 

Saudade

 

A saudade faz o jogo

De eu até saudades ter

Daquilo que nem advogo

Nem gosto de reviver.

 

 

Dinheiro

 

O dinheiro, ai, o dinheiro

Pode ser bom servidor

Quando mando nele inteiro

Mas é sempre um mau senhor.

 

 

Biombo

 

Por detrás de cada livro,

Biombo de furta-cor,

Dispo-me no que ali vibro,

Despe-se por trás o autor.

 

 

Ilusão

 

O mundo aos pés, que ilusão!

Parece tão, tão real

E é só de tempo questão,

É tudo fumo, afinal!

 

 

Perdida

 

Confiança que se pede

É confiança perdida.

O generoso concede

Se é reclamado em seguida.

 

 

Rivalidade

 

Rivalidade é sinal

De início da decadência,

Do desenlace final

A esboroar na ocorrência.

 

 

Sonha

 

Mais correcto é que se exponha,

No juízo que o condensa,

Um homem pelo que sonha

Que por aquilo que pensa.

 

 

Moral

 

O que interessa à moral

É o respeito cego dela,

Não um efeito final

Nem se este efeito atropela.

 

 

Lúcidos

 

Dos lúcidos não é o mundo,

Findarão reconhecidos

Sempre a título (infecundo)

Póstumo dos já servidos.

 

 

Vendido

 

Sempre o vendido propende

A um preço que nada iguale.

Todo aquele que se vende

Recebe mais do que vale.

 

 

Terror

 

Faça o terror a maldade

Que fizer com mal mais fundo,

Inteligência e bondade

Findam comandando o mundo.

 

 

Retalhos

 

Somos manta de retalhos,

Restos do lido e vivido,

Serradura dos trabalhos...

- Ser pessoa é lixo erguido.

 

 

Apresto

 

Não tramo o que, afinal, tramo,

Nem apresto o que eu apresto:

Quanta vez mato o bem que amo

E faço o mal que detesto!

 

 

Vespas

 

Por mais que o diabo mexa,

Rapa-o Deus com tal ancinho

Que ao fim os dedos lhe deixa

Tal se de vespas num ninho.

 

 

Mau

 

Não há mesmo um dia mau:

Quão mais difícil a via

E largo o fosso sem vau,

- Maior luz se prenuncia!

 

 

Tramos

 

Mais robusto que os tramos

Que atam mais que cipós

É que nós precisamos

Que precisem de nós.

 

 

Força

 

Sendo Deus a nossa força,

Para não haver revés

Lembremos (que nada o torça!):

- Somos d’Ele as mãos e os pés.

 

 

Escolha

 

Tudo pode ser tirado

A um homem, excepto a escolha

Da atitude que há tomado

No caminho a que se acolha.

 

 

Normal

 

Se a vida sai do normal,

Quando fico atordoado,

Tendo então, por bem ou mal,

A esperar o inesperado.

 

 

Rumar

 

Nós não passamos a vida

A rumar à eternidade,

A eternidade envolvida

É vida em qualquer idade.

 

 

Destino

 

Mesmo vendo com bons olhos

O destino com que cismo,

Da viagem acaso escolhos

Far-me-ão sempre nervosismo.

 

 

Paraíso

 

Eu não rumo ao paraíso

Nem me ele acompanha ao lado:

Ele é o fundo de meu siso,

Meu imo a talhar-me o fado.

 

 

Prenda

 

No derradeiro confim

Há uma prenda a entregar:

- O homem que chegou ao fim

Está só a começar.

 

 

Monge

 

Deus não será monge

Na montanha a sós:

Deus não está longe,

Longe estamos nós.

 

 

Além

 

Tão de além a eternidade

Por dentro de nós se inclina

Que a ideia da divindade

Jamais pode ser divina.

 

 

Imagem

 

Qualquer imagem de santo

Em santa logo se muda

Sem o ser, pois, entretanto:

É um ídolo a que se gruda.

 

 

Nome

 

Deus que tudo em mim reclama,

Que com tanto nome apelo,

Deus, no confuso atropelo,

Sabe lá como se chama!

 

 

Imo

 

Deus não é nacionalista,

Nunca foi um deus tribal:

Existe em tudo o que exista

Bem no imo de cada qual.

 

 

Calado

 

Deus é silêncio. Calado,

Mostra-me como um mistério

Num silêncio de tal brado

Que em mim nada há de mais sério.

 

 

Apalpadelas

 

Não anda de nós fugida,

Espreita por mil janelas:

A divindade é atingida

Mas sempre às apalpadelas.

 

 

Desenvolvimento

 

Desenvolvimento humano

É cultivar a unidade

No cultivo, ora sem dano,

Da maior diversidade.

 

 

Megalómano

 

Megalómano, o desejo

É de bem curta medida

Ao medi-lo deste ensejo

Na semente desmedida.

 

 

Olhos

 

A fé não nos fecha os olhos,

Abre-nos para a alegria

Que há na dor e nos abrolhos

Do mundo no dia-a-dia.

 

 

Lágrimas

 

Mascarados por um dia

Do entrudo com que os abales,

Há na terra da alegria

De lágrimas muitos vales.

 

 

Reino

 

O reino da exaltação,

Das catástrofes ao fim,

Ignora o que vale então

O nosso cotio assim.

 

 

Além

 

É sempre no imprevisível,

Fora de ordem, tradição,

Que de Deus devém visível

A gratuita doação.

 

 

Milagres

 

Os milagres são a pedra

Que, bem contra o fatalismo,

Nos contam que ao lado medra

Doutro mundo o fundo abismo.

 

 

Graça

 

A graça que em todos flui

Não impõe lei para a reza.

Nunca a graça substitui

Mas fecunda a natureza.

 

 

Inocência

 

A inocência é a condição

Mais difícil de provar

Sempre que uma acusação

Sem ética a teia armar.

 

 

Atenção

 

Não há nada que preserve

A atenção naquilo que é,

Pois quando o sapato serve

Já ninguém pensa no pé.

 

 

Companheira

 

A companheira constante

Que todos temos na vida

É a morte que espera adiante

A hora da despedida.

 

 

Medo

 

Homem que confessa o medo

Naturalmente, humildoso,

É aquele ante quem concedo

Que é deveras perigoso.

 

 

Inviável

 

A vida é, no fundo, um sonho

Que descubro (ao nela ir

E após quanto nela ponho)

Inviável de definir.

 

 

Bastante

 

Se vives tempo bastante,

O inviável, o invivível,

Compreendes logo adiante

Que ao fim não são o impossível.

 

 

Tapete

 

O tapete inacabado

No tear da minha avó

É a vida cá deste lado:

- Ei-lo ali; eu cá estou só.

 

 

Constante

 

Algo há de constante

Nas coisas que mudam:

Lá no banco adiante

Sombras velhas grudam.

 

 

Escapam

 

Porque é que todos os credos

Escapam tanto à razão?

A comida sem segredos

Farta de desilusão.

 

 

Cuida

 

Embora de ouvido mouco

E sem provocar inveja,

O que cuida que está louco

Implica que não esteja.

 

 

Negatividade

 

Toda a negatividade

Cai directa em depressão

E aquilo que nos invade

Só mil problemas serão.

 

 

Casa

 

A tua casa é o que levas

Contigo onde quer que vás,

Não o que te prende, as grevas

Do que foste para trás.

 

 

Auto-comiseração

 

Auto-comiseração

Cumpre eterna profecia:

É o que na consumação

Resta ao fim de cada dia.

 

 

Criatividade

 

Qualquer criatividade

Sempre é permitir mil erros.

Arte é saber, de verdade,

Quais salvamos dos aterros.

 

 

Pacientes

 

Os problemas são pacientes,

Ficam onde os deixo agora,

Sem pressas inconvenientes,

Tal se eu nunca fora embora.

 

 

Sopre

 

Sopre donde sopre o vento,

Sempre a chuva há-de tombar

Na cabeça de tormento

Do sem-abrigo sem lar.

 

 

Perturbado

 

Um homem perturbado

É, para os outros, bom:

Mostra descontrolado

Qual, deveras, seu tom.

 

 

Trabalho

 

O trabalho onde me enfio

É a barreira que persiste

Entre a vida e o vazio

Que por dentro e além existe.

 

 

Profundidade

 

Dentro em nós profundidade

Existe de tal fundura

Que nem há termos com que há-de

Descrever-se-lhe a figura.

 

 

Sacrificar

 

Aquele que está disposto

A sacrificar a vida

Pode matar, do seu posto,

Seja quem for, em seguida.

 

 

Revitalizante

 

Trabalho que corre bem

Sempre é revitalizante.

A ociosidade, porém,

Ao invés, é atrofiante.

 

 

Sempre

 

Aquilo que um dia foi

Deveras jamais findou:

Mesmo ignorado, remói,

Para sempre em mim ficou.

 

 

Parece

 

Se quanto parece ser,

Afinal não é de todo,

Então o que é, parecer

Não há-de, de nenhum modo.

 

 

Distraídos

 

Os génios são distraídos.

O problema, em tais convénios,

É que muitos conferidos

Distraídos não são génios.

 

 

Acredita

 

Há sempre certas verdades

Em que ninguém acredita

Nem se com elas invades

Os olhos do que as evita.

 

 

Grande

 

O grande romance é aquele

Cujas pessoas, após

Nos arrepiarem a pele,

Jamais morrem dentro em nós.

 

 

Ritmo

 

As mudanças que há na vida

Não se irão travar sequer,

O ritmo trepa a batida,

Mais a muda irá crescer.

 

 

Momento

 

Nada permanece igual

Por um momento sequer,

Tudo é mudança, afinal,

Embora o não queira ver.

 

 

Conto

 

Uma história sempre é um conto

Que a mim conto sempre ao jeito

De quem conta e faz o ponto

Dele próprio a respeito.

 

 

Desconhecido

 

Medo do desconhecido

É o nosso medo, afinal,

E a muda tem no sentido

Um ignoto por fanal.

 

 

Cariz

 

Jamais é o evento externo

Que me talha meu cariz,

É sempre um caminho interno

Onde eu sou eu de raiz.

 

 

Atitude

 

A atitude resoluta

Que à realidade assiste:

Uma verdade absoluta

É coisa que não existe.

 

 

Acrescento

 

É o facto acontecimento,

O significado, não:

Este é sempre o pensamento

Que acrescento àquele chão.

 

 

Factor

 

Um facto é factor externo.

Ao invés, significado

É o caminho meu interno,

Eu àquele acrescentado.

 

 

Distinguir

 

Para que deveras viva

Há que distinguir de entrada:

A reacção é instintiva,

A resposta é ponderada.

 

 

Agora

 

Um agora não é um ontem,

Também não, um amanhã,

Por mais que os medos me apontem

Mil monstros na minha chã.

 

 

Acontece

 

O que eu penso que acontece

Não é o que acontece mesmo,

É um ontem que não me esquece

Num hoje semeado a esmo.

 

 

Dado

 

Não existe o dado puro,

Que todo o dado se entrosa

Na rede onde me seguro

E a que de medo me cosa.

 

 

Originário

 

Todo o dado originário

Se insere num tal conjunto

Que, ao termo, o que foi primário

Não é já sequer o assunto.

 

 

Lista

 

Por muito que à lista aliste,

Jamais tudo à lista alisto:

Tudo o que pode ser visto

Jamais é tudo o que existe.

 

 

Ângulo

 

Mudança para pior

É aquilo que não existe:

Tenho de olhar, ver melhor,

Mudar de ângulo o que aviste.

 

 

Questão

 

A questão não é jamais

Se a vida terá mudança

Mas qual a mudança a mais

Que a vida aqui nos alcança.

 

 

Funcional

 

A vida nunca se acaba,

Sustenta-se eternamente

Adaptando-se, aba em aba,

Por um funcional presente.

 

 

Melhorar

 

A vida, eterna se adapta,

Estará sempre a mudar

A fim de se manter apta:

Muda para respirar.

 

 

Fies

 

Não te fies na aparência:

A vida é sempre adaptável,

Modelável por essência

Num eterno sustentável.

 

 

Anuncia

 

A mudança o que anuncia

É que algo a não resultar

Anda na noite do dia

Onde escrutino o luar.

 

 

Acolha

 

Acolha você o que acolha,

Nada parece o que ele é:

É sempre o lugar donde olha

Que determina o que vê.

 

 

Motor

 

O motor da criação

Há-de ser sempre o desejo,

Jamais a cautela, não,

Pois só nos trava no ensejo.

 

 

Medida

 

Ocorra quanto ocorrer,

A sabedoria tem

Medida certa ao que houver:

- Está sempre tudo bem.

 

 

Escória

 

O que olhar já se enobrece

Se lhe traz boa memória:

Mantém a luz que apetece,

Desaparece o que é escória.

 

 

Até

 

O futuro nunca vem,

Nunca, de fora até ti.

Donde o futuro provém

De ti através é aqui.

 

 

Sossego

 

Quando em sossego eu estou

De mim comigo ao abrigo,

A alimentar o meu voo

Aí a força está comigo.

 

 

Físico

 

Sempre o físico é ilusório,

Que, onde está, você não é

E, mesmo sendo, o envoltório

Jamais é quem é você.

 

 

Depósito

 

A vida atinge o propósito

Através do que ela alcança

Ao preencher o depósito

Do que for sendo a mudança.

 

 

Autodefinição

 

Cada agir que tu praticas

É autodefinição:

Sempre a ti nele te implicas,

Fica ali tua impressão.

 

 

Cura

 

A cura duma doença

Vale cinquenta por cento,

A outra metade é a tença

Da fé que partilhe o evento.

 

 

Atraso

 

Porque é que aqui me não lembro

Do que herdei das outras vidas?

- Se em cada lado hei um membro,

Me atraso em todas as idas.

 

 

Interpretação

 

De tão rica, Deus não deu

De si a vera guarida,

A interpretação do céu

É feita à nossa medida.

 

 

Sumário

 

Recordamos, afinal,

O que nunca foi, sumário:

Aquilo que é mais real

Ocorre no imaginário.

 

 

Verdade

 

A verdade não se encontra

Nem nos contras nem nos prós.

Negaceia-nos, bilontra,

E encontra-nos ela a nós.

 

 

Mesquinhez

 

Dos homens a mesquinhez,

Tudo inçando com a grama,

É um pavio que de vez

Só anda em busca de chama.

 

 

Ventos

 

É quando os ventos da História

Sopram contra os pára-ventos

Que acorda a eterna memória:

Quem pode desviar os ventos?

 

 

Importância

 

Todos os eventos ganham

Ou perderão importância

Dos interesses que apanham

No momento a relevância.

 

 

Divertido

 

O que define o teor

Daquele que a sério pinta:

Divertido é ser pintor

Muito mais que ser a tinta.

 

 

Tempestade

 

Ao sair da tempestade

Não sou quem eu lá entrei,

Tal é o sentido e verdade

Do furacão que passei.

 

 

Decorarmos

 

Arte, em geral, é uma forma

De decorarmos o espaço.

Música, ao invés, por norma,

Decora o tempo no traço.

 

 

Única

 

Todo o mundo silencia?

Uma voz única goza

Do poder que não teria

E assim é tão poderosa.

 

 

Dados

 

Os príncipes e as princesas

Que admirais com despudor

São meros dados nas presas

Dum viciado jogador.

 

 

Impressão

 

A primeira impressão conta

Tanto que são mais de dez

As precisas, se se aponta

Para se virar do invés.

 

 

Pecado

 

Pecado? Em Roma, talvez,

Mas aqui como no céu,

Onde Deus é pai de vez,

Outro é decerto o labéu.

 

 

Berço

 

Se for bom e em tudo terso,

Ressalta logo a evidência.

É sempre a falta de berço

Que se esconde na opulência.

 

 

Voltas

 

As voltas que o mundo dá!

Dá tantas, parece louco,

Sempre de cá para lá...

Dá voltas, mas muda pouco.

 

 

Ferida

 

Tem uma ferida o credo

Que o marcará desde a infância:

Quanto maior for o medo

Menor é a tolerância.

 

 

Imaginação

 

A nossa imaginação

Faz-nos sofrer sem juízo,

Muito mais sem intenção

Do que seria preciso.

 

 

Nunca

 

O que nunca se governa

Nem se deixa governar

Vai ter uma vida eterna

Sempre, sempre a esbracejar.

 

 

Fanatismo

 

Fanatismo é epidemia

Que se espalha pela palha

Que incendeia qualquer dia

Sem ninguém ser a acendalha.

 

 

Rivalidades

 

Quando as rivalidades velhas crescem

Ante a nova riqueza em perspectiva,

Da mistura inflamável eis que descem

Do inferno os fogos sobre quanto viva.

 

 

Crianças

 

Nossa imaginação mantêm activa

As crianças e jovem nos mantêm

O nosso coração. Imperativa

Por um melhor porvir a acção sustêm.

 

 

Grandeza

 

Dificuldade enfrentada,

Mormente quando mais lesa,

É que pesa, na jornada,

Entalhada de grandeza.

 

 

Adormeceu

 

Aquele que se esqueceu

De dar graças, na medida

Em que tal aconteceu,

Adormeceu para a vida.

 

 

Pouco

 

Pouco importará o tesoiro

Se em redor só atar gavinhas,

Mesmo tumba adubo de oiro

Cobrem-na as ervas daninhas.

 

 

Holofotes

 

A vida sob holofotes,

Em cima do pedestal,

Do mundo o topo: dichotes,

Triste e só, - como é fatal!

 

 

Pele

 

Andar a fazer de Deus

Se ninguém há como Ele?

Tanta estranheza há nos céus

Que, às vezes, Deus usa pele.

 

 

Mais

 

Mais do que a religião

Nossa espiritualidade

Elementar é que é o chão

De caminhar na verdade.

 

 

Não-violência

 

Princípio da não-violência,

Transcendendo as religiões,

Pacífica coexistência

Traz ao mundo a que o propões.

 

 

Compaixão

 

A compaixão é a vontade

Espontânea de actuar

Para os outros de verdade

- E a todos traz bem-estar.

 

 

Adiada

 

A morte adiada

Tem a propriedade

Sempre inesperada:

- É felicidade.

 

 

Salvação

 

É a salvação do que ouvir

Mais do que do que inventar:

O invento, ao não se expandir,

Morre sem frutificar.

 

 

Trás

 

A poesia é adivinhar

A secreta mensagem

Que por trás da roupagem

Se ocultar.

 

 

Ricos

 

Os ricos são solitários,

Desta vida na lonjura,

Perdidos itinerários

Num deserto de secura.

 

 

Alegria

 

A alegria me desbasta

E, às vezes, também desgraça:

É que acaso me devasta

Doutrem a fatal devassa!

 

 

Ângulo

 

Sempre do lado de lá da porta,

No ângulo cego,

É neste ignoto que pego,

Isto é que eternamente me transporta.

 

 

Perversidade

 

A perversidade da vida

É de tal casta

Que, mínima embora, até mal pressentida,

Ainda assim devasta.

 

 

Enlaça

 

O pequeno e provisório

É que enlaça o que me enlice.

De assim ser premonitório

 É o contrário da velhice.

 

 

Rispidez

 

Da rispidez que me agrida

Jamais nós nos livraremos.

A vida é ríspida, a vida,

Mas é tudo quanto temos.

 

 

Meta

 

Podes não ser o poeta,

Que não tens jeito nem tema.

Mas és o poema.

Ora, isto é que é a meta.

 

 

Vezes

 

Tantas vezes já morri,

Mas nunca morri de vez,

Mortes de que mais vivi:

- Renasci do meu revés.

 

 

Ou

 

Na vida, trigos e joios

Ora perdem ora ganham:

Há os que perdem os comboios

E os que os comboios apanham.

 

 

Não

 

Há uma felicidade

Singular

Em não ter como em ter uma saudade

Para chorar.

 

 

Rotina

 

A vida ensina

Que, de repente,

A felicidade é uma rotina

Sempre diferente.

 

 

Sem

 

Viver só é viver frio,

Na insanidade

Dum corpo trémulo de vazio

E de saudade.

 

 

Morrer

 

Morrer não é um fim

Nem um começo,

É mais um passo na vida sem fim

Onde infinitamente permaneço.

 

 

Costumeiras

 

Há coisas tão costumeiras

Que, apesar de bem reais,

Quando tu delas te abeiras,

Já vê-las não vês jamais.

 

 

Negra

 

A mais negra conjuntura

Tem uma oportunidade,

Escondida na negrura,

Dum ganho que nos agrade.

 

 

Junto

 

Os ricos e poderosos,

Junto ao palácio do rei;

Sempre longe, a lã da grei,

Os pobres nunca famosos.

 

 

Dentro

 

Se apenas for a aparência

Que o vulgo dentro em ti vê,

Nunca mais vê a evidência

Do que teu dentro em ti é.

 

 

Herói

 

Herói é quenquer que ganha,

Mas mais herói, sem saber,

É o que tenta e nunca apanha

O que bem tentou vencer.

 

 

Equilíbrio

 

Nossa relação ao mundo

É de apego e desapego.

Neste equilíbrio fecundo

Sucesso mora e sossego.

 

 

Muita

 

Muita mulher é precisa

Para esquecer o presente

Que, assente, melhor ajuíza:

- A mulher inteligente.

 

 

Tradutor

 

Tradutor os olhos são

Do coração cuja imagem

Os empenhados irão

Entender como linguagem.

 

 

Existência

 

A existência é tolerável

Só por este leve manto

Que nem sempre anda alcançável:

- De amor e de arte o recanto.