DA  MORAL  À  ÉTICA

 

 

 

Fanáticos

 

Há na história uma linhagem

De fanáticos da ordem

Sempre a um ídolo em romagem

Absoluto em que concordem.

 

As vidas não têm valor

Se ao dogma se andam a opor.

 

Ignoram que o colectivo

Homens soma, não é arquivo.

 

E em nome daquilo matam

Todos quantos não o acatam.

 

 

Alturas

 

Das alturas do poder

Protegido por polícia,

Exército e tribunais,

Num homem ninguém vai ver

(Condenado a uma sevícia,

Prisão, morte, horrores tais)

 

Que é um homem o condenado:

Apenas, varrendo a mão,

Hão por fim aniquilado

Um foco de oposição.

 

 

Perda

 

A perda é ganho se calha

A perda ser o começo

Da vitória que inda emperra.

É de perder a batalha

Quando a perda for o preço

Para ao fim ganhar a guerra.

 

 

Chefe

 

Chefe, se rico, abastado,

Não deve nunca ostentar:

Fará crer em todo o lado

Que se está bem, confortado,

Então está-lo-ão, a par,

Todos com quem laborar.

 

Estes aguardam que cresçam

Então as actividades

E que os negócios floresçam,

Todos melhorem, não desçam.

Mas, se as excentricidades

Forem tais que os persuades

 

De que podes já ter tudo,

Então querem tirar-te algo.

Não há mais aquele escudo

De ir além, ser mais graúdo.

- Vida de luxo é o fidalgo

Prazer com que à tumba galgo.

 

 

Fanático

 

Ser jovem e ser fanático

É só mundo a preto e branco:

Nós, os bons, com senso prático,

Eles, os maus, que desanco.

 

É ser desequilibrado

E não ter moderação:

Cego ao mal de nosso lado

E ao bem que os outros terão.

 

Num mundo assim dividido

Fica a vida sem sentido,

 

É a recíproca matança:

Morta a vida, a morte alcança.

 

 

Simples

 

Quem é simples e normal,

Quando em lugar de poder,

É inimigo figadal

Dos compadrios que houver.

 

Ninguém o pode atacar

Por ter um padrinho alheio.

Não o podem derrubar:

Não tem brechas pelo meio.

 

 

Moralistas

 

O maior dos moralistas

É sempre o mais pecador.

Sempre há um fariseu nas listas,

De pedra na mão, em vistas

De a atirar seja a quem for.

 

O que muito se empertiga

Sempre é porque muito esconde.

Aquele que demais briga

Priva-se da vera liga

De leal ser consigo avonde.

 

 

Trafulha

 

Quem tem alma de trafulha

Arranja como expandi-la,

Seja lá qual for a bulha

Que se bulhe a persegui-la.

 

Um Estado ou uma empresa,

Bem como qualquer família,

Melhor governa e não lesa

Um homem bom, em vigília,

 

Que governam os papéis

Que são sempre as boas leis.

 

 

Boa

 

Boa acção dar boa acção

É muita ingenuidade:

Acrescenta a comunhão,

Ignoramos se persuade.

 

O bumerangue não volta

Nunca para a nossa mão,

Na reviravolta à solta

Cai perto apenas no chão.

 

Nenhum crime tem castigo

Nem certeiro nem de vez,

O criminoso o perigo

Corre é de o sofrer talvez.

 

A bondade ingratidão

É o que gera, no geral,

E andamos à humilhação

A escapar de vale em vale.

 

- Contudo, nascer o dia

Quem o faz é quem porfia.

 

 

Eventos

 

O nosso foco diário

Sobre os eventos comuns

Fragiliza em modo vário

Nossa percepção de alguns

Eventos providenciais

Sempre em redor bem reais.

 

Ocorrem constantemente

E raro os temos em mente.

 

 

Ignorando

 

Adorar a criação

Ignorando o criador

É fazer da religião

Leviana superstição,

Sem donde vem o calor.

 

Se fascina o mensageiro,

Já ninguém liga à mensagem

E o mandante por inteiro

Dá por perdida a viagem.

 

As igrejas e capelas

Caíram nestas sequelas.

 

Trocam por sinais da estrada

Deles a meta indicada:

 

Liturgias, rituais,

Tradições, sei lá que mais...

 

Ora, após este desvio,

Perde-se da vida o fio.

 

 

Aproximar-me

 

Aproximar-me de Deus

Não é sentar-me calado

Na igreja votada aos céus.

É calar-me em qualquer lado

 

Ante d’Ele a criação

E atentar na voz tranquila

Em branda murmuração

Que dentro em nós se perfila.

 

 

Atento

 

Quer-me atento às criancinhas,

Aos órfãos como às viúvas...

O estranho destas gavinhas

É que o melhor cacho de uvas

Não serão eles que o colhem

Mas meus braços que os acolhem:

 

Neles a visão de Deus

Apuro a um passo dos céus.

 

 

Diferida

 

Se forço à pluralidade,

Arrisco a fragmentação.

Se muito urgir a unidade,

É uniformidade então.

 

Unidade e pluralismo

São a meta diferida

Do labor em que me abismo,

A rede a tecer da vida.

 

Unir na diversidade,

O disperso unificar,

É a coabitação que eu grade

Sem ninguém sacrificar.

 

 

Perdem-se

 

Perdem-se as religiões

Em mil organizações,

Tabus, argumentações,

 

Reformas e sacrifícios,

Rituais de mil ofícios,

Sem, no fim, os benefícios.

 

São regras de hipocrisia,

De poderosos fatia,

- Sempre na mesma euforia

 

A pautar carga maior

Sobre as costas de quem for

Oprimido do opressor.

 

E todas na mesma linha!

Quem é que ali adivinha

Uvas outras doutra vinha?

 

Quem fará nascer o dia

Para a festa da alegria

Que já nelas ninguém via?

 

 

Deixar

 

É não deixar Deus ser Deus,

É não o deixar à solta,

Na rede prendê-lo em seus

Conceitos, ritos à volta,

 

Tabus e normas morais,

- Que em religiões são os véus

Que do Além eram sinais.

 

Como tudo isto é traição,

- Onde há fé na religião?

 

 

Juntou-se

 

Uma vez a Jesus juntou-se um homem:

“Quero ir contigo e ser teu companheiro.”

Pela estrada que então ambos lá tomem

Acabam dando à margem dum ribeiro.

Sentaram-se na alfombra e juntos comem

Dois dos três pães do saco merendeiro.

O terceiro sobrou. Jesus se ergueu

E foi dessedentar-se em frente, ao rio.

 

Não encontra, ao voltar, aquele pão

Que derradeiro fora o da merenda.

“Quem é que o pão tirou?” – pergunta então.

“Não sei!” – responde o outro, sem contenda.

Continuaram trilhando o duro chão

E viram uma corça, numa senda,

Com os dois veadinhos seus filhotes.

Chama-os Jesus e acorrem vindo a trotes.

 

Jesus matou um deles que assa em parte

E com seu companheiro ambos comeram.

Depois, ao veadinho: “levantar-te

Vais, por graça de Deus.” Logo mexeram

As patas e ele ergueu e alegre parte.

Os olhos do parceiro estremeceram.

“Em nome do milagre que observaste,

Quem é que o pão tirou?” – pergunta ao traste.

 

“Não sei” – responde o homem. Que inocente!

Chegam a um grande lago, em fundo vale.

Jesus do par tomou a mão tremente,

Caminharam sobre as águas por igual.

O pélago transposto ali presente,

Jesus insiste e quer do outro o sinal:

“Em nome do milagre que aqui vês,

Quem é que o pão tirou de nós de vez?”

 

“Não sei” – fingiu o homem de contrito.

Chegaram a um deserto árido em pedra.

Jesus apanha areia, com um fito:

“Por dom de Deus te muda, em oiro medra.”

E assim aconteceu. Jesus, aflito,

Uma terceira vez a vinha redra:

Em três partes divide o oiro da jeira.

“ Uma a mim, outra a ti e uma terceira

 

Para aquele que o pão daqui tirou.”

Logo o parceiro diz: “Pronto, fui eu!”

Então Jesus, enquanto se aprontou,

Correspondeu dizendo: ”é todo teu!”

E prosseguiu caminho. O outro ficou

Com os oiros, mirando ali o céu.

Dois homens encontraram no deserto

Este homem mais os oiros dele perto.

 

Roubá-lo determinam e matá-lo.

Propõe-lhes ele: “vamos dividi-lo

Entre os três e um de vós vai por regalo

À cidade, comprando-o em sigilo.”

Um deles partiu logo e, sem abalo,

Meditava consigo neste estilo:

“Porque hei-de dividir com estes dois?

Enveneno a comida e é meu depois!”

 

Entretanto, entre si, os do deserto:

“Porque havemos de dar-lhe um terço de oiro?

No regresso matamo-lo. É mais certo

Dividir entre nós dois o tesoiro.”

O terceiro voltou, cumprem o acerto,

Mas comem o veneno, mau agoiro,

E morrem dele ao lado, os três bem tortos.

No deserto, eis o oiro junto aos mortos.

 

Jesus, quando tornou pelo local,

Ali os encontrou naquele estado.

Aos discípulos diz, ante o letal

Espectáculo triste dele ao lado,

Mais deprimente que qualquer sinal

Que até o momento houvera contemplado:

“Assim é o mundo a quem ao mundo apele.

Tende cuidado, pois, todos com ele.”

 

 

Detém

 

Quem detém em quantidade

Jamais dele os interesses

Esquece de defender.

Esconder é a faculdade

De aos mais pobres as benesses

Denegar quem não quer ver.

Ou aos que outra vida almejam

Impedi-los de que vejam.

 

 

Caminho

 

Por muito bom que tu sejas,

Se queres abrir caminho,

Faz de conta que o que almejas

Te obriga a aprender, cadinho

 

Que faz que o que leva o carro,

Mesmo sem nada a ensinar-te,

Esta porta com que esbarro

De escancará-la tem arte.

 

Quando a porta se descerra,

Entras ou ficas em terra?

 

Para sempre poder ser...

- Pondera, pois, que fazer.

 

 

Fora

 

Ausência de fantasia,

Fora a sensibilidade,

- Cabeçadas não daria

Nem a dor doutrem me invade.

 

De egoísmo sendo presa,

Vivo numa fortaleza,

 

Contudo incapaz de amar,

De sofrer e de pensar.

 

 

Engodos

 

Terei estado a caminho

Durante estes anos todos

Sem me dar conta um pouquinho

Por entre tantos engodos?

 

É mais fácil nos perdermos

De nós próprios cá por dentro

Do que do bosque nos ermos

Ou da cidade num centro.

 

 

Verdade

 

Tu não queres a verdade,

Mas a verdade especial

Que seja do teu agrado,

Verdade pela metade

Que encaixe, em calha total,

No que já crês, por teu lado.

 

Mas os demais querem deuses,

Talhar lugares sagrados

Onde todos os adeuses

Se sintam, por fim, fintados.

Uma e outra perspectiva

Enganam-se, ao fim, na vida.

 

 

Integridade

 

Tem um rosto a integridade,

O de honrar sempre as promessas

E dizer pura a verdade

E a responsabilidade

Assumir de ir às avessas,

 

Com os erros cometidos.

É ser o que se diz ser

E os actos já prometidos,

Pagando os custos devidos,

Cumprir a quem prometer.

 

 

Calma

 

A mais lapidar das regras

Para a calma se manter

É o sono nunca perder

Com pequenas questões negras.

 

A lapidar depois desta

É ser capaz de pesar

Qualquer questão que encontrar

Como uma pequena aresta.

 

 

Corrida

 

Vida é corrida de fundo,

Cada qual evoluindo

Do esforço próprio fecundo.

A acelerar mal vou indo,

 

Voluntarismo atrapalha

Desbaratando energias

Com escolhas, quando calha,

Que infelizes mais são vias.

 

Avulta a força serena

De quem segue o seu caminho

Sem disparates na arena

Nem dos outros ser cadinho.

 

 

Vingança

 

O desejo de vingança

Sempre é o detrito do mal.

Joga-o fora, se te alcança,

Que ser livre é o principal.

 

Sê, portanto, inteligente:

Esquece, pois, de raiz.

E serás por entre a gente

Um farol de ser feliz.

 

 

Jesus

 

Não é Jesus que divide,

Antes o que foi montado

Em torno, gavinha em vide,

E que se há dogmatizado.

 

Se este lixo for varrido

Para os caixotes da História,

Ninguém mais é dividido,

Tudo é encantada memória.

 

 

Mudar

 

Mudar o rumo da vida

É mudar moldes de si

E de quanto ocorre aí.

Deixar de esperar, na lida,

 

Que os eventos aconteçam,

Sem os rotular sequer:

- É levar a acontecer

Com os meus palmos que os meçam.

 

 

Consciente

 

É bom estar consciente

De que algum medo acompanha

A muda atrás ou à frente.

 

A muda então não me acanha,

Venha lá como vier.

O que importa é o que é que apanha

 

Ao cilindrar o que houver:

Até pode ser melhor...

E a mudança a acontecer

 

Então tem o que eu vou pôr

Para que ela venha a ser

Toda aqui de minha cor.

 

 

Separa

 

É o ego o que me separa

Como uma parte do todo

E com isto me prepara

Para a missão, como engodo.

 

Quando vou longe demais

E eu me confundo com ele,

Faz que me corte dos mais

E tudo o mais me atropele.

 

Adona-se então de mim

E eu por mim cheguei ao fim.

 

 

Permanecer

 

Não é fácil observar

Calamidade em sigilo,

Catástrofe a me esmagar

E permanecer tranquilo.

 

Contudo, pode fazer-se

Do ego após o corte cerce:

 

- É o coração na subida

Ao Todo entregue à medida.

 

 

Vício

 

Gostaria de mudar

A mudança com o vício

De tudo logo parar,

De antanho feito um resquício?

 

Ora, se manter como era

Me mantivera feliz,

O que ocorreu nesta espera

Nunca fora o que se diz:

 

Não teria acontecido

Se feliz dera sentido.

 

E, portanto, se ocorreu,

Não era aquele o meu céu.

 

 

Pião

 

Como um pião de criança

Que perde velocidade

De rotação, minha dança,

Dança de instabilidade,

Na vida então a mudança

Me requer para alcançar

O equilíbrio que mudar.

 

E assim é que ao negativo

Efeito sempre me esquivo.

 

 

Pior

 

Mesmo o pior de teus dias

Ver que é o melhor para o imo

Livra do medo que havias

Cultivado do ego ao cimo.

 

Do Jardim das Oliveiras

Não te livra, suar em sangue.

Entrega-te às mãos fagueiras

Dum Deus que de ti não mangue.

 

Podes-te crucificar

Mas no íntimo em paz ficar.

 

 

Desperto

 

Ao não resistir, liberto-

-Me do que era imaginado

E logo ali me desperto

Ao aparente mostrado.

 

Fico logo disponível

Para o real atingível.

 

De repente abrem-se opções

E dantes, nem ilusões.

 

 

Viável

 

É sempre viável querer

Aquilo que nem sequer

 

Do interesse é da pessoa.

Será o que nos atordoa

 

Num mártir ou num herói:

Parece que lhes nem dói

 

Não por eles mas por todos

Se sacrificar aos bodos.

 

Entendem um bem maior

Nisto a si próprios propor.

 

 

Cuida

 

Quando cuida dia e noite:

“Como odeio este lugar!

Quem me dera onde me acoite!”

- Vai-se o mal real tornar.

 

A vida é um génio que acerta

Nas dentaduras que o mordem,

É por si que ele desperta:

- O seu desejo é uma ordem.

 

Melhor, pois, é olhar o bem

Que o mal dentro dele tem.

 

 

Guru

 

Anda a ensinar um guru

Quando a discípula atesta:

“Há meses, mestre, vens tu

Ensinar a quem não presta:

Ninguém, em nenhum momento,

Vislumbra esclarecimento.

 

Afinal, que é que é preciso?!”

O guru sorriu e disse:

“Leva a peneira e, com siso,

Enche-a de mar, sem tontice.”

 

Os alunos não entendem,

Resmungam que ele não é

Um guru dos que nos prendem.

Todos sabem, ninguém crê

 

Que de água se encha a peneira.

Toda escoa, que é o problema

Com quanto ensina: aligeira,

Mas logo escoa o bom lema.

 

Então todos o abandonam

Menos a aluna que pede:

“Mestre, as aulas não me abonam,

O que é de entender me cede.”

 

O guru, com compaixão,

Lhe responde: “vem comigo.”

A uma loja vão então

Onde compra (que castigo!)

 

A peneira questionada.

“Enche a peneira com água” –

- Diz-lhe na praia, à chegada.

A discípula, sem mágoa,

 

Corre ao mar onde a mergulha.

Trá-la a correr, logo escoada.

O guru sorriu sem bulha:

“Enche-a de água bem pejada.”

 

Logo ela tenta de novo.

É inútil, fica vazia,

Que a peneira não é um covo.

À terceira, então esfria:

 

“Estou farta desta vida

De aluna espiritual”

- Joga a peneira, sentida,

Ao mar que nada lhe vale,

 

E foge em passo pesado.

E o guru: “espera, olha!”

A jovem vira de lado,

Vê a peneira que se molha

 

A afunda fundo no mar.

O guru junta-se à aluna:

“Não é apenas mergulhar,

Urge que ao mar se reúna.

 

Tens de te atirar lá dentro

Toda imersa até ao centro.”

 

 

Alinhado

 

Nunca Deus vive alinhado

Com uma fé, com prejuízo

Das outras que houver ao lado.

Isto é o nosso curto juízo.

 

Deus por igual todos chama

Ao amor a que os conclama.

 

E só é filho de Deus

O que incarna o amor dos céus,

 

Venha lá donde vier

O trilho que percorrer.

 

 

Malas

 

Tempo é de mandar os mais

Fazer as malas, ilesos.

Perdemos tempo demais

Doutrem carregando pesos.

 

As emoções negativas

Reconverte, nunca as vivas.

 

Assim é que te aceleras

A voar por sobre as eras.

 

 

Natureza

 

A natureza é a criança

A brincar com nossas vidas.

Dos brinquedos quando cansa,

Com as peças já partidas,

Abandona-os ao trocá-los

Por outros, novos regalos.

 

A responsabilidade

Nossa é de apanhar bocados,

Refazer a identidade

De todos, já renovados,

Cada qual nos seus estilos,

Novos de novo erigi-los.

 

 

Evitar

 

Evitar aqueles

De quem não gostamos

É bem simples. Eles,

Por mais que algum preste,

Não são nossos ramos.

Verdadeiro teste

É evitar amigos

Nos nossos abrigos

 

Quando tal é a sina

Que a meta destina.

 

 

Ilumina

 

A morte ilumina a vida

Pelo valor que lhe der:

Saboreamos-lhe a subida

E a descida a esmorecer,

 

É o que dá peso e sentido

A tudo o que for vivido.

 

Nada como a morte ensina

A viver a nossa sina.

 

 

Fiel

 

Exigir marido fiel

É certo e decerto leal,

Mas nenhum marido é aquele,

Se enjaulado tigre real.

 

Tudo com conta e medida

Em tudo receita a vida.

 

O ciúme doentio

Queima a chama e o pavio.

 

 

Humano

 

Onde é que principia, universal,

Um humano direito a ser real?

 

Num recanto pequeno, junto a casa,

Num solitário que dali se abrasa,

 

No bairro onde viver, na faculdade,

Na escola onde eu adubo a minha idade,

 

Na fábrica, na quinta, na vilória,

Onde quer que modele uma vitória...

 

Só com iniciativa cidadã,

Concertada a manter cada manhã

 

A segurança instável em que vivo,

Poderei aguardar o passo esquivo

 

A progredir, incerto mas fecundo,

Dos direitos humanos pelo mundo.

 

 

Revoltas

 

As revoltas terminam muito raro

No convés dum navio em rendição.

Ao invés, perdem ímpeto no claro

E persistente esforço de audição

Da mesa diplomática redonda

Onde nenhum as cartas do outro esconda.

 

Também nas melhorias continuadas

Por bom nível de vida das pessoas.

Por fim, nas inflexíveis caminhadas

Perseverantes sempre donde ecoas

O desejo infinito que te traz

A voz em nome de quem quer a paz.

 

 

Diplomacia

 

Sempre a diplomacia tem vitórias

Feitas de microscópicas vantagens,

Aqui a sugestão de algumas glórias,

Além a cortesia a ler mensagens,

 

Concessão oportuna e logo sábia,

Persistência depois, sensata lábia,

 

Um tacto sempre atento e uma calma

Impassível, paciente e com tal alma

 

Que nenhuma imprudência ou disparate,

Provocação abale ou desacate.

 

 

Desistirem

 

Os que da liberdade desistirem

Por segurança mais um tudo-nada,

Nenhuma liberdade que auferirem

Nenhuma segurança na jornada

 

Merecem, que não há nem mais nem menos.

Cada uma viável outra torna:

Sem liberdade a segurança plenos

Riscos de reprimir mantém na jorna;

 

Sem segurança a liberdade é frágil.

É uma à outra que há-de tornar ágil.

 

Segurança que salve a liberdade,

Não tanta que as fronteiras desta invade.

 

 

Estafetas

 

É corrida de estafetas

O teor de cada vida.

O testemunho das metas

Corre então de tua lida.

 

Que teus filhos e teus netos

Tenham o mundo melhor

Que pode de teus projectos

Brotar à hora do alvor.

 

E que teus antepassados

Aplaudam teus passos dados.

 

 

 

Há tanta coisa má

Que nos pode ferir

E há tanta gente lá!

- Que é que os leva a lá ir?!

 

Ferir com intenção

Não é, não, jeito meu.

Isto nos põe à mão,

De qualquer jeito, o céu:

 

O que é ferido, ao postigo

Encontra sempre este abrigo.

 

 

Contar

 

Contar da vida diz de alguém que é vivo

E que mais vida lança ao solo esquivo

 

Nos quadros soltos que semeia breve.

Pode jamais estar onde já esteve

 

Mas em meu peito germina

Nova terra e nova sina.

 

 

Velhice

 

A velhice é a morte aos poucos,

Cada vez mais tontos,

Cada vez mais loucos,

Mas sempre a segurar os pontos

Da jogada da vida,

Sabendo-a embora de vez perdida.

 

Devagar, devagar,

Que até ao derradeiro,

Neste canteiro

Hei-de ser eu a plantar!

 

 

Trás

 

Quando, num serviço, fica para trás um utente,

Dói muito mais depois.

Ele fica então descontente

E ainda acaba por partir os arrebóis

De toda a gente.

 

Má ou boa,

Quantos descontentes moram em cada pessoa?

 

 

Obediência

 

Obediência,

Felicidade de muletas,

Sem alguma transigência

A rachar gretas,

É uma tristeza.

Quem a preza?

Nada mais triste que o rebanho.

Onde o arreganho

Do dia contra o obstáculo

Que me pode garantir o pináculo

Do meu ganho?

 

 

Desafia

 

Do milagre a probabilidade

É que desafia.

Torná-lo realidade

Algum dia

É que é apaixonante

E me empurra para diante.

 

 

Bati

 

Quando bati com a porta à vida,

Algo quebrou debaixo de mim:

Era o chão.

Foram anos, em seguida,

A amontoar serrim

Na carpintaria de projectos

Sobre que nunca tive mão.

É no que dá trairmos nossos tectos.

 

 

Bom

 

Pouco importa o bom caminho

Se só leva ao bom destino,

Que aqueloutro que mal adivinho

É para que sempre me inclino.

 

Até pode ser mau,

Mas, quem não arrisca

O varapau,

Não petisca.

 

E não passa a vida a vau

Para o lado de lá

Onde o sonho está.

 

 

Ileso

 

Conseguir cruzar ileso

É uma utopia.

Cada dia vai doer, cada dia,

E temos de ir de gesto coeso

Ainda mais firme e teso,

Que a felicidade apenas acontece

Do que não se podia entretecer mas entretece.

 

 

Pequenez

 

A pequenez de nossas horas,

A pequenez de nossas vidas...

Pouco importam as demoras

Esquecidas.

 

É de estar de plantão,

A ração de combate

À mão,

Pronto sempre para o embate

 

Ou para a comunhão.

O que importa é estar

De prevenção

Inteiro no lugar,

Quando chegar a ocasião.

 

 

Liderança

 

Todos temos liderança

Cá por dentro a comandar.

E desta ninguém descansa

De seu jeito de mandar.

 

Mas não nos deixamos ser.

Conforto é ser comandado

De fora por quem vier,

Não de dentro espicaçado.

 

Ter a mão sobre o mandado

Daquilo que for pedido,

A desafiar o fado

Como a inventar um sentido.

 

Tudo então corre na mesma,

Sempre o mesmo executando,

Somo folha a folha à resma,

Seguro do tédio brando.

 

Nem é preciso morrer,

Já nos matámos bem mortos,

Já afundámos o escaler

Da aventura em nossos portos.

 

 

Intranquilo

 

Só depois do erro intranquilo

Entendi que tinha errado.

Obrigado por me deixares corrigi-lo,

Pela oportunidade de trocar de lado.

Quando o houver de vez saldado,

Diz-me, que o saldarei novamente,

Em sigilo,

À tua frente.

 

 

Silêncio

 

Ao silêncio

Dos sentidos destruídos

Convence-o

Com os sentidos vividos:

Vence-o

Com os actos ponderados, comedidos,

Ou, ao invés,

Com os mundos rendidos

A teus pés.

 

Este silêncio, medita,

Não é silêncio, pois grita.

 

 

Tempestades

 

As tempestades reboam,

Temos de aprender

A lhes sobreviver,

Aguentar os trovões que atroam,

Preparar vidraças robustas

Para de longe ver

As lágrimas justas.

 

A vida inteira é isto

E, apesar de tudo, existo!

 

 

Incompleto

 

Saber-me incompleto

Em mim

É estar no que sou completo:

Sou feito assim.

 

Então

É atirar-me à estrada,

Sem travão

Na caminhada,

Sempre a levantar pontes

Para além dos horizontes,

Sempre à espreita da alvorada

Que apenas pode por mim ser espreitada.

 

Sou este aquém

Sempre em alta

A que eternamente

Falta

Um além:

Ameando à minha frente,

Mal advém,

Mal se pressente.

 

 

Mal

 

Há no mundo tanto mal

Que apetece desistir

Mas desistir é o aval

Para mais mal persistir.

Tudo tem tão sério ar

Que só levando-o a brincar!

 

 

Brincar

 

A brincar o dia é curto,

Qualquer problema, pequeno.

Saída ao primeiro surto

Chega a vir em alvor pleno.

Rir abre um caminho nédio:

- É, pois, único remédio.

 

 

Noz

 

Rimo-nos dos outros, de nós

E do mundo.

Após

Tudo devir jucundo

É que semeamos a noz

Que torna tudo fecundo.

 

 

Roube

 

Quando uma terra se roube,

Logo a fortuna decai,

Dada a sorte que lhe coube,

E na miséria se esvai.

Foi o destino das guerras

Quando se pilharam terras.

 

Só se inverteu tal destino

Quando ao povo derrotado

Se permitiu tomar tino,

Enriquecer novo fado.

Ao tomar em mãos a sorte,

É nobre, de novo, o porte.

 

E o mundo se engrandeceu

Do cume que se atingiu.

 

 

Longe

 

É fácil não fazer nada

Quando é lá longe a desgraça.

Ser solidário me agrada

Só perto de mim na estrada,

Que lhe sinto o amor na traça.

 

Questão é quando, à lonjura,

Desgraça a nós nos procura:

 

Bem gostávamos que alguém

Um pouco mais fosse além,

 

Até rastrear no chão

O sangue da nossa mão.

 

 

Criado

 

Se um criado te falhou,

É logo posto na rua

Se de propósito o fez.

Se hesitas no que o levou,

Logo doutro modo actua

A decisão do entremez.

 

Uma vez pode ser erro,

Duas, coincidência ou sorte,

Três, ou é deliberado

Ou mau hábito no encerro

E a prova talvez suporte

De à freima não ser dotado.

 

Há quem tenha imo de escravo

E, quando lhe volta o dono,

Corre ao chicote a dobrar-se.

Se não soube doutro travo

Ou teme o som doutro entono,

Mais corre ali sem disfarce.

 

Se tem diferente vida,

Quão mais longa a liberdade,

Mais é provável amá-la.

E é mais funda, na medida

Em que a todos persuade

Que a sério de tal faz gala.

 

Porém, nada disto vale

Se não aprende o respeito

E só o medo é que o comanda.

Se só o medo é que equivale

Ao julgamento do peito,

A confiança por onde anda?

 

 

Persegue

 

Quando alguém persegue alguém

Só porque ele é diferente,

Não por fazer mal à gente,

Principia e leva além

A violação, por maldade,

Do que é qualquer liberdade.