DO SONHO À UTOPIA
Horizonte
Apenas há um horizonte
Que sempre de nós se alonga.
De alcançá-lo não há ponte
Por muito que seja longa.
O que alcançamos e é breve
É apenas onde já esteve.
No mundo como na vida
Esta é a condição da ida.
Interesseira
Uma meta interesseira
Enfraquece e cai por terra.
A flecha, por mais certeira,
Tomba sempre em plena guerra.
Quando é desinteressada,
Tem um alcance infinito:
Ama a Verdade acabada,
A de além do que concito.
Infalível
A mensagem infalível
Não existe, brada aos céus:
A verdade é inatingível,
Que inatingível é Deus.
O filtro humano é imperfeito,
Mesmo quando é o mais fiel
E, apesar deste defeito,
Chega a arrepiar a pele.
Tal é a força que há na Luz
Que até a sombra a traduz.
Humanidade
A humanidade em paixão
Explode descontrolada,
Com tristeza e confusão
Mais e mais desgovernada,
Sacudida de ansiedade
De quanta dúvida a invade.
O sábio que ao Infinito
Se entrega mais toda a vida,
Dos ventos de alma o conflito,
Tempestade inatendida,
Faz que puros lhe obedeçam
Nos rumos que as mãos lhes teçam.
Esta entrega ao Infinito
É paz, embora com grito.
Livrar
Tudo o que tens de fazer
Para da dor te livrar
Do que esteja a acontecer
É dor não lhe acrescentar.
Todo escoa o mau passado
E o futuro indesejado.
Acolhe o que hoje trouxer:
É o melhor de teu querer.
Escolhe então qual a via
Melhor de teu novo dia.
Recheado de tensões,
Gritas, só, teu grito aflito?
- Apenas o imo as lições
Logra aprender do Infinito.
Verdade
A verdade inteira e certa
Verdade é que não exista,
O meu filtro não lhe acerta,
Por mais fiel que lhe assista.
A Verdade Revelada
Tem sempre a limitação
Do filtro da caminhada,
Por mais fiel que filtre o chão.
Uma verdade absoluta,
Só do Infindo na conduta.
Criminoso
Como o criminoso à solta
Deixa o cartão de visita,
Nós na vida toda em volta
Deixamos a marca inscrita.
E é desta marca no centro
Que, morto, no Infindo eu entro.
Saco
Andamos de saco às costas
Cheio do que usámos ser,
Sem saber, dentre as apostas,
Qual será de se fazer.
Até se encontrar alguém,
Saco cheio, alma que espia,
E, do encaixe que provém,
Abrir de repente a via.
Só dos cacos destroçados
Se abrem nesgas para os lados
E os remendos conseguidos
São novos mundos vividos.
Demais
A vida é curta demais,
Sempre de menos.
O amor é cedo demais,
Sempre de menos.
Pequenezas que tais,
De tudo em que somos pequenos,
É que atiram o anzol superno
Ao eterno.
Apenas
Viemos com todos os sonhos do mundo
E apenas uma vida.
Olhamos o chão fecundo
Para erguer-nos de seguida.
Quando amamos, depois,
Cada um sendo dois,
É que multiplicamos a conta.
O fito
Aponta
O Infinito.
Incompleto
É sempre tudo incompleto,
Eterna abertura a mais.
Procuro-me: sou projecto
De encontrar-me além do cais.
O fito de procurar,
Encontre eu o que encontrar,
É procurar mais além.
E, se algum dia parar,
Satisfeito do lugar,
Não sou eu, fiquei aquém.
O que me faz manter vivo
É tal chamamento esquivo
Que não pára de acenar
Para eterno eu continuar.
Sou
Sei lá quem sou, mas sei que sou muitos,
Porventura todos,
Em todos os intuitos
E de todos os modos.
Sou toda a gente:
Sou o grito
Que grita na semente
Do Infinito.
Eterna
A viabilidade da vida eterna
Ao descobrir o interior de tua carne
E da carne do Universo que soberano a governa...
Até que o eterno em nós incarne
E, num orgasmo,
Em silêncio, pasmo.
Longe
As coisas andarão
Longe de ser o que são
Ou então sou eu que, perdido nas vielas,
Ando sempre longe delas.
Mas aí é que, sempre a me acenar,
Mora um mundo novo pronto a me desconcertar,
- O momento
Do deslumbramento!
Virá
O que não verei, que virá depois:
A maravilha
De mil sóis;
A partilha
Da cura da doença,
Sem restar ilha
Que a não vença;
A justiça
Que a paz
Há-de trazer à liça,
Eficaz;
Água a dessedentar
Todos,
A limpar os lodos
Que detrás se herdar...
Não verei
Nem ninguém verá:
Não há lei
Que impeça o mal por aqui, por acolá.
A maravilha do progresso
Traz sempre isto do avesso.
Somos livres de ter juízo
Ou de perder o siso.
Entranhas
As nossas entranhas
São feitas de sonhos.
O doutor que apanhas
Tem erros medonhos:
Crê que a dor que acalma
Com a anestesia
É corpo. E é alma.
E ele nunca a avia.
Cima
Quem ama é de cima que vê tudo,
Da lonjura do Infinito.
Agudo
Grito
Fecundo
Que desde o princípio fez do nada o mundo.
Brinca
Quando um miúdo brinca,
Não brinca aos adultos,
Não se finca
Nos estultos.
Ameia imaginário aos anjos seus,
Brinca a Deus.
Desgraça
A desgraça continua,
Vida repetida
Na rua
Mal vivida.
A rotina,
Escuridão gelada,
Não atina
Com a estrada.
A morte devora,
Em nome de Deus,
Cada hora
Destes crentes ateus.
A vida é uma oportunidade,
À partida
Por nós mal convertida,
De inovar a eternidade.
Caminho
O caminho
É humano,
Mal adivinho
Que o emano.
O destino,
Trapalhão,
Tento ler, em desatino.
Não é humano, não,
É a linguagem do Universo
Com que, sempre ignaro, converso.
Avaria
A avaria
Obriga a perfeição maior.
Um dia
Nossa sorte
É que isto se irá impor
À morte.
Quanto maior a falha,
Maior a cimalha
Que concito:
- Na morte, é o Infinito!
Fundo
Quanto mais fundo
Descemos,
Mais perto do centro do mundo
Nos encontraremos.
E mais, após,
Seremos nós.
Começo
Ninguém nos descobriu no começo.
Quando começámos já íamos a meio,
Tropeço, não tropeço,
Em nosso enleio,
Do caminho de mérito e delito
Da busca do Infinito.
Dito
Ele veio à mesa,
Comeu pão com leite,
Ela sorriu com gentileza.
Não é preciso nenhum enfeite,
Está tudo entre eles dito
No silêncio do Infinito.
Corporeamente
Às vezes creio corporeamente na eternidade,
Eu e tu, este nós que nunca acaba.
Deito-me nesta fé, mas quando o sono me invade
Desta porta onde fica a aldraba?
Nunca principiámos, pois íamos a meio.
Assim,
O que não teve princípio não poderei, sem receio,
Crer que não terá fim?
Medo
O medo terrível
Da utopia,
A raia da felicidade possível
Contra a fobia
Do nunca mais
Ou do não mais além.
No medo de morte dos arraiais
É que o eterno advém.
É o que faz um milagre qualquer
Que ocorreu:
- Ao tudo morrer,
Nada morreu.
Herói
O meu herói é o vilão,
Recusa o certo, o legal,
Faz tremer aos pés o chão,
Dum melhor mundo é sinal.
O ilegal que for mais justo,
O imoral que for mais ético
Aos ombros levam a custo
O Infinito mais poético.
É aqui que me lanço
A ver o que alcanço.
Loucura
A loucura é acreditar
Que vale a pena.
E vale: é só olhar
Com visão serena.
E não com vista curta,
Antes surta
Na paisagem plena.
Dormir
Não é por acinte
Que dormir
É o melhor reconstituinte.
É por vir
Desta fatalidade natural o requinte
Do porvir.
Ocasião
O amor é uma ocasião
Única de amadurar,
De dar forma a informe chão
E de um mundo me tornar
Para quem amar então.
É sempre uma alta exigência,
Uma ambição sem limites.
Quem ama tem a pendência
Dum eleito com palpites
De Infinito na existência.
É a solicitada ponte
Para o longínquo horizonte.