QUINTILHAS E SEXTILHAS REGULARES
CONJUNÇÃO
Crescer
Crescer será perceber
A que ponto é dominado
Por normas que lhe irão ser
De insuportável traçado:
Falta-lhes consentimento,
Mudam a qualquer momento.
Negam-nos
É bom que nos subestimem.
Negam-nos a habilidade?
Nisto é que deles imprimem
A vulnerabilidade.
Tal falha é uma porta aberta:
Minha justiça acoberta.
Melhor
Ser negativo no mundo,
Dizer não, que fácil é!
Bem melhor é o sim, no fundo,
Embora aqui perca o pé.
Mas, seja o dia o que for,
É o que o tornará melhor.
Adultos
Adultos, temos a mente
Cheia de lojas e bancos
Onde outrora, simplesmente,
Mágicos palácios brancos
Enfeitiçavam a gente.
Lei
Se o negro é bastante escuro
E o branco, bastante branco,
Mas nega-o da lei o muro,
Ignorá-la é como apuro
Que ao que é justo oferto o flanco.
Temes
Temes voltar a pôr a mão no fogo.
Não é fraqueza, não, é inteligência.
Porém, sabedoria é saber logo
Que queremos do amor o alegre jogo
Mais quando é firme e quem lhe dá existência.
Romance
Um romance é sempre aquilo
De que são feitos os sonhos.
Do sonho nasce, intranquilo,
O gosto pelos medronhos
Que embebedam cada empresa
Humana que o céu nos preza.
Morremos
Morremos antes da morte
Quando a nós nos desligarmos.
Morremos depois da morte
(Não por aqui não ficarmos,
Que ficamos sem nos verem)
Quando após nos esquecerem.
Leito
Quando, no leito da morte,
A mãe ao filho querido
Lhe murmura “podes ir!”,
É doutro mundo o transporte:
É tão humano vivido
Que é o divino a nos surgir.
Esperança
O desejo nunca tem,
A esperança pode ter.
Portanto, o que mais convém
É na esperança viver.
Se limitar o desejo,
Que enorme vida antevejo!
Percepção
A percepção de morrer
Traz de vez a consciência
De que tudo o que tiver
Aqui fica, é uma evidência.
E a evidência derradeira
É bom que seja a primeira.
Verdade
Verdade é o desvelamento
Dum sentido que é secreto.
Findo no deslumbramento
De adivinhar, no momento,
A plenitude em concreto.
Armário
Quem não quer falar da morte
É a criança que não quer
Abrir do armário o suporte,
De medo a um monstro qualquer,
Sem dar conta de que a casa
Do fogo arde sob a brasa.
Remendos
Tanto morto a passear
Pelos ginásios, o bar,
Sempre a passajar a vida
Sem remendos à medida!
Não serão os mortos, não,
São os vivos que o não são.
Afasta
Quem tiver muito dinheiro
Vai morrer com aridez:
Acreditou, pioneiro,
Que afasta o revés de vez.
Por mais que o dinheiro a aborte,
Nada ao fim afasta a morte.
Tocas
Quando tu tocas alguém,
Não tocas um corpo apenas.
Por dentro um sujeito tem
Cheio de sonhos e penas.
Então, se um corpo contemplo,
Não é um corpo, é mais um templo.
Castigar
Ao dizermos “Deus castiga”,
O que estamos a dizer
É que a gente ali se obriga
A castigar, se puder.
Não tem nada a ver com Deus,
Somos nós, crentes ateus.
Vividos
Uma espiritualidade
Feita de amor e verdade
Vividos (não só pensados),
Seja qual for o caminho,
É vida com resultados
E no fim encontra o ninho.
Abrir
Alguém há-de abrir espaços
Dentro de nós para o amor,
Como alguém vai dar abraços
De medo, de ódio, terror...
E por todos os caminhos
Podemos encontrar ninhos.
Alcanço
Nem sempre eu alcanço alguém
Nem de alguém sou alcançado
Pela vertente do bem,
Também do mal sou levado.
Quantas vezes me converto,
Que o mal me trocou o acerto!
Ferida
Só quem tiver cicatrizes
Sobreviveu, afinal.
Ferida aberta, matrizes
Serão de quem morreu mal.
Bom é ter, ao fim da estrada,
A pele cicatrizada.
Esmola
Se laboras sem amor,
Apenas com desagrado,
Larga o labor, por favor,
Vai a um templo que é sagrado:
Pede esmola àquele guia
Que operar com alegria.
Quebraste
Quando por outrem tu fazes
O que por ti tu não logras,
Quebraste de vez as pazes,
O fito humano malogras:
- Não podes amar alguém
Se a ti não amas também.
Encontra
Quem se põe na posição
De servir de cuidador,
Ao outro algo entrega então,
Não encontra o outro, não,
- E isto é que era salvador!
Cuidador
Quando o cuidador se encontra
Com aquele que é cuidado
E ambos se expõem na montra
Partilhando o aprendizado,
Cada vida dá e recebe
E até o fim nem fim concebe.
Amigos
Estar com os amigos é vital,
Às vezes muito mais que com família
Quando esta for tecida de quezília,
Que àqueles eu direi “fizeste mal”
E eles a crítica sem mal verão:
Sem costas me virar, dão-me outro chão.
Tire
Nunca tire conclusões
Das atitudes de alguém,
Senão os mais são peões
De histórias que a mente tem.
E a nossa mente conversa
De forma às vezes perversa.
Redor
Em redor de nosso umbigo
Não gira mundo nenhum
Nem apesar dele o abrigo
Vai falhar a qualquer um.
Vais temer acaso a chave
Dum bem-estar que alguém grave?
Perda
A vida empenho a tentar
Aprender como vencer.
Ninguém há para ensinar
A aprender como perder.
Ora, a perda é o mais constante
Que teremos vida adiante...
Perder
Será como perder bem
Ou perder melhor na vida
O que aprender nos convém,
Que a perda é que, de seguida,
Se acumula de tal sorte
Que tudo perco na morte.
Mata
Cuidamos que o diferente
Não vai ocorrer agora,
Seja embora o conveniente.
O pior é que a demora
Em nosso cuidado assente
Mata o porvir e o presente.
Morte
A morte de meu passado
Vem de ter-me arrependido
De tão mal o ter usado
Por má escolha que haja havido.
No cadáver enterrado
Vou eu também um bocado.
Pequena
Pequena morte enjeitada
Redunda em invalidez:
Relações novas na estrada,
Trabalhos novos, de vez
Para tal não logro arrimos,
Que acolá nos destruímos.
Entrega
Quem ao processo de perda
Não se entrega, não renova
A lição que dali herda,
Vai findar no parto à prova
E nem com cesariana
À luz dá quanto ele emana.
Perco
Quando perco o que adorei,
Onde mudei-me e cresci,
Onde mil sonhos sonhei,
Vale a pena o que aprendi:
Dói mas projecta-me, tenso,
Para um mundo agora imenso.
Vínculo
Quando o vínculo rompido
É feito de amor genuíno,
A dor do luto sofrido
É profunda mas tem tino:
Dali me irei impelir
O mundo a reconstruir.
Reconheço
Quando reconheço a dor,
É mágico: diminui.
Quando a nego no que for,
Se apodera do que fui.
Logo, de alguma maneira,
Esmaga-me a vida inteira.
Charrua
Tudo irá morrer,
Mas o amor não morre,
Charrua a volver
A leiva que houver,
Sempre ao mundo acorre.
Diferença
Da ficção à realidade
A diferença constante
É que a credibilidade
Só a primeira quer que implante.
A realidade implausível
Pode sê-lo, que é credível.
Emoção
Uma emoção com efeitos
Que podem ser negativos,
Só contrariada com pleitos
Doutra emoção cujos peitos
Mais se mostrem coercivos.
Abismo
Mas que é que será pior:
Ver todo o mundo a cair
Pelo abismo, sem motor,
Ou o mundo a explodir
De tal modo que quenquer
Perde o gosto de viver?
Provável
Quão à civilização
Mais corrermos ancorados,
Mais provável há-de então
Sermos por civilizados
Tratados em qualquer chão,
Só incivis o não farão.
Chegou
Toda a gente corre, corre,
Sempre para qualquer lado,
Desde que não seja aqui.
Até que, num dia, morre,
Sem nunca ter reparado
Que nunca chegou aí.
Garantir
Hoje, garantir emprego,
Só a quem for indispensável.
Se o cumprirem, que sossego
De vida mais inefável!
Até mesmo os parasitas
Juro que nem farão fitas...
Terás
Para vir a ter
O que não tiveste
Ou de vez perdeste,
Terás de fazer
O que não fizeste.
Perdemos
Quando perdemos a força
De a nós próprios nos salvarmos,
Logo a força se reforça
Ao dar as mãos: quanto orça
A todos nos libertarmos.
Músculos
Se de músculos teus lemas
Forem, vê bem os sentidos
Onde atiras o calhau:
Há na vida mil problemas
Que nunca são resolvidos
Batendo-lhes com um pau.
Jovens
Todos os jovens suspeitam
De que são mesmo imortais.
Se as vitórias os enfeitam,
Então não duvidam mais.
Bem rápida a recompensa
Lhes rouba da mão a tença.
Visar
És pequeno e és franzino,
Não fisicamente forte?
Encara bem teu destino
E não lhe percas o norte:
- Tens de visar por teu centro
Ser bem forte mas por dentro.
Resume
Cada célula em meu corpo
Resume o Cosmos inteiro:
Quer dizer que em mim encorpo
O Infinito a que me abeiro,
A cada passo que dou
A ser o que ao fundo sou.
Gérmen
O homem é um gérmen de Deus,
Pode-se divinizar:
Meus potenciais e teus
Sempre se podem actuar.
Unificam terra e céus:
O Infinito é o meu lugar.
Benevolência
Vamo-nos divinizando
Quando o egoísmo se ultrapassa,
À benevolência dando
Universal toda a traça.
Em lampejos esta via
É o chão da sabedoria.
Encaramos
Como encaramos o mundo:
Ignorando a luz da sina
Que nos apela do fundo
Ou aderindo ao que inclina?
Aqui, findamos unidos;
Além, sempre divididos.
Falta
Falta de agradecimento
Sempre é vício deplorável.
Pior, porém, é o fermento
Da ingratidão feita amável:
Não responde ao benefício
Nem lhe reconhece o ofício.
Vera
A vera fidelidade
Não é a de servir senhores,
É a livre escolha de pores
A agir tua humanidade
Sem hierarquias nem classes
Te tolherem onde passes.
Poda
O agricultor poda a vide,
Fecunda ao porvir colheita.
Se a vinha largar decide,
Raro fruto nela espreita:
Serão das ervas daninhas
As raízes, não das vinhas.
Surpreende
Às vezes surpreende a história
Com um facto que nos custa.
Tento enganar a memória
Escondendo-o, se me assusta.
Mas porquê temer-lhe a lista?
- É ajustar pontos de vista!
Isolar
Orfanatos mais asilos
Têm muitas semelhanças:
Isolar, manter tranquilos
Os que o mundo, em suas tranças,
Não conseguir absorver
...Ou utilizar sequer!
Tudo
Em tudo o que é mal há um bem,
Em tudo o que é bem há um mal.
Ignoramos, afinal,
Onde cada qual se atém.
Deus é que tem mesmo juízo:
Só atende ao que for preciso.
Disciplina
Na disciplina de ferro
Todos buscam a evasão.
Quando outra não há, me encerro
Na evasão do sonho então.
É aquilo que marca a vida:
Sonho à prisão a saída.
Exilado
Qualquer exilado aspira
À pátria dele voltar.
Sagrado toque de lira,
É o Infindo a me chamar,
Mesmo que o passo seguinte
Seja o de um país pedinte.
Escravos
Fazem deles o que querem,
Sem pedir opinião:
Escravos, só por o serem,
Deixam de ser o que são
Se o acordo lhes pedir:
- Servos, não, são povo a ir.
Coxeio
Quando fico aborrecido,
Coxeio severamente.
Se o coração fica enchido,
Não coxeio, é de ir em frente.
De espírito o meu estado
Tem mais efeito que o fado.
Vitais
Os vitais órgãos humanos
Sempre automaticamente
Operam quase sem danos.
De viver a voz premente,
A esperança de raiz
Iguais são, de igual matriz.
Piloto
Piloto sonha voar,
Trai no sonho a terra inteira.
O céu é mais belo no ar,
Terra é feia, uma lixeira.
- Todo o homem é um piloto
Num sonho de céu que é boto.
Lugar
O lugar onde nascemos,
As casas, as nossas hortas,
Íman a que nos colemos,
Atraem e abrem portas.
É o aconchego da vida...
E a vida enflora em seguida!
Dúvida
A dúvida, a tolerância
São de homem civilizado,
Matam nele a ingénua infância,
Matam-no em muito outro lado.
Por isso é que ressuscita
Cosendo à vida outra fita.
Serenidade
A serenidade, filha
Tranquila da tolerância,
Da sabedoria a quilha
Superior à circunstância,
Requer mais resignação
Ao que fatal for então.
Cremos
Nunca nós cremos na morte,
Senão não havia guerras:
Cuidamos que é nossa a sorte
De escapar por entre as serras
E a tal brindam nossos bolos...
- Como somos mesmo tolos!
Competição
De competição desporto
As cabeças paralisa,
Da vitória a que lá exorto.
A massa anónima visa,
De todo a estupidifica,
Da selva a horda replica.
Estrelas
As estrelas, no alto aceno,
São de admirar sem labéu.
Demais o homem é pequeno
Para colhê-las no céu.
E as do céu como as da terra
Sina igual no-las desterra.
Casado
Deixa o casado de ver
O que súbito ao olhar
Salta estranho de quenquer,
Basta-lhe só reparar:
A mulher dele ignorada
Sempre é doutrem desejada.
Temor
O temor com que findemos
Fala mais do que julgamos.
É que somente tememos
Por algo que nós amamos.
E o amor se hierarquiza:
Qual o maior que me giza?
Atraído
A vida não nos dá
Nada mais que amizade.
E quando um par está
Atraído em verdade,
Tudo o mais, se calhar,
Podemos suportar.
Orgulho
Há o que muito se envergonha
Por aquilo que não é
E com o orgulho nem sonha
Do que é pelo próprio pé.
Quando isto é o que, afinal, conta,
Não o que quer gente tonta.
Gente
Há tanta gente que faz
Por rica ser ou famosa
Que, arrastando o mundo atrás,
Trai o mundo que o não goza:
Ser si próprio é que diz
Se alguém é ou não feliz.
Basta
Se tudo o que lhes fazemos,
Por mais que a gente se esforce,
Não basta, o que quer que demos,
É a hora: teu passo torce,
Dá por finda a pescaria,
Salta em terra, é outro dia.
Maior
A maior dificuldade
Dum homem, tal de quenquer,
É que nem sempre à vontade
Consegue aquilo que quer.
Há, por norma, um imprevisto:
Questão é lidar com isto.
Esquece
Uma vez adormecida,
Logo esquece a sentinela.
Maré de prazer mantida
Só quebra aquela sequela
Quando da vida os torresmos
Nos devolvem a nós mesmos.
Ordem
Qualquer um de ordem precisa,
De ordem para ser feliz,
Como o monge a regra visa:
Da liberdade liberto,
Salvo apenas por um triz,
Firme enfim do que andar certo.
Perpassa
Que vilania e desgraça
Perpassam no baixo mundo!
O aborrimento que grassa
Pelo próximo, infecundo,
Ajuda-me a suportar
O meu neste meu lugar.
Colheita
Quando a colheita foi boa,
O imposto não foi pesado,
A pocilga engorda à toa,
O lar fala saciado,
A quem é que importa, então,
Cuidar de revolução?
Estudante
Um estudante que queira
Lavrar a terra ancestral?!
Que mãos brancas em tal jeira
Ninguém requeira, afinal!
Se os livros forem trajecto,
Dele não é o campo o tecto.
Fundo
No fundo, sou faroleiro:
Tenho no céu o infinito,
No mar, outro infindo inteiro
E um terceiro o não desquito:
- Minha alma humana, o veleiro.
Rápido
É lei da vida que um homem
Mui rápido se acostuma
Aos bens que em vida lhe somem
E a eles tudo resuma.
E a confiança antes perdida
É fé no porvir erguida.
Jovem
Não vê o jovem com clareza
Como conquistar o mundo.
O bem do mundo isto preza,
Senão lá se ia a beleza
De como o mundo é fecundo.
Gaivota
Se eu for gaivota do mar
Tendo ao alto um céu de anil,
Não me irei preocupar
Do que pensam focas mil
Sujas e podres de inveja
Dum voo que cada almeja.
Tipos
Três tipos há na pessoa:
O sem ideia nenhuma,
Outro da crítica à toa,
E o que persiste e arruma
A vida para diante.
- Este faz mundo, constante.
Custoso
Ela não faz uma ideia
De como é custoso a um homem
Fingir que é de vida cheia
Quando apenas o consomem
Atitudes que tomado
Só o têm por tolerado.
Pátio
Quando o pátio das traseiras
É quanto houver para ver,
Não vejas só tais lixeiras,
Olhe em ti dentro o que houver.
De repente esta viragem
É doutro mundo a viagem.
Derradeira
A derradeira vitória
Depois de falhada a vida:
Nunca mofei da vanglória
Duma aspiração perdida
E jamais hei alegado
Haver tudo ultrapassado.
Vaidade
A vaidade desmedida
É de quem é nulidade.
Com a derrota sofrida
Envenena uma cidade.
O êxito dum semelhante
Dele é o veneno do instante.
Cortá-lo
Ao ver um inconveniente,
É de cortá-lo à partida.
Quem irrelevante o sente,
Causa de dor mal sentida,
Termina em sérios cuidados
Fustigado de tornados.
Azedo
Azedo à monotonia
Do correr do dia-a-dia,
A sonhar de olhos abertos
E às noites a ressonar?
- Aos movimentos despertos,
Ei-lo logo a espernear!
Sonhos
Ninguém poderá lutar
Contra os sonhos que tiver.
Mas dois postos a pensar
Nunca pensarão a par
No que a vida ali lhes der.
Deveremos
Deveremos reflectir
Na vida em quais os matizes
Que a todos tornem felizes
Ou, ao menos, no porvir,
(Já que a tal somos atreitos)
Um pouco mais satisfeitos.
Reprime-se
Com dinheiro, uma mancheia
De poder e simpatia
Reprime-se, volta e meia,
O desaforo, algum dia.
Mas jamais, em nenhum lado,
É de vez exterminado.
Forçar
Não devemos forçar nada
Que se não deva forçar.
Temos de aprender, na estrada,
Então a ceder lugar.
O que é o mais inteligente
Ali cede, que é prudente.
Viro
Se a cara viro à moeda,
Para mirar a coroa,
Não traí a cara treda,
Complemento-a, má ou boa.
É o que me inteira na vida
Em qualquer rota seguida.
Petiz
Felicidade é o sabão
Que o petiz quer, lá se finca.
Mas, se lhe mal deita a mão,
Queima os olhos dele então
Mais o estômago, se o trinca.
Pontos
Pontos extraordinários
Todos terão algum deles,
Mas cotios ordinários
Sugam-nos até às peles.
A monotonia diária
Mata o génio com malária.
Dar-lhe
Para restabelecer
Doutro em mim a confiança
Tenho primeiro de ver
Como dar-lhe segurança,
A sentir-se respeitado,
Ouvido, entendido – amado.
Agrilhoado
Agrilhoado ao cumprimento
Indefectível da regra,
Findas a aprender tormento
Donde vinha o que te alegra.
Tudo é falível: então,
Vê se a lei cumpre a intenção.
Norma
Há, por norma, uma razão
Para as coisas serem feitas
Pelo modo por que o são.
Porém, em todo o serão,
Ouço: “sim, mãe... (Que maleitas!)”
Embrulhada
Se andas à espera de prenda
Embrulhada em lindo laço,
Podes nem ver o que renda
No presente um novo abraço.
Ora, é o que está mesmo aí
Primeiro a acenar-te a ti.
Maior
A maior felicidade
É dos mais sermos amados
E sentir que, de verdade,
Da presença presenteados
De nós, isto acrescentar
Lhes vai sempre o bem-estar.
Anda
A questão do preconceito,
Quando tudo anda a mudar,
Não é andar brotando a eito,
Basta apenas aflorar.
Erva daninha na relva,
Ou se monda ou finda em selva.
Há
Há gente boa e também
Os moralmente primários
Que se desviam do bem,
De algum ódio solidários.
Que esta gente, quando actua,
Em nós não encontre rua!
Nunca
Nós nunca somos perfeitos
Mas podemos viver juntos,
Mútuos trocando respeitos
De ajuda em quaisquer assuntos.
Desde sempre. Como, aliás,
Quem vive bem foi capaz.
Assustar
A morte é sempre o espantalho
A assustar o passarinho
De vida pousado em galho,
Perdido o seguro ninho.
Sempre mentira do engano
De não ver que não há dano.
Terra
Terra, tapete que piso;
Terra, cobertor que cobre.
Magra fronteira de aviso
Entre dois mundos que viso:
Um que vivo, outro o que sobre.
Camadas
Se as camadas da cebola
As desmonto rumo ao centro,
Que decepção! Desenrolo
E não há mais nada dentro.
Desmontar ficções da vida
É uma rota parecida.
Outros
Dos outros a liberdade
É sempre de respeitar,
Mesmo na oportunidade
De se andarem a enganar.
Cada um é responsável
Da escolha que lhe é imputável.
Nome
Um nome ali no papel
Limita mais do que, juntos,
Vísceras, órgãos, tropel
Dum corpo mais seus assuntos.
Assim a burocracia
Inverte e perverte o dia.
Memória
A memória, que mentira!
O que foi não dá como era
E ela o que não foi delira
Que lá esteve à nossa espera.
É tanta a leitura a par
Dum passado singular!
Debita
Quem debita uma mentira
É que busca um benefício.
Quem verdade tem em mira
É que busca igual resquício.
Só que um corre a escuridão
E o outro, a luz do Verão.
Farol
Ou sou farol a luzir,
Lendo o seguro da costa,
Ou queimo olhos a seguir,
De pirata feito aposta.
E afinal a minha escolha
Dita ao fim que é que eu recolha.
Crê
A gente crê no que quer,
O real poucos importa.
É reparar para ver
Que olhos abrir abre a porta.
É difícil a verdade
Se ninguém se a tal persuade.
Viagem
Não há viagem de volta,
O lugar onde voltamos
Marcado é da corda solta
De ausência com que o marcámos.
E eu já não sou quem partiu:
O eu que volta é um outro eu.
Perseguir
A vida vai permanente
Perseguir todo o heroísmo
Que se não limite, assente,
A sobreviver no abismo.
E depois, cumprida a estrada,
Não resta da lenda nada.
Contra
Contra o tempo a devastar
Todos lutam com as armas
Melhores que é de empunhar.
Vamos condenar tais karmas?
Quem condena a fantasia
Inda mais se iludiria.
Brumas
É nas brumas que melhor
Se acoberta o inimigo,
O assalto final a pôr
Em pantanas meu abrigo.
Ter dele toda a clareza
É a minha melhor defesa.
Cronista
O cronista nunca escreve
Para contar a verdade
Mas adular como deve
O poder que o persuade.
E doutrinar para o facho
Do poder o populacho.
Inscreverá
Deus inscreverá seu hino
No coração de quenquer:
Prostituta ou assassino,
Um suicida qualquer...
- E nós a medir o termo
Da raia de nosso ermo!
Duvida
Quem duvida é semelhante
À onda do mar instável
Na mão do vento inconstante.
Como algo erigir durável?
Tens de sempre firmar pé
Na fé em ti, teu sopé.
Esconda
Há quem esconda a pobreza
Na máscara do desdém
E, se outrem desejos preza
E apetite que lhe pesa,
Só a dignidade aqui tem.
Juntos
Se não vamos encontrar-nos,
De que é que nos vai servir
Vivermos juntos: juntar-nos
No arranha-céus de fugir?
Porém, a ir eis-nos todos
Na mentira dos engodos.
Inteiramente
Quem é inteiramente mau?
Ninguém! Somos adoráveis,
Maravilhosos no vau
De bebés irremediáveis.
O que nos estraga tudo
É a adulta veste de entrudo.
Simpáticos
Bem mais simpáticos somos
Uns com os outros na cela
De condenação: supomos
Que não há vida após ela.
Depois nem vemos que a vida
É sempre isto em toda a lida.
Produto
Não há produto acabado
Nem nenhum dia final.
Há caminho caminhado
E a caminhar, sem total.
E não é leito de morte,
É ter do Infinito a sorte!
Palmos
Três palmos de liberdade
Para cima e para baixo
É o limite que me invade.
Mas sonho uma infinidade,
Nela é que busco onde encaixo.
Sozinho
Sozinho de vez em quando,
Que bom! Enquanto excepção...
Se durar, logo é desmando:
Que fazer da solidão?
Que fazer deste vazio
Onde em horas me desfio?
Sem-abrigo
Um sem-abrigo é um humano,
Tem aspirações, desejos,
O sonho com que me irmano,
Quer lugar com mil ensejos
Onde viver, ter labor...
- Em resumo: quer amor!
Central
A ideia central do amor
Nem é mesmo o compromisso
Da relação, a se impor.
Em primeiro e sempre omisso
É ser a melhor versão
De nós próprios sempre à mão.
Precisamos
Precisamos de quem una
Em lugar só de afastar,
Que a Terra numa reúna,
Em lugar de a estilhaçar.
Para que sejas um deles,
Ninguém mais tu atropeles!
Nunca
Quem só espera nunca alcança,
Que apenas busca o conforto
Do passo habitual da dança,
Tudo o mais cuida que é torto.
Ora, de êxtase um momento
Não é um conforto, é um fermento.
Fazer
Se tudo fizeste já
Que poderias fazer
E não conseguiste lá
O que conseguir se quer,
Então inda não fizeste
Tudo o que fazer pudeste.
Feri
Quando eu morrer, saibam bem,
Não feri com intenção,
Que é quanto ao céu mais convém,
Por mais que digam que não.
Não são ritos, sacramentos,
Nem morais sem ler os ventos.
Declara-se
“Declara-se, de raiz,
Como inocente ou culpado?”
“Meritíssimo juiz,
Sou inteiro apaixonado:
Do Cosmos por cada estrela
E, aqui na Terra, por ela.”
Cego
Cego não é o que não vê,
Nem o que não quiser ver,
É o que a superfície crê
Que lhe esgota todo o ser.
O pior cego é, pois, quenquer:
- O pior cego é o que só vê!
Linda
Como és linda em tua roupa!
Tenho, porém, a certeza
De que o gosto me não poupa:
Mais vou gostar da beleza
A que tudo em ti me impele:
- Beleza da tua pele.
Bastará
Bastará uma distracção
E logo um amor se acaba,
Uma distracção e então
A vida trancou a aldraba.
Embora logo o não visse,
Bastou um termo que eu disse...
Defeitos
Meus defeitos suportar?!
Quero-te capaz de amar
O pior de meus trejeitos
Com que rasgarei o mar!
Aí então é que os dois
Somos o Infindo depois.
Espero-te
Espero-te, como espero!
Mas é sempre madrugada
E o sol, prometido mero...
- Não, já não espero nada:
Venha, venha o que vier,
Estou pronto a receber.
Fazes
O que tinhas de fazer
Fazes para respirar
Tranquilamente, até ver...
De papo então para o ar,
No horizonte que remiras,
Porque afinal não respiras?
Metade
Metade de mim és tu.
A outra metade, ao lado,
A infringir todo o tabu,
Há-de ser sempre pecado,
Pecado donde ressurge
O que de vital mais urge.
Sorte
“Tua sorte é que eu esqueço
Todo o mal que tu me fazes.”
“Todo o mal?! Não to mereço.
Algo há com que não te aprazes?”
“Pois. Eu até me desmembro
Mas não me lembro, não lembro...”
Pena
Não terei pena de quem
Sofrerá profundamente.
Terei é pena de alguém
Que funda pena não sente:
- Mas que vida de lixeira
Viveu ele à nossa beira!
Felicidade
Felicidade não é
Dos que viverão melhor,
Mas dos que porão de pé
O esquecimento maior:
O mau é para esquecer
E o bom é que é de viver.
Viciado
Sou viciado em pessoas,
Pessoas extraordinárias,
As que conseguem, às boas,
Façanhas incríveis várias,
Tal tornarem meu cariz
Cariz de me pôr feliz.
Casal
Havia um casal que tinha
Tudo para dar errado,
Mas havia o amor na vinha
E, após tudo vindimado,
Bastou ter o amor desperto
Para tudo bater certo.
Cuida
Não cuides no que fazer,
Antes cuida em que sentir.
O acto é mais do que querer,
É o que te traz e faz ir.
Não quererás água adrede,
Queres é curada a sede.
Sentido
Quem no sentido da vida
Insiste só em pensar
Não age então à medida
Do que à vida pode dar,
Afinal, todo o sentido
Que por nós será vivido.
Nunca
Era uma vez um casal
E que nunca discutia.
E viveu sempre, afinal,
Lado a lado, todo o dia,
Para sempre separado
Conjunto desconjuntado.
Abraço
“Afinal, que é que te falta?”
“Ora bem, falta-me tudo...”
“Toma um abraço, dá-te alta!”
“É bom!...” Mas quem, na ribalta,
Tal nos diria, contudo?
Muda
Quando alguém sentir saudade
De alguém que lhe for querido,
Logo muda a identidade
Dos mais todos no sentido
De o ver todo em cada um:
- Não há mais mundo nenhum!
Fingir
Não é nada extraordinário:
Todos temos muito jeito
A fingir de modo vário
Que tudo bem e é do peito.
E nem nos sentimos mal:
Pois se todo o mundo é igual!
Ideia
Toda a gente a ideia a ter
De como tudo fazer
E depois tudo faria
Como mui bem entendia...
- Assim, no destino vário,
Anda aí tudo ao contrário.
Peso
São de tal peso os cadilhos
Que nos sempre atam aos filhos,
Que cada qual é feliz
Tanto quanto é (de raiz
Sempre a remover sarilhos...)
Menos feliz pelos filhos.
Morrer
Morrer por um ideal
É morrer do que não é,
Não só por nada ser tal
Mas porque, a pô-lo de pé,
Somente as mãos de quem vivo
O semeia, à morte esquivo.
Vendados
Após tanto caminhar
De olhos vendados, a herança
É o vazio de legar
Legados que não se alcança.
Não é melhor, de olho aberto,
Ir tornando o longe perto?
Daqui
Daqui a cinquenta anos
Ninguém saberá quem sou,
Não valerei nem enganos
Do trilho por onde vou.
Oxalá o novo grande homem
Veja os tempos que o consomem!
Vazio
Há o momento de sentir
Este vazio de tudo.
Mas há muito a distrair
Até fartar e me iludo.
Mas depois, como a criança,
Até mesmo brincar cansa.
Horas
Umas horas bem passadas:
Cavaquear pelo fresco
Entre amigos das jornadas,
Frente a um jarro principesco...
Tudo o mais é velha história,
Nem fica para memória.
Procura
Quem procura em diversão
O gozo feliz, consciente,
Vai, por insatisfação,
Até ao prazer demente,
Paraíso artificial
Que, em vez de alegre, é letal.
Sombras
Quando algumas sombras negras
Embaciam o esplendor
Que resplandece no amor,
Afasto de mim tais regras.
Perante a celestial ânsia
Não têm mesmo importância.
Pedras
Há sempre pedras no chão
Difíceis de ultrapassar.
O tempo é que faz questão
De no-las aos pés jogar
Quando o amor cria a ilusão
Do céu na curva a chegar.
Esplendor
Lugar onde nos amamos
Logo se enche de poesia,
Suave esplendor de magia
Que só com amor pintamos.
Tudo o mais é sujo e negro?
Não, é o céu onde me integro!
Definitivo
Nada nunca ninguém sabe
Em definitivo, nada.
Só muita indulgência cabe
Ter com os mais, na jornada.
Herdada balança arcaica,
A justiça é farisaica.
Gozo
Na vida, o aperitivo
É melhor do que o jantar.
Todo o prazer por que vivo
É o gozo de antecipar,
Porque, uma vez consumado,
Dói de tão pouco ter dado.
Físico
O amor físico é um engodo
Por que se deixa tomar
O que de algum outro modo
Não logre o amor vislumbrar:
- Ou com outrem ser união,
Ou do Infinito expressão.
Cometer
Quem cometer falta
Terá de expiá-la,
No imo ou na ribalta,
Pouco importa à tala.
Se o não faz, porém,
Tudo ao chão dar vem.
Sentirmo-nos
Sentirmo-nos respeitados,
Que grande satisfação!
Se com méritos provados,
Ainda melhor então.
Todavia, se é fictícia,
Não é maior a delícia?...
Olhes
Nunca olhes para a boca
Do que aí falar contigo.
Vê-lhe aos olhos que é que evoca:
Se o sorriso a tal postigo
Não chega, que olha de lado,
A sério, toma cuidado!
Artes
Costureiro e lenhador
São duas artes sagradas,
Abrigo ao lar a propor,
Em labor, labutas gradas.
E quando, por fim, as cobras,
De arte são deveras obras.
Pára
Pára, pára e põe-te a ouvir!
Ouvirás teu coração
E a ti próprio, a seguir.
Se te ouvem com atenção
Os teus amigos aí,
Deveras ouvem-te a ti.
Recusam
Recusam sair da cama
Se for dia de ir à escola.
Mas, quando a neve se acama,
Longa a fila se derrama
E todos vão de sacola!
Curvas
Curvas, ângulos diversos
Temos todos no interior.
Temos de ser muito tersos
Para alguém lhes dar valor.
Que é bom temos de aprender
Sermos o que é o nosso ser.
Múltiplas
Teremos de ser pessoas
Com múltiplas dimensões,
Tentar que íntegras e boas
Sejamos entre milhões.
Somente com tal matiz
Cada qual vai ser feliz.
Alguém
Trata de querer
Ser alguém completo
Como deves ser:
Eis aí teu tecto.
Então, por um triz,
És mesmo feliz.
Avós
Os avós são o pilar
Da ponte para o passado,
Trampolim para o porvir.
Eu nem logro imaginar
Que vidas terão rasgado
Para aqui me pôr a ir.
Bondosos
Eu estou feliz,
Feliz hás-de estar:
Mais bondosos quis
Isto nos tornar
E mais generosos,
- Que a vida são gozos!
Ortodoxos
Ortodoxos, em geral,
Evitam com veemência
A interacção, no total,
Passiva embora, em premência,
Com todo o restante mundo
- E o deles finda infecundo.
Deixa
Deixa de tentar
Ser quem tu não fores:
Não vais encontrar
Certos teus amores.
Sê quem és, que assim
Vais tê-los por fim.
Queira
Há quem queira ser actor
Porque crê representar
E há quem queira ser pintor
Porque não sabe pintar...
- Afinal, qual a jornada
Que cobres com tua estrada?
Desperdice
Há quem desperdice a vida
Indo atrás duma quimera,
Mas inda a Índia esquecida
Hoje era numa outra era,
Não fora ter-se perdido
Alguém rumo ao pretendido.
Suor
Por mais que o suor da prática
Talhe do artista o artista,
Tal do padeiro a gramática,
Nunca a inspiração que exista
Provirá daquela fonte:
É inata, sem outra ponte.
Propósitos
Ter propósitos mui sérios
E fé na missão das artes
Nada acrescenta aos sidéreos
Mundos por onde as acartes.
E se és deles destituído
Também não tos hão trazido.
Sinto
Quando me sinto atraído,
Desejo corresponder.
Se é o fundo de meu sentido,
Tudo o mais finda a perder:
Ao largá-lo no escabelo,
Comigo é que encontro o elo.
Preciso
É preciso abandonar
A formação recebida
Dum ancestral patamar
Depois de bem acolhida
Para, por fim, se poder,
Em definitivo, Ser.
Seguir
Quando a criança abandona
O seu pai, a sua mãe,
Para seguir quanto abona
O que do íntimo lhe advém,
Vai descobrir, em seguida,
Na vida dela o que é Vida.
Passo
Passo a vida a confundir
Projecto e modos de ajuda,
Sinais e rumo a seguir,
Meios e paixão aguda,
A meta com a viagem,
- A prenda com a embalagem.
Encontrar
Temos de encontrar a origem
De nós próprios até ser
Nosso pai e mãe que vigem
Na fundura a nos mover.
Temos de ser a criança
De nós próprios que se alcança.
Deixar
Tenho de deixar de ser
Eu-meu-pai, eu-minha-mãe
E mesmo eu-meu-camarada,
Até eu-eu me tecer
Como só a mim me convém
Na minha exclusiva estrada.
Filiação
Deixai vir cada criança
À filiação humana,
A ser dia a dia a trança
Do que do fundo dimana:
Ser o Eterno aqui presente,
Gesto a gesto mais vigente.
Pais
Os pais nunca deverão
Os filhos na dependência
Conservar em possessão
Ou moral intransigência:
Deixem-nos ir à procura
Do Infinito que os depura!
Pedaço
Não permaneça encerrado
Num desejo dependente
Duns pais, falso deus falhado,
Meros pedaços de gente.
Deus não lhe apresentarão:
Isto é dele a perversão.
Nunca
As crianças não pertencem
Aos pais nunca que as geraram:
Filhos de Deus, incarnaram
Nestes. Quando se convencem?
Filhos, são os vossos pais,
Ante Deus, vossos iguais.
Junto
É junto de pai e mãe
Que encontro amor, segurança.
É preciso ir mais além:
O imo do Cosmos mo alcança.
Chame-se o que se quiser,
Deus mil formas são de o ver.
Bebe
Aquele que bebe só
Fecha-se no seu deserto.
O acompanhado, do pó
Pode levantar-se, esperto,
Desprender os corações,
Fundar novas uniões.
Encontro
O encontro do imaginário
Com o real me provoca
Ruptura no meu fadário
E um mundo outro me evoca:
É o que fecunda, enriquece
A vida que me falece.
Filhos
Filhos de devoradores
Não são livres para amar,
Nem de pensar são senhores,
Escravidão singular:
De amor canibal marcados,
Não amam nem são amados.
Privada
Quando privada do adulto,
Do cuidado permanente,
A criança busca, oculto,
O desejo que a alimente.
Assim constrói dia a dia
Sua própria autonomia.
Ave
Qualquer ave encantadora
Numa gaiola doirada
Prisioneira a toda a hora,
Há quem diga: “é muito amada!”
Quando apenas é uma escrava:
Tudo ali lhe a vida entrava.
Novo
Tudo o que é novo provoca
Reacção de resistência
E há quem se ria da louca
Novidade em evidência.
A boa nova angustia
Por mais que traga alegria.
Dados
Na morte como na vida
Não são dados que apresentam
Que contam, tudo em fugida.
O que fica e onde assentam
E que tudo o mais implica
É o que cada significa.
Necessidade
Os pais vão satisfazer
Necessidade à criança,
Não sem desejo conter,
Frustrar-lhe do sonho a dança.
Dando de comer, portanto,
Não vos devoreis, no entanto.
Destino
Adulada ou desprezada,
É a mulher então furtada
Ao destino que a comanda
De ser a desideranda:
Desejável no olhar casto
Dum homem no mundo vasto.
Humano
Humano amor ao humano,
Se não for transformação,
É fixação num engano
E parou a evolução.
Amor não evolutivo
É a morte de quanto é vivo.
Dívida
O que é feito por amor
Não traz dívida, é gratuito.
Reconhecimento impor
É, no amor, roubo fortuito:
Tentativa de domínio,
Outrem viola, é um assassínio.
Próximo
O próximo é o eficaz
No momento da desgraça,
O compassivo que traz
Cura ao que o punhal trespassa.
A ele é que, agradecido,
Imitarei o sentido.
Desinteresse
O desinteresse humano
Não existe no total,
A plenitude é um engano
Mas é sempre o nosso ideal:
Fiel anima a caminhada
Ao infindo da jornada.
Ajuda
Se ao outro me identifico,
Feito meu espelho então,
A ajuda que lhe dedico
É a mim feita noutra mão.
Se depois tudo me esquece,
Isto é que é desinteresse.
Onde
Onde Deus andar presente,
Anda presente o diabo.
Onde o diabo andar ausente,
Não há Deus, ao fim e ao cabo.
O mal é a sombra do bem.
Entendemo-la, porém?
Dentro
Cada um tem dentro em si
Um diabo que atormente:
Em tudo quanto revi
O bem ao lado o mal sente.
E sou eu que os desempato
No que acato e desacato.
Mim
Quando de mim me esvazio
Para de Deus eu me encher,
Humilde sou no vazio
E orgulhoso ao Deus cá ter.
Que vigilância me alcança
Não me perder nesta dança?
Tentamos
Tentamos ser superiores,
Mas a superioridade
Traz da soberba os horrores.
Em nome da liberdade
Escolho como proceda
E é dali que vem a queda.
Crê
O diabo crê em Deus,
Então pode combatê-lo.
Conhece-o bem lá dos céus
E aceita-o, impõe-lhe o selo.
- Só crendo nunca te salvas:
Ages bem ou vais às malvas.
Demónio
O demónio tem de empréstimo
Todo o poder que detém:
Deus-credor teve esse préstimo.
Disto se vinga também
O demónio, tempo além.
Comparo
Quando me comparo a alguém
Mais rico, bem sucedido,
Meu carro novo até tem
O brilho novo perdido.
Rasteira da minha mente,
É travá-la e de repente!
Melhora
O que melhora o humor
É o diário da gratidão:
Saborear um sabor,
Memória dum quente pão...
- De repente a vida gosta
De jogar-se a nova aposta.
Ancestrais
Se teus ancestrais não vês
Senão mui de longe em longe,
Crerão no que tu não crês:
Que em cada sagras um monge...
Basta um contacto diurno
Breve e logo muda o turno.
Batem
A maior parte das vezes
Não se batem por ideias,
É por terras, pelas reses,
Por uma mulher sem peias...
-Somos tão, tão rasteirinhos!
Como é que vamos aos ninhos?!
Toiros
Somos toiros de combate
Prisioneiros de barreiras
De papel. Por tal dislate,
Porque acreditamos que inteiras
São de pedra ou de cimento,
Atravessá-las nem tento.
Ignorante
Um ignorante burguês
Com a bolsa recheada
Paga ao mui culto marquês
Que aplaude com mãos sem nada.
O artista o melhor dos dois
(Terra e céu) viveu depois.
Parede
Não é parede de pedra
Que erguerá uma prisão
Nem barras de ferro dão
Jaula ao que dentro em mim medra:
Quando solto o pensamento,
Voo nas asas do vento.
Porfiada
Uma porfiada luta,
Espírito de aventura
E de pesquisa a disputa,
- É a qualidade que apura,
Radical e superior,
Nosso mágico pendor.
Artes
Nas artes imaginária,
Secreta compensação
Busca ansiedade primária
Insatisfeita, em lesão.
Se eu só vivo a realidade,
Não busco em arte o que a grade.
Império
Império que no alicerce
Liberdade humana enterre,
Converse ele o que converse,
Breve fará que se encerre.
E todos, por qualquer via,
Tropeçam nesta tranvia.
Constroem
Aqueles que constroem com granito,
Que as salas das pirâmides preparam,
Que, pelo seu trabalho, sem um grito,
Erigem mil belezas que encantaram
Têm as mesas deles bem vazias:
Não fruem na pobreza nem dos dias.
Necessidade
Necessidade do pão,
Que injustiças origina,
Que bênçãos, que maldição!
A quanta dor nos inclina
E como nos deixa atreitos
A ver os nossos direitos!
Dúvida
A dúvida intelectual
Sobre a certeza comum
Desmonta o erro geral
E quebra-nos o jejum:
Basta um só, que pouco importa,
E a um mundo novo abro a porta.
Fatalmente
Fatalmente definido
Deus pela palavra humana,
É sempre falso o sentido.
Disto ateu é que vivido
O vero crente dimana.
Aves
As aves, quando gorjeiam,
Nunca cuidam de gravar
O trilo que no ar semeiam
E assim se evola pelo ar,
- Bem ao contrário da gente
Que o Eterno quer premente.
Gera
A instintiva piedade
Da dor humana que houver
Gera a solidariedade
Consciente do que quer.
Nas varreduras que somem,
Aí começo a ser Homem.
Forte
Terás de descontrair?
Quem to diz é que problemas
Terá com teu forte agir
E não tu. Se o for, não temas.
Senão, é um mau resultado:
Fazem-te sentir culpado.
Entre
Entre a fêmea de urso-pardo
E a filha não se intrometa,
Isto lhe afirmando: “aguardo
Largar meu curso de treta,
Para só me dedicar
À banda em que ando a tocar.”
Avaliar
A melhor maneira
De avaliar alguém:
Trata-o, à primeira,
Por gente de bem.
Verás logo após
Se é um igual a nós.
Controlar
Gente com muito dinheiro
Não tem riquezas reais:
Usa a moeda por parceiro
Para controlar os mais.
E quem controla não ama
Nem é amado, só tem fama.
Poder
O poder de perdoar
Da vítima, irrecusável,
(Não dum agressor alvar)
Livra o imo, insofismável:
Finda a vítima maior
Do que o carcereiro-mor.
Derradeiro
Raiva e ódio são sementes
Por onde a guerra germina.
Ora o perdão, entrementes,
É o que o mal daquilo mina.
E é o derradeiro pendão
De auto-regeneração.
Destranque
Só me logro transformar
Doutrem pela mediação
Quando em mim a chave usar
Que destranque algum portão,
Me revele algum segredo
Que é meu mas eu não lhe acedo.