DA   RIMA  AO  RITMO

 

 

 

Concorde

 

Manter a paz pela força,

Não:

Qual da música o acorde?

Só quando o coração

Por ela torça

Com os mais concorde.

Aí talvez a multidão

Acorde.

 

 

Ricos

 

Os ricos não são problema,

São um tema.

O problema são os picos

Que nos ferem e que não dobres

Na jornada:

O problema é que os ricos

Não querem saber dos pobres

Para nada.

 

 

Receita

 

É a receita protocolar

Que conviria que todos apanhem:

- Para ganhar

Importa que os mais também ganhem.

 

Da empresa familiar

À multinacional,

Do palácio ao lupanar,

Do mundo ocidental

Ao terceiro mundo que teima escravizar...

 

E é porque explorar é dominante

Que todos perderemos,

A montante e a jusante,

Adiante,

Seja qual for o tempo que o adiemos.

 

 

Luz

 

Todas as coisas ao ver

À luz de Deus,

A luz de Deus leva a entrever

Em todas as coisas.

Bons ou maus sejam embora os fóruns teus,

Ali repoisas.

 

Então a Luz, qualquer que seja o revés,

Serás de vez.

 

 

Excessiva

 

Dor excessiva não dura.

Cada qual

Integra o mal

E se habitua:

O tempo é a cura

Do veneno da pua.

 

 

Entulho

 

Há tanto entulho

A entulhar de quenquer

A vida toda!

Sinto tanto orgulho

Em nada saber

Do que estiver na moda!...

 

 

Máquina

 

Por estranho que pareça,

Nos bons e nos maus harpejos,

O mundo é uma máquina travessa

De cumprir desejos.

 

O que creio que a isto se esquiva,

Esquisito,

É só por não vê-lo na perspectiva

Do Infinito.

 

 

Dom

 

A vida é um dom,

Não requer nada em troca.

Mas é tão bom,

Apesar de tanto mal que nos faz,

Que me choca

Não retribuir de modo capaz.

 

Temo o meu esquecimento,

Portanto retribuo

Ou, ao menos, tento:

- Então, lúcido, actuo.

 

 

Reverso

 

Eis o reverso

Quando na pedra topemos

Que nos rasga a pele:

Por vezes o Universo

Quer que reparemos

Nele.

 

 

Herói

 

O culto do herói traz

A medida mais rara

Ao coração.

Ora, maior herói nem é o que faz,

É o que naquele repara:

- É quem, afinal, presta atenção.

 

 

Ambição

 

A ambição humana

Jamais sacia o sonho:

Eternamente de nós emana

Que quanto aqui componho

Sempre o poderei propor

De novo e melhor.

 

- Tamanho é o grito,

Em nós, do Infinito.

 

 

Escondida

 

A maior parte de nossa vida,

Mesmo de quem vemos todo o dia,

Anda escondida,

Nunca ninguém a desfia.

E o mais estranho desta venda

É que nem a nós se nos desvenda.

 

 

Visão

 

A visão

Que cada qual tem do passado

É tão estreita e aguda na selecção

Do traslado

A que tudo reduz

Que o que nuns é escuridão

Noutros luz.

 

 

Introspecção

 

A introspecção reflectida

Conduz à honestidade

Connosco e, de seguida,

Com os mais.

 

A esta luz, a opacidade

Dos vitrais

De nossa vida

Devém magicamente colorida.

 

 

Montanhas

 

O que mais estranhas

Das vidas

Nos escolhos

É que as melhores montanhas

Estão sempre escondidas

Mesmo à frente de nossos olhos.

 

 

Identidade

 

Todos os amantes

Da identidade procuram a ilusão.

Mas a amorosa ligação

É, no correr dos instantes,

Quase só imaginação:

O amor, além do que for agora, é também

Recordar o que foi,

Imaginar o que vem.

E todo exalta. E todo dói.

 

A mente

É uma constante

Impaciente:

Num instante

Imagina a totalidade fabulosa

Duma ligação amorosa.

 

A gralha

É que há sempre uma falha.

 

 

Ausência

 

O sentido da vida,

Abertura ao Infinito,

É uma eterna ausência por que grito,

Realidade desmedida

 

Por que meu imo anseia

E que jamais alcança,

De tão longe e fundo nos ameia...

- Então é uma perene esperança.

 

 

Desumanidade

 

A estrela

Da Natividade

Revela

A humanidade de Deus

E a nossa desumanidade:

Somos o curral da divindade.

- Como é que nos diremos filhos seus?...

 

 

Indefinidamente

 

Não é possível o fundamentalismo:

Não se pode crer

Do Infinito no abismo

Sem querer

Ir indefinidamente além

Do que creio, do que vivo – do aqui que às mãos me tem.

Aqui ando sempre fatalmente errado,

Até chegar ao fim de meu fado.

 

 

Pecado

 

Absolutizar o relativo,

Relativizar o absoluto

É o pecado mais esquivo

Das religiões produto,

 

Além do cultivo duma pureza

Que só da seita se preza:

 

O que é dos nossos, puro,

Tem o céu seguro;

 

Os outros, impuros, têm por eterno

Destino o inferno.

 

Este é que é o pior pecado:

É que é sempre tido por sagrado.

 

E é a fórmula com que nos mata:

- Assim do Infinito a todos nos desata.

 

 

Percorre

 

Percorre firme tua

Rua.

Talvez sejas alguém

Que, na terra despercebido,

Um dia chegou à Lua

E dalém,

De pé nas alturas subido,

Acenou após

Para todos nós.

 

 

Dor

 

O ódio dói.

Não tivemos já dor suficiente?

O amor não mói,

Dá frescura, paz a toda a gente

E uma tal segurança

Que nem a morte o alcança.

 

 

Medo

 

Tens medo do trovão,

Tens medo da floresta.

Mas não,

Quando o fundo vislumbro que em ti resta,

 

Tens aí

Apenas medo de ti.

 

E medo do que vemos, atroz,

Nos outros de nós.

 

 

Criar

 

Criar

É uma bênção e um dom.

Cuidado, porém, para não se tornar

Corrompido.

Há uma fronteira entre paixão

E obsessão,

Limite que nunca pode ser

Transgredido.

 

Entre ver

E apenas pensar em ver

Tudo muda de sentido.

 

Entre o arrebol

E a noite

É o mesmo o sol

Mas acolá luz e aqui é um açoite.

Ninguém tal ambiguidade pode ter no rol

Do canto onde se acoite.

 

 

Interior

 

Muitos não vêem a paisagem interior,

Não olham para dentro.

Cuidam que, se é interior, é escura,

Sem luz nem cor,

Não há nada para ver ali ao centro.

Perdem, quando a vida depura

Esta triagem,

O melhor

Da paisagem.

 

 

Luta

 

Quem é que não luta

Por manter o que tem?

- Aquele que desfruta

Dum mais valioso bem:

 

Família com afecto,

Amigos que lhe dão tecto,

 

Comunidade lesta

A tornar-lhe a vida em festa.

 

 

Pegadas

 

Os actos dos homens são pegadas

No deserto.

Nas dunas, do vento da vida as rajadas

Põem-lhes termo bem perto.

 

Nada foi predestinado

A durar eternamente.

Ser nómada é o fado

Universal existente.

 

Uma Humanidade firme no chão,

Eis a eterna contradição.

 

 

Eventos

 

Os eventos,

Grandes ou pequenos,

Nem sempre seguem os planos

Sedentos

Dos humanos,

Nem sequer os mais plenos

Engodos

Dos mais subtis de todos.

 

 

Lume

 

Dá calor e luz,

O amigo é o lume.

Quando o vejo, o que o traduz

E resume

É a alegria funda

Que me inunda,

Peregrino perdido

No deserto

Que encontra por fim o sentido

Do caminho certo.

 

 

Invejoso

 

O invejoso

Ora tem menos, ora mais

Que o invejado.

O que lhe dá gozo

É do bem o repúdio dos sinais

Nos demais

Com que não se há partilhado.

 

Quanto mais tem

Ou melhor é

Mais a inveja se mantém

Ali ao pé.

 

Não alardear

Qualidades nem defeitos,

Eis como não provocar,

Eis como palmilhar

Os trilhos mais direitos.

 

 

Religião

 

A minha religião

Adora Deus em cada semente.

Nas igrejas pouco mais há senão

Flores cortadas onde a vida mente.

 

Do poder é tal a obsessão

Que em tudo tendem a perder o oriente.

 

E no fundo, na raiz,

Há uma realidade que praticamente ninguém diz.

 

 

Dar

 

Melhor é dar

Que receber:

Quem der fica a ganhar,

Quem receber fica a perder.

Se não nos bens, na relação

Que é o que nos finda sempre à mão.

Porque o mais, mais ou menos à toa,

Sempre voa.

 

 

Cota

 

Vive como um idiota,

Morres como um miserável.

Vive como um miserável,

Morres como um idiota.

No trilho viável

É, pois, igual a cota.

Ir por aí, afinal,

De que vale?

 

 

Surpresas

 

O pessimista

 Só tem surpresas agradáveis,

O optimista,

Só desagradáveis.

 

Contudo, aquele é triste

E este alegre,

Para que o equilíbrio do que existe

Se regre.

 

 

Esconder

 

Podes esconder um facto.

Dele esconder-te, porém,

Não há pacto

Que te liberte,

Dele eternamente refém,

Na mão da memória que nele te aperte.

 

 

Peneirada

 

Aprender

A viver sem guião,

Cada dia escrever

A palavra que vier à mão

Apenas peneirada

Por ser a que nos for mais adequada...

 

Tudo aceite, todo entregue

Finalmente à paz que me persegue.

 

 

Juntos

 

Juntos permanecermos,

Um ao outro sempre nos amarmos

Até aprendermos,

De modo que, ao amor darmos,

Quão mais amor de mim e de ti desça,

Mais cresça.

 

 

Um

 

Eu e tu, mulher, somos dois,

De todos os mundos no prazer incomum.

Depois

Sobretudo

Somos um.

E um é tudo.

Tudo!

 

 

Vivo

 

Ver quem amo vivo

Abre-me ao mundo:

Terei de viver, assertivo,

Para vivê-lo, jucundo.

Então, a vida com que lido

Aí toma sentido.

 

 

Elástico

 

O corpo é elástico

Mas nunca tão elástico como o tamanho interior

Perifrástico

Que, desde que te vi,

Se me anda a impor

A encher-me inesgotável de ti.

 

 

Vens

 

Vens

E logo me estou nas tintas

Para as fintas

Da vida e dos bens

Que me faltam.

 

É que em nós os rios correm

E os montes saltam

Mesmo quando morrem.

 

É que não morrem: connosco em nós concorrem

E na lonjura nos exaltam

Por todas as paisagens que nos faltam.

 

 

Sorte

 

À sorte

Mil trancos e barrancos nos tecem

E voltam a tecer.

Não há morte:

Os indivíduos por aqui acontecem

E deixam de acontecer.

 

Mais nada,

Tudo apenas as mil curvas da estrada.

 

Deste lado do caminho,

Que o outro mal adivinho.

 

 

Mistério

 

É o mistério

Que nos torna felizes.

Do vazio dele sob o império

Mergulhamos às matrizes,

Voamos ao voo sidéreo...

 

Respiro, mundo, os matizes,

Terreno e aéreo,

Do que dizes.

 

 

Perco

 

Quando me perco em teu corpo, em completa derrota,

Sou feliz.

Que vitória trepa a tal cota

Em tudo o que fiz?

Das ideias feitas há sempre um avesso

Em que tropeço:

E tão verdadeiro

É o segundo como o primeiro.

 

 

Acidente

 

Tudo o que importa

Ocorreu por acidente

Ou por amor, o que, evidentemente,

É o mesmo, pela outra porta.

Não é possível, claro,

Mas é o que somos: este bem imprevisível e raro.

 

 

Ignora

 

Quando ignora o que fazer,

A criança sorri.

Quando ignora o que fazer,

O adulto teme.

E logo ali

O mundo inteiro geme.

Quando não há o que deveria haver,

Quem o inventa?

Não há outro remédio: tenta, tenta, tenta!...

 

 

Pesa

 

A tua mão pesa,

Mas não te ter pesa mais,

É o que me segura, presa

Do inferno deste cais.

 

Quanto mais a dor magoa

Mais o meu amor te doa.

 

Matrimónio cais de embarque?

Mas há prisão no meu parque!

 

Porém, o outro lado também...

Ah, meu amor, minha nova mãe!

 

 

Retorno

 

O retorno ao lar

É uma pontinha de céu.

Nada vale nada, senão pelo que permite amar,

Desatar o véu.

O melhor objecto

É o que ao amor ofertar

O melhor tecto.

Um lar, uma família,

Só quando for casa de amar

Perenemente em vigília.

 

 

Pior

 

Amar o mundo é vivê-lo

No que tiver de pior,

O fio da navalha entendê-lo

De tão longe que nem provoca temor,

Ver que da maldade o traço

Nunca desfará o abraço.

 

 

Transgredir

 

Transgredir o limite

É que mantém são.

Há tanta vida além da vida que concite,

Tanto chão além do chão!

Quando te vislumbrei além de todos os limites

É que nos vi livres já de todos os desquites.

 

 

Ganhar

 

Ganhar a vida é ganhar dinheiro?!

Não entende a vida com que lida

Quem tal cuida tão rasteiro

E muito menos entende o que é ganhar, certeiro,

No que à vida nos convida:

- Só há ganho num amor cimeiro.

 

 

Apenas

 

Nenhum intelectual ganha

A felicidade.

A verdade

Que laboriosamente apanha

Não é nunca a sabedoria...

- E apenas esta vive na alegria.

 

 

Devir

 

Uma mulher

Com a cabeça em teu ombro reclinada

O bastante pode ser

Para a vida pequena

Devir desmultiplicada

- E então valer a pena.

 

 

Tropeada

 

Viver

É chorar a morte do que fui

E rir o nascimento que serei.

Ser

É o que eternamente flui

Na cósmica tropeada intérmina da grei.

 

 

Inteligente

 

Viver

Com uma mulher inteligente

Não é humilhação sequer,

É um vulcão permanente,

Um milagre que a vida comande

Que só mentes pequenas não gozam à grande.

 

 

Descobertas

 

Quantas descobertas que o mundo mudariam

Adivinho

Que encontrar se poderiam

Nas bocas fechadas de quem fala sozinho!

 

Quanto Galileu perdido

Pelas fachadas

Das vidas sem sentido

Que por mim passam ignoradas!

 

 

Costas

 

Custa andar com a vida às costas,

Tantas possibilidades logo levadas

Mesmo quando aproveitadas!

Fica um travo depois das apostas...

 

Ganhar é curto,

A expectativa

É que é festiva,

Nunca o surto.

 

A verdade é que quenquer

Não passa dum pré-ser.

 

 

Repete

 

Tudo se repete e não repete, ao fim,

Incompreensível.

Tenho de repetir o irrepetível

Em mim.

Sou o que não sou

E pelo meio vou.

 

 

Vitória

 

Em toda a vitória

Há recantos escuros,

Becos esconsos cuja glória

É que ninguém lhes salta os muros:

Nem os mais furtivos

De lá sairiam vivos.

 

Nunca a mão que pega

Aí nos chega.

 

 

Ferida

 

Felicidade é sair duma ferida

Pronto a ferir-me outra vez

Porque de vez compensa.

Só o tonto pensa

Que a verdadeira lida

É doutro jaez.

 

E então a felicidade dispensa.

 

 

Caminham

 

Caminham ambos lado a lado

Rumo ao nada,

Depois de tudo acabado

Na mítica jornada.

 

Caminhar por dentro do que findou

É andar parado,

Marcar passo. É o que restou

No enganado

Caminho que eventualmente persiste

Rumo ao que não existe.

 

 

Extinguir

 

Querem extinguir a poesia

Que entra por todas as janelas

Abertas ou fechadas todo o dia,

No verão ou na invernia...

- Como extinguir as chamas quando vivo delas?

 

 

Sorte

 

Quem não tem sorte

É porque tem chocolates a mais

E oferecidos.

Sorte é procurá-los, da vida em cada recorte

Escondidos,

E chorá-los com raiva demais.

 

Então,

Que alegria

Quando a vida dá a mão

No canteiro da fantasia!

 

 

Insaciado

 

O insaciado crónico mutila

A borboleta que em nós murmura.

Já não voa, não cintila

O mundo que ele apura.

 

Então

Resta-lhe apenas o mundo-não.

 

 

Grandeza

 

A grandeza vemo-la no que é feito

Quando se não gosta.

É tão fácil ferir, tão a jeito!

Só quem é grande tem a faca posta

Para ferir e não fere:

Por isso é grande em tudo o que o afere.

 

 

Idade

 

A idade ensina a ver

Com o passado à frente,

O gesto a amadurecer,

A presença presente...

 

E, de cada um por toda a ilha,

Tudo então cada vez mais se compartilha.

 

 

Belo

 

O belo, é preciso aprender

Que pouco requer dos olhos,

É com eles fechados que há-de ocorrer

Da vida o bonito aos molhos.

 

No derradeiro reduto é que, esquiva,

Se vislumbra a alegria primitiva:

 

Basta cerrar as pálpebras com intensidade

E eis a tua cara toda feita claridade.

 

 

Fado

 

Fado, nosso fado

É a noite, a escuridão

E, ao lado,

A dar,

Discreta, a mão,

A mágica réstea de luar.

 

Quem julga que nosso fado é o dia

Ainda não entendeu a lei

Milenar da estrada

Da sabedoria:

Apenas sei

Que não sei nada.

 

 

Pegadas

 

As pegadas que faltam

Apagam as que já demos.

Exaltam

As pegadas que não temos

E então não aproveitamos a carne viva

Do que já é do cais da estiva.

 

 

Mar

 

Basta-nos um pouco de mar

Para ser felizes.

Então porque estragar

Tão viscerais matrizes

Por um mar derradeiro

Que nunca às costas carregarei por inteiro?

 

 

Alfinete

 

Um alfinete

Não fere a pele

Que espete,

Fere o homem que interpele:

Quem bem atente

Repara que somos sempre gente.

 

 

Honestidade

 

A honestidade é um utensílio

Do amor e do desastre.

A dose é que abre e fecha o cílio

Do encastre:

À medida, aplaca;

Demais, é a ressaca.

 

 

Dói-me

 

Dói-me a solidão das pessoas

Que anoitecem.

Dormem sozinhas a esmoer as broas

E esmorecem.

Quanto pedaço de morte

Ali jogado à sorte!

E as sinas

Que, à partida, no transporte,

Eram todas divinas,

Ali, desoladas, no recorte

Das esquinas!

 

 

Procura

 

Tantos à procura

Da estabilidade!

A loucura

De fugir à mortalidade...

De repente,

Desolados

E tortos

Dão por eles já mortos

Muito antes dos fados.

Ex-vivos,

Meros números a aumentar arquivos.

 

 

Matinais

 

As mãos matinais estremecem

E aquecem.

 

Vontade de principiar, fecundo,

De raiz, o mundo.

 

Em nosso jeito de fâmulo

A vadiar,

Logramo-lo:

- O dia é feito para principiar.

 

 

Viagem

 

A viagem é a felicidade

Iminente.

A lonjura é a interrogação

Duma revelação

Ainda ausente

Mas que, no vislumbrado lugar

Se há-de

Logo, logo revelar.

 

 

Doer

 

Quando choras,

Algo em ti me faz doer.

Que demora a das demoras

De sermos sempre vir-a-ser!

Nunca a plenitude...

- E como o mais desilude!

 

 

Velhos

 

Vamos ser velhos com tanta juventude

Que a morte

Vai ter meramente a virtude

Do transporte.

O mais

Vai ser o sobrevoo alumbrado por todos os locais.

 

 

Futuro

 

O futuro é uma aparência,

Uma simulação.

Quem por ele deste agora escoa a essência

Perdeu-se do chão.

Pode julgar que é

Mas o que tem de pé

É uma ilusão.

 

 

Alterar

 

O futuro é para manter-se ausente,

Para eu o alterar com ousio

Ou por mero desfastio

Quando me aparecer à frente.

Aliás, quando em frente,

Não é futuro, é já presente.

 

 

Donos

 

Somos rei e rainha,

Donos de nosso espaço pequeno

A perder de vista...

Adivinha

Como é pleno,

Como basta e supera quanto exista!

 

 

Esconder

 

Cuidar do próximo passo

É esconder o passo incompleto por dar.

Importa ser náufrago, do momento no laço,

Sem se afogar.

Mesmo sem ideia do que fazer,

Enquanto aqui, é de aqui ser.

 

 

Quietude

 

No fim da quietude

Aprendemos a morte.

Paramos a vida para, lentamente, do que nos ilude

Surpreendermos o recorte:

Serenos, assim,

Desvendamos finalmente o fim.

 

 

Rua

 

Os que dormem na rua, crês

No homem quando os vês?

Se a dor revela,

Então,

Quantos doem, ali à vela,

Numa cama de cartão?

 

- Para quem adormece

Com o corpo apenas

A noite não fenece,

É o carrasco a executar todas as penas.

 

 

Manhã

 

A manhã

É apenas a madrugada

A caminhar

Devagar,

Louçã

E deslumbrada,

Pelas curvas de magia

Da estrada

De cada dia.

 

 

 

A vida é má,

Que para sempre não é,

E é boa, acolá,

Por raro andar de pé.

E por, nestas matrizes,

Sermos, afinal, felizes.

 

 

Ainda

 

O que somos ainda não se foi.

Falamos, entretanto, do que não importa

Para impedir o que dói

De nos saltar à porta,

A impedir, afinal, quenquer

De ser.

 

 

Perda

 

Muito demorei a descobrir

Que o que não foras tu

Era perda de tempo, a se esvair

Ao mando de qualquer tabu.

 

Amiúde temos de entender

O que não é

Para chegarmos até

Ao que deve ser.

 

 

Nunca

 

Nunca as palavras fazem

Os indivíduos que as dizem

Mas porventura trazem

Gritos que os avisem.

Os que as traiam

É natural que então caiam.

 

 

Fechamos

 

Fechamos os olhos para ver

O que sentimos,

Para o que nos consome ter

Uma imagem,

Liberto da fundura dos limos,

Na viagem.

Adoramos ver com a emoção

E, no fundo, não há outra forma, não.

 

 

Leitor

 

Não é aquilo que escreve

Que faz o melhor

Escritor

Do mundo.

É o leitor que, ignoto e leve,

O semeia de húmus fecundo.

 

Escritor de génio não há,

O que há é o leitor que o entronize lá.

 

 

Príncipe

 

Mora sempre um príncipe encantado

No meu peito engaiolado

 

E uma princesa acorrentada

Na torre duma vida ignorada.

 

O encontro entre os dois

Incendeia tudo depois.

 

O amor,

Ao calor

Da forja,

Derrete o ferro da gorja.

 

Libertos então, os prisioneiros

Voam vida fora altaneiros,

Visando das montanhas as alturas

Mais puras,

Embora, dos ventos traiçoeiros,

Inseguras.

 

É assim que a vida por eles trepa

Cada vez dando mais vinhos de melhor cepa.

 

 

Condescendemos

 

Somos imperfeitos,

Quantas vezes idiotas!

E condescendemos nos trejeitos,

Fazemos batotas,

A fazer de conta

Que nada no-lo aponta.

 

Agarro o excelente,

Ignoro o mau instante.

Faremos asneiras ao ir para a frente,

Por diante.

 

Quantas feridas

Em cada ferido!

Sentidas,

Porém, sem perdermos o sentido.

 

Somos pessoas,

É assim,

Nem más nem boas,

A escolher, desnorteadas, entre não e sim.

 

 

Não

 

Às vezes é a vontade de sofrer,

Perguntar pelo que não,

Procurar pelo que não,

Insistir com o que não,

- Com o que além da raia ninguém pode ver.

 

Depois vem o suor e o gemido,

A terapia,

O abraço do sentido,

A anestesia...

 

E o sofrimento

Mudou em prazer o momento.

 

 

Escultura

 

Uma escultura de medo no meio da vida,

Eis a morte,

Ei-la ali no meio da avenida,

Eis-lhe na praça o recorte.

 

E no meio de mim:

Se estou feliz,

“Olha que vais ter fim”;

Se torço o nariz,

“Andas a perder teu tempo assim...”

 

Até quando me deito

Sou tão parvo que nem aproveito.

 

 

Saber

 

Saber que somos mortais,

Saber que iremos acabar,

Saber que não podemos jamais

Findar algo assim,

Muito menos no altar

De mim.

 

 

Trôpego

 

Envelhecer não é

Trôpego andar às costas de quenquer,

Vamos envelhecer de pé,

Venha o que vier.

E, se o corpo vergar,

I-lo-emos por dentro ultrapassar.

 

 

Chorar

 

Chorar

É o corpo a ceder,

A se encolher

Até por fim se entregar,

Para poder, com sorte,

Ao repousar,

Vir das lágrimas mais forte.

 

 

Primeiro

 

Primeiro, a emoção,

Senão a razão não tem objecto.

Depois, a razão alçada ao tecto,

Do alto a controlar toda a emoção,

Senão

O sentimento minará todo o trajecto

E o projecto

Logo se esbarronda em ruínas no chão.

 

 

Servos

 

Servos felizes geram melhores

Companheiros,

Agradáveis conversadores,

De negócio parceiros.

 

Se alguém não gostar de mim,

Ninguém precisa de me avisar

Quando lá de minha herdade no confim

Algum problema a incendiar:
São livres os meus servos e, por isso, constantemente,

São quem me avisa de qualquer perigo iminente.

 

 

Senso

 

O frio senso comum

É de mais amar

Que a quente, esperançosa generosidade?

Ou há por aí algum

Outro senso invulgar

Que traga à tona a outra e final realidade?

 

 

Ensinar

 

Ensinar

É frustrante

E gratificante,

Ambos a par.

 

Alternativa que nos diz

Do aprendiz:

 

Uns são atentos e talentosos,

Outros, não.

 

Aqueles gratificam uma instrução

Plena de gozos,

Estes só encorajados ou sofrendo punição

Galgarão

Alguns degraus para algo

Tão suficientemente satisfatório que, agarrando-os à mão,

Os galgo.

 

O bom e o mau

Transpõem lado a lado o rio a vau.

 

 

Quantos

 

Quantos terão mágicos talentos

E nunca os desenvolveram?

Quantos nunca souberam,

Jogados ao sabor dos ventos,

Que os têm?...

- Quanta oportunidade perdida de ir além!

 

 

Nunca

 

O amor nunca reclama,

Sempre dá,

Tolera quem ama,

Jamais se irrita com o que há

E, contra o mundo nesta contradança,

Nunca exerce vingança.