SONETOS

 

 

 

CONJUNÇÃO

 

 

 

 

Mais

 

Mais que papel, cola e tinta,

Mais que impressões digitais

É um livro, se alguém o sinta

Do coração nos bornais.

 

São centelhas aos milhões,

Centelhas que ateiam fogos,

Que ateiam revoluções

Dando voz, curando gogos.

 

São as das religiões,

As das políticas voltas...

Indivíduos aos milhões

 

Lá prendem as vidas soltas.

Ruma da vida adivinho

Por mor do livro, o caminho.

 

 

Negro

 

Se não partilhar o afecto,

Ficará guardado em mim.

Se dele for negro o aspecto,

Acumulo entulho ruim.

 

Se calhar nem darei conta

Mas tudo é toxicidade.

Limpar-se de ponta a ponta,

bolsando o que é verdade,

 

Doa lá como doer

A mim, ao outro, a quenquer.

Mesmo termos inimigos

 

Pode prevenir perigos:

Tudo para o bem ou mal

Posso usar sempre, afinal.

 

 

Siga

 

Passas o tempo a salvar

Uma civilização

Qualquer homem a matar

Que te não siga o pendão?

 

Salva um homem, que isto é que é

Deveras o meritório,

Que a humanidade de pé

Ninguém tem no consultório.

 

Humanidade não há.

Homens, só os homens vivos.

Para quem finda acolá

 

Homens não há, são furtivos.

Cega-o de vez, é uma venda

Então quanto ele empreenda.

 

 

Razão

 

Por que razão é preciso

Perigo ou força maior

Para apreender, com siso,

Da vida em paz o valor?

 

Para andarmos todos prontos

A reconhecer os erros,

Prodigalizar os contos

De generosos encerros,

 

Vivermos com indulgência

E compreensão sem fim?

De esclarecer-me a exigência

 

Porque não mais manda em mim?

- Tudo podia à bondade

Levar toda a humanidade...

 

 

Sentir

 

O que temos de mudar

É sentir que alguém direito

Tem de nos encaminhar

A agir, sentir a seu jeito.

 

Ninguém sabe o que outrem deve:

Cada um é um sentimento

Particular, longo ou breve,

Tem direito a tal fermento.

 

E ninguém pode querer

Que todos por igual sintam:

A natura de quenquer

 

Não é igual ao que as mais pintam.

Todos sermos diferentes,

Eis o que enriquece as gentes.

 

 

Creia

 

Há quem creia que com ódio

Destruirá o velho mundo,

Não caiba embora no bródio

Do novo, apenas jucundo.

 

Inda não viu que o amor

Distingue de acto ou sistema

Quem é deles promotor

E os pode rever, por lema.

 

 

Só erigirá o mundo novo

Quem colhe em todos tal ovo.

Tem sempre esta conversão

 

Quem o porvir tem à mão.

Nos mais sempre o que inauguro

É um fatídico futuro.

 

 

Natural

 

É natural estar triste,

Mas não por tempo demais

Ou em redor quem existe

Fica triste como os mais.

 

O divertimento faz

Vir à tona o lado bom

De toda a gente, capaz

De mudar ao mundo o tom.

 

Corre ao vento! O teu anelo

Despenteia-te o cabelo,

Solta uma estrela no céu,

 

Destapa à alegria o véu!

Ao trinar tua garganta

Inteiro o Universo canta.

 

 

Floco

 

Podes criar e ser tudo

O que queiras neste mundo.

Floco de neve miúdo,

Como tu não há segundo.

 

Não te tentes encaixar,

Conformar com o normal

Para igual aos mais ficar,

Já que único é teu sinal.

 

Compete-te celebrar

Aquele pendor pequeno

Que te torna singular,

 

Põe no mundo o teu aceno.

Doutro modo ficaria

Pobre o mundo e sem magia.

 

 

Tu

 

Tu és, filha, tu és, filho,

A minha história vivendo,

Vós sereis sempre o cadilho

Dos dias que irei tecendo.

 

No tapete onde prossigo

Histórias vivenciadas,

Elas não morrem comigo,

Vão convosco nas jornadas.

 

Fecho os olhos. Quando os fecho

Por um momento ou de vez,

Sou mero ponto no entrecho

 

Do Infindo a tecer-nos pés.

Sois guardiões, nas estradas,

Do porvir nestas pegadas.

 

 

Limbo

 

Filhos de mulher sem homem

Presos no limbo do amor

Onde as ânsias se consomem

Vigiando algum sedutor...

 

Culto da esterilidade

A espiar o corpo alheio,

Encasula o que o invade

Durante qualquer passeio...

 

Quando um desejo desperta,

Um olhar acusador

Fecha logo a porta aberta

 

E gela dentro o calor.

E são mortos inda em vida

Sem na paisagem saída.

 

 

Desejo

 

Qualquer desejo é um apelo

A uma comunicação.

Se não é aceite, singelo,

Falta de repente o chão.

 

Quem não deseja nem pede,

De si com o esquecimento,

Só noutro vendo a que acede,

Como acolher o frumento?

 

O intuito do que deseja:

Do pedido a intensidade

É que provoca o que almeja,

 

A resposta que o invade.

Só doutrem a mediação

É alavanca de meu chão.

 

 

Satã

 

Aquela pobre freirinha

Quer de endívias este molho?

Nem sequer ela adivinha

Que é satã que nele acolho!

 

E o monge que se deleita

Com o pássaro que canta

À noite, quando se deita,

Não vê que o canto que encanta

 

Tem escondida por trás

A cauda de satanás?

Por todo o canto ignorado

 

Anda um diabo entrançado:

Tanto um bom como um mau uso

Terá quem fiar o fuso.

 

 

Exigir

 

Se ao filho os pais abandonam,

Não podem, na decorrência,

Querer, quando adulto o abonam,

Respeito nem obediência.

 

Se deviemos adultos

Sem chefes tradicionais,

Em guerra acaso sepultos

Onde nem foram jamais,

 

Se sempre nos ignoraram,

Se só se importam connosco

Se connosco se assustaram

 

Por no seu egoísmo tosco

Se sentirem ameaçados,

- Então, às armas, soldados!

 

 

Seremos

 

Quarenta e quatro anos de casados,

Seremos, ante os mais, a velharia?

É que em redor a festa se anuncia

Em divórcios perdida consumados.

 

Porém nós, que de tão distantes lados

Viemos encontrar-nos cada dia

(Tu, sonhando viagens de euforia,

Eu, nova teoria a velhos dados),

 

As mãos nos damos pelos anos fora,

Ajuda a progredir, sem mais demora,

Cada qual no seu trilho, sonho adiante.

 

Tão diversos e, ao fim, como nenhum,

Conjurados a ser mais e mais um,

O Infindo é cada vez menos distante.