POEMAS LONGOS REGULARES
AFECTOS
Talvez
Talvez nem sequer amigos
Existam, apenas gente,
A apoiar-nos nos perigos.
Ao sofrermos, simplesmente
Não nos deixam nos caminhos
Abandonados sozinhos.
Se calhar a pena vale
Em prol deles sentir medo
E uma esperança real:
A viver neles acedo
E, quando tiver de ser,
Por eles irei morrer.
São indivíduos com quem
Eu quererei sempre andar,
Em quem quero, mais além,
Ao colo me acomodar.
Gente que tem a morada
De meu coração na entrada.
Amar
Amar é aquela longa aprendizagem,
Tal qual a aprendizagem de dançar.
Há falhas como há mágoa nesta viagem
E nunca a perfeição se há-de alcançar.
É grande a dose de erros e de dor,
É maior meu furor de os superar.
É a tentativa e falha do que for
A nossa eterna busca de aceitar
Que torna a dança-amor interessante,
O que fará o amor valer a pena.
Se a música fascina, corro adiante
Sem me lembrar sequer do que ela encena.
A paixão nos empolga e o mais apaga,
Os pés pisamos sem nos darmos conta.
Rodopiamos na idiota vaga,
No impulso desastrado, ponta a ponta.
Passos em falso, pisaduras, quedas,
À melodia nem ligamos, tontos,
Arrebatados de emoções mui ledas,
E assim é que a perder findamos prontos.
A música, depois, ei-la abrandando.
Reparamos então que os pés pisamos,
Conta contudo disto não nos dando.
Muitos cuidam que aqui o amor selamos,
Desatam a fugir, envergonhados.
Ali, porém, começa o vero amor,
Os ritmos um do outro registados
Coordenando os passos e o ardor.
Quando formos deveras persistentes,
Aprendemos, no curso das idades,
Como dançar o amor com evidentes
Movimentos, não, graciosidades.
Verdadeiro
Verdadeiro amor não é
Nós desejarmos alguém,
Mas que feliz seja até
Nós nem o sermos também.
É tolerância e carinho
Em intérmina expansão:
O bem-estar lhe adivinho,
Vou-lho semear no chão.
O resto, com tudo mais,
São egoísmos pessoais.
Lixo
Quem pensa que, ao não cuidar
Do lixo da relação,
Do trabalho que levar,
Da vida que houver à mão,
É tal se não existira,
Tirando o lixo da mira,
Torna o lixo mais presente:
Cheira mal, traz desconforto,
De doenças é uma enchente
E erva ruim só finda no horto.
É um morto que anda na vida
Sempre, sempre em despedida.
Condiciono-lhe
Quando tomei decisões
A tornar alguém feliz,
Condicionei-lhe as razões
Dos caminhos que não quis.
Não pôde não querer bem:
Antecipei-lhe o que tem.
No fim tenho o isolamento
A castigar meu fermento.
É uma dor que nem morfina
Abranda na minha sina.
Ajudamos
Quando ajudamos alguém,
Ficamos ao lado dele,
Não dentro dele, porém.
Quando só consigo estar
A sofrer na minha pele,
Uso isto a me realizar:
É para eu alguém ser,
Serve-me a me dar sentido
Para a escolha que eu fizer.
Preciso de compaixão
Para me pôr comedido
No espaço da relação.
Previno
É fazer o meu melhor
O meu melhor compromisso.
E, se estou de mau humor,
Previno o meu mundo disso.
Mágico, ao ver como estou
E avisar que assim me vou,
Misteriosamente à volta,
É amor que germino à solta.
Personagens
Transformamos as pessoas
Nalguns personagens nossos,
Aguardo que sejam boas,
Se portem como os esboços.
Aos fracassos afectivos
Tal linha dá-lhes motivos.
Construímos um espaço
Para alguém nos fazer algo
Mas magoa a cada passo.
E o novo muro que galgo,
Se ao fundo caio do poço,
Então nunca mais remoço.
Nosso maior desafio
É viver o que resulte,
Não o que o frustrado fio
Do teimoso catapulte.
O queixoso sofredor
Nunca mais supera a dor.
Comum
Quem morre não mata
A história vivida
Em comum à data
Da final partida.
Nem se desintegra
Tudo o que viveu,
Que herdamos, em regra,
Do que antecedeu.
Só para a partilha
Dum porvir comum
A morte não brilha,
Não dá trilho algum.
Fica o coração
Mais o que entretece,
Fruto da união
Que desaparece.
Do lado de cá.
Que o lado de Além
Tudo o mais nos dá
Com quem nos quer bem.
Entrada
Quando morre quem eu amo,
Dei entrada na caverna.
Cerrada a porta, aí bramo,
Não há mais saída interna.
A vida que é conhecida
Não é mais, só noutra ida.
Não há volta para trás
E seguir para diante
É sem lema que se faz,
No luto de instante a instante.
Vai ser preciso, com lida,
Cavar a própria saída.
Mancha
A palavra pardacenta
No papel amarelado,
A mancha que o tempo inventa
Em honra do que há finado.
A palavra que me resta
Daquele que a escreveu,
Se ele hoje de nada presta,
Presta a herança que me deu.
Não o sei, sei as ideias
Que partilhamos a meias.
A morte é mesmo esquisita,
Deixa mil rastos em fita.
Se o que morreu não o vemos,
Vemo-lo ali no que lemos.
Sobreviveu-lhe a palavra:
Morto, continua a lavra!
Empresto-lhe a minha vida,
Sou eu mais ele em seguida.
Cega
Cega o amor os amantes,
Vêem o que querem ver,
Confundem ânsias instantes
E a realidade que houver.
Ao destaparem os véus
Há inferno sob estes céus.
Do porvir o desafio
É o inferno dos mantéus
Tecer do céu com o fio.
Conduz
Uma amizade que é grande
Conduz à cumplicidade,
Já nem é urgente quem mande
Nas mãos dadas da cidade.
Quando a amizade se quebra,
Às vezes nem ditadura
A leiva fértil celebra
Ao desabar da ventura.
Sentirmos
Um homem pode morrer
À nossa frente sem nós
Sentirmos nada sequer.
Piedade decerto, após.
Temos a barriga inteira
E é o que conta em minha leira.
Metro e meio de distância,
O mundo afunda na dura
Angústia a gritar com ânsia
- E em mim dor nenhuma apura.
É do mundo o drama sápido:
Trepa lento, afunda rápido.
Prendas
Por ti tua mãe é fria
E teu pai, pior que gelado?
Mas prendas quem tas avia
São eles, sempre a teu lado.
Julgam que é suficiente:
És fardo, não um presente.
Quem quer uma vida assim,
Tão perto e tão longe ao fim?
Romantismo
O romantismo é luar,
Precioso pelo namoro,
Mas não para continuar
Vida fora tal pelouro?
O problema é que na vida
A rotina é suicida.
E depois o crescimento
Muda, gradual, a ternura
No amorável sentimento:
Convivialidade apura.
Ora, só o que esta rejeita
A amargor tem vida atreita.
Sem falar já da traição
Que fora busca o que dentro
Se perdeu no ramerrão
Dum cotio já sem centro.
Tentar correr para trás
Contra o que o tempo nos faz?!
Não há via construtiva
Senão moldar-se em conviva,
Saborear o aconchego
Do lar em todo o refego.
Quantas vezes ressuscita
Até o que à ternura incita!
Ama
Quem ama só aprecia
Quem ama na sua ausência.
Na rotina, dia a dia,
Se esboroa a fantasia,
Cheira tudo a recorrência.
Porém, na ausência, o vazio
Quebra de vez o fastio.
Chega a provocar tal dor
Que há quem vai morrer de amor.
Outro
Um ser humano sozinho
Não é nada ali de pé.
Se um outro ao lado adivinho,
Toma rumo a vida até.
A partir deste momento
Nunca mais é solitário,
Da vida embora o elemento
Ponha-o só no mundo vário.
Confiança
A confiança é o alicerce
Duma relação segura,
Funcional, satisfatória.
Só quando ela quebra cerce
- Traição, falta de lisura... –
Nela reparo entre a escória.
Aí é que pesa tanto
Que a vida perdeu o encanto.
Confiança recuperar
É o motor da vida a andar.
Acender
Quando acender o fogão,
Se colocar a mão perto,
Sinto o calor, o abrasão,
E então a afasto, decerto.
Assim é com as pessoas:
Fornalha das amizades,
Sinto-as más e sinto-as boas...
- Atenção às qualidades!
Tenho aqui de praticar,
Ora longe, ora mais perto,
Das palhas buscando o acerto
Para meu ninho entrançar.
Volta
Se ele é para tua casa
Que volta todas as noites,
Que te abrasa ou que te arrasa,
Que impede que bem o acoites?
“Que importa vir para casa
Se lhe interessa outro sítio?”
- É a pergunta que te atrasa
Em teu estado de sítio.
Tua dúvida não deixes
Nunca entrar-lhe na cabeça:
De fogo é o pior dos feixes
Na fuga em que então tropeça.
A não ser que seja inferno
De vida o teu teor hodierno,
Que inferno, nem após morta!
- Tranca aí de vez a porta.
Milagre
Milagre do amor deveras
Não é o de poder curar
Doenças de quaisquer esferas
Que se nem podem sarar.
É o de adorar para além
Das palavras só formais
O diverso, zé-ninguém
Feito mais que tudo o mais.
É o alheio, quanto posso,
Feito meu, mais, muito nosso.
Dois
Vinte e cinco anos de amor,
De afectuosa companhia,
E não têm o valor
De dois anos de alegria,
De inquietude e protecção,
Como os que os filhos nos dão.
É um problema muito injusto,
Porém como descobrir
Que é o petiz quem, sem mais custo,
Sobreviver permitir
Nos vai perante o porvir?
É aquele que nos defende
Contra a solidão dos velhos,
A que com todos contende,
Que nos condena aos espelhos
Solitários cada dia,
Nossa fatal agonia.
Com ele é que, de repente,
Me sinto gente entre a gente.
Preciso
É preciso ter paciência
Nas passagens perigosas.
Quem a tem, tem a evidência
De ultrapassar toda a urgência,
De volta até o mar de rosas.
É o prémio de quem é fiel:
- Volta o amor à flor da pele.
Resiste
Um amor resiste a tudo?
Não, se falta a tentativa.
Tens de te esfalfar, sanhudo,
Para que amor em ti viva.
É rastejar e voar
Com vontade e fantasia,
Cavando terra e luar
E com igual euforia.
O mar seja ou seja a estrela,
Faz singrar a caravela!
Sente
Quando alguém se sente amado,
Num amor correspondido,
É um sentimento exaltado,
Um orgulho desmedido.
Filtro potente, embriaga
Tanto que o real apaga,
Fazendo-o viver de fora.
Corta o que não é paixão,
Impede de o ver, ignora
Nuvens, ameaças, lesão
Que, próximas mais ou menos,
Com mais ou menos acenos,
Tornam sombrio o porvir.
Sede insaciável de posse,
Transporte eterno a fremir,
Só uma ideia faz que engrosse,
A de quem se amar deter,
A ponto de o ver sem ver.
Torna-se
Torna-se acaso obsessão,
Mais ainda, desvario,
Constante perseguição
Em sonho, erótico rio
Ou puro na evocação,
Com sensual desfastio
Ou elevando-me, nobre...
Findo rico sendo pobre!
- Acabo a falar sozinho
Só dum amor que adivinho.
Tudo
Tu tens tudo: tens o amor!
Basta a não deixar sentir
Todo o fardo que é uma vida,
O pensamento opressor
Dos que se curvam a ir
Ver qual é sua medida.
Podes olhar teu destino
Sem estremecer em vão
No meio da solidão.
Tens o teu amor supino,
Coragem de suportar
Todo o isolamento a par.
Encontras-te com os mais
No íntimo de que fruis
Com tuas quimeras, tais
Que até impedem, no que intuis,
De te ver, como quenquer,
Nos cumes, por fim, viver.
Precisa
Um homem que for completo
Não precisa de mulher,
Nem a mulher cujo tecto
Não carece de quenquer.
Mas nisto qualquer se ilude:
É um erro, não é virtude.
O completo não existe
Na Terra ou Cosmos que aviste.
Quem ali se empederniu
Não tem porvir, já morreu.
Somos
Somos como o prisioneiro
Muito ano detrás das grades.
Liberto, sai ao luzeiro
Que iluminar as herdades.
Se a rapariga sonhada
Nos cruzar livre diante,
Nunca então será abordada,
Nenhum a vê nesse instante.
E a oportunidade em vida
Nunca mais torna, em seguida.