SONETOS
Chinesa
A comida chinesa que trouxeste
Para a minha mulher (que está doente)
Obrigada não ser à inclemente
Cozinha em que não sou nada que preste,
Que gozo ao paladar, manjar celeste!
Renascem os sabores ao presente
De tua mão amiga que nos sente
Tal se de ti for nossa vida agreste.
Porém aquilo que bem mais nos cura
Não é de tua prenda esta figura,
É o que nela vislumbro bem no fundo:
É saber que afinal há mais alguém.
Abriste uma janela para além:
- Vieste e inauguraste-nos o mundo.
Peso
Se tu contas o dinheiro,
Ou não tens quase nenhum,
Ou, contado por inteiro,
Mal dele tens o fartum.
Só quando o tens de pesar,
Já sem conta em teu defeso,
É que podes calcular
Qual, afinal, o teu peso.
Teu peso, não teu valor,
Que quanto mais pesa aquele
Menor é deste o teor,
Até que ao fim, oca pele,
Só veneno em ti se sente,
Tambor vazio de gente.
Antes
Se choras o que perdeste,
Inda, ao fim, perdes mais bens.
Não chores, antes investe
Lutando pelo que tens.
Não chores o sofrimento
Que marca qualquer idade.
Luta, momento a momento,
Por tua felicidade.
Não chores quem te abandona,
Que te não requer abrigo.
Luta por ter sempre à tona
Aqueles que estão contigo.
Seja qual for tua pena,
Então tens a vida plena.
Resposta
Se não há resposta certa,
Qualquer uma então servia
Porque então permitiria
Fechar esta porta aberta
E não mais se preocupar.
Pensar mais? Findou a aposta,
As opções são a resposta
Que serve para encerrar.
É que, se eu pensar demais,
Posso encontrar mil respostas
Que não encaixam jamais
No mundo que trago às costas,
No que busco que ele seja
O mundo que o mundo almeja.
Autênticos
Sempre autênticos mais somos
Com um qualquer velho amigo
Que com qualquer outro fomos,
Sendo embora quem eu sigo.
Provavelmente sabemos
Um sobre o outro já tudo.
Necessidade não temos
De explicações sobretudo,
Nem de qualquer fingimento.
Em vez disso partilhamos
Experiências de momento,
Memórias loucas que amamos
E entre nós o firme chão
De funda compreensão.
Serve
Para que serve um amigo
Se é só de o tempo matar?
Busca-o para ser abrigo
Das horas do dia a par.
Dele a função é o fastio
Afinal nos saciar
E não o nosso vazio,
Que há mais com que o colmatar.
Tem cabimento a alegria
E a partilha de prazeres.
Nos orvalhos que aprecia
Tem o coração haveres,
A manhã dele ali preza
E se refresca em tal presa.
Importa
Tendo um amigo não me importa nada
Que deus ou homens cá me prejudiquem,
Arrasem sonhos ao correr da estrada.
Dele as palavras são que a mim se apliquem,
Por que me oriento. Contarei com ele
Num elogio que gentil me faz.
Tendo um amigo, nenhum oiro impele
Nem o dom mesmo de agradar que apraz.
Sento-me ao lado, a sorrir de irmão.
Deixa a riqueza de ser um tesoiro.
Cobiço apenas de arte ter a mão
De, em letras tortas mas de bom agoiro,
Traçar, na voz dum coração composto,
O hino à grandeza escrita no seu rosto.
Sempre
Quero ser o teu amigo
Para sempre, sem rupturas,
Nem discórdias, nem perigo.
Quando os montes nas suturas
Se rasgarem arrasados,
Os rios findarem secos,
Nos invernos trovejados
Relampejar pelos becos,
Quando no verão nevar,
Céu e terra se fundirem
Sem mais nada os separar
E ao Todo todos se unirem,
Apenas então aí
Era de embora ir de ti.
Inexistentes
Cristóvão e Filomena,
Dois santos inexistentes,
Dão-nos a verdade plena
Dos dogmas de fé dos crentes.
Por trás algo de inefável
Entremostram, sugerindo;
Pela frente é o infindável
Cortejo de sons mentindo.
Mentira mesmo a dobrar
Por quererem-se infalíveis,
Pois que à primeira, larvar,
Estoutra juntam, incríveis.
Ora, verdade sagrada,
Só aqueloutra entremostrada.
Feia
Pode um homem ser amado
De cem curvas maravilhas,
Se uma feia o põe de lado,
Eis-lhe a confiança em estilhas.
As outras cem enganadas
Eram e esta percebeu
Que ele era um feixe de nadas
Que a nada presta de seu.
Uma mulher, ao invés,
Quando amada uma só vez,
Julga que os cem que a rejeitam
São os parvos que se enfeitam
De nadas que em redor herdem
- E nem sabem o que perdem!
Tremelicando
Tu eras uma folhita
Tremelicando em meu peito.
O vento da vida a quita
Por ali, do acaso ao jeito.
Eu, primeiro, nem te vi,
Nem reparei que comigo
Ias, até que senti
Que meu peito é teu abrigo.
Tua raiz me atravessa,
Corre em meus fios de sangue,
Fala em minha boca avessa,
Floresce em meu lado langue.
Sei lá bem onde sou eu,
Onde és tu que em mim cresceu!
Condenado
Sempre eu vivo condenado
À pessoa a quem amar.
Por apaixonado andar,
Convenço-me: tenho um fado.
Meu inteiro coração,
Por ela sempre ocupado,
Fica de vez empenhado
Em procurar expansão
Ilimitada depois.
Por causa da convicção
De que um mais um não são dois
Mas antes a chave à mão
De que aqui não me limito,
Vou no rumo do Infinito.
Transitar
Desejo de transitar
É o amor: a uma outra vida.
Dois amantes, ao se dar,
Se entredevoram, sumida
Morte um no outro, de modo
A atingir um novo ser.
A vida tem um engodo
De em nós não permanecer,
A repetir, repetir.
Repetir é estar parado
No mesmo lugar, fingir
Que voo num voo alado.
O amor quando me atravessa
Lê outra na mesma peça.
Mais
O amor é dor e prazer,
É gostar da companhia,
De estar junto por querer,
Mas quer mais em cada dia.
Pois onde anda o amor completo?
É a ambição que mata o amor,
Querer ter do chão ao tecto
O outro inteiro e o mais que for.
A ambição leva à desgraça,
O drama grassa, a paixão
Sem controlo então se esgaça,
Folha escassa, tomba ao chão,
Árvore a cair no Outono
Porque me larguei sem dono.