QUADRAS REGULARES
O SER
Devastador
Devastador o que for
Para o público, ser pode
O benefício maior
Para aquele a quem acode.
Lei
Toda a lei toda aplicada
Tornará do mundo os gozos
Em pouco menos que nada:
Faz-nos todos criminosos.
Violará
Leva sempre ao cataclismo
E violará todo o credo:
Verdadeiro terrorismo
É o terrorismo do medo.
Diversificados
Abordagens e motivos
Diversificados vão
Melhorar dos objectivos
Comuns o que atingirão.
Beleza
Beleza não é só cara bonita
Mas um bom coração manter também
E manter alma limpa sempre além
Dos atropelos graves da desdita.
Diferença
Boa educação é luz,
Ignorância é escravidão,
Diferença que traduz
Haver mais ou menos pão.
Dão
Os que aos outros dão de si
Logram o inimaginável:
Os mais melhorando ali,
Quem se der finda saudável.
Elegância
A elegância, por essência
Bem mais que corporeidade,
Radica e é consequência,
Bem no fundo, da humildade.
Relógio
O tempo nunca obedece
Do relógio ao ponteiro:
Quanto nos velhos se apresse,
Na juventude é ronceiro.
Alvor
Porque sou tão confiante?
É de mim, ao decidir
Avançar para diante,
Tal se eu fora o alvor a vir.
Deparar
A mim, o mais irritante
Nos outros, nalguns trejeitos,
É deparar-me adiante,
Afinal, com meus defeitos.
Bastante
Quando alguém bastante grande
For para então dar nas vistas,
É bastante a que lhe mande
Outrem tiros das balistas.
Mentira
Cada vida passageira,
Seja lá qual for a idade,
É mentira traiçoeira:
- É que ela é imortalidade.
Boas
As coisas boas da vida,
As que deveras ganhei,
Nunca o foram por medida:
Não são nunca o que planeei.
Espaço
Do homem nas estranhas lavras
Cresce uma estranha raiz:
Há um espaço entre as palavras
Que mais que as palavras diz.
Apreciamos
Nunca apreciamos tanto
Uma oferta de bandeja
Como a que esperar, enquanto
Luto por que um dia a veja.
Fim
Não é mais ou menos sorte
O fim que ao fim for vivido:
Quem não viver com sentido
Sentido não tem na morte.
Pende
O tempo transformador
Não pende da duração:
Um instante pode um ror
E uma vida, às vezes, não.
Mata
O que nos mata é doença,
Decadência da velhice,
Não da verdade a sentença
Sobre quanto a vida disse.
Saber-me
O que nos mata a esperança
Não é saber-me mortal,
É se abandonado alcança
Alguém ver-se no final.
Gente
Muita gente há que se esquive
Trancada à primeira porta,
Há muita gente que vive
Mas vive de forma morta.
Corrida
Na corrida desmedida
Procurando a boa sorte,
Há o que empobrece de vida
E se enriquece de morte.
Fundo
Aquele que pensa e sente
Do fundo do coração
Vê o que diz ou faz ausente:
Tudo é desintegração.
Acredito
Só acredito no sagrado
Que não for a ter vantagem:
Se findar prejudicado
E assim mesmo seguir viagem.
Poço
Se fui um poço vazio,
Vazio irei continuar
Quando a morte o débil fio
Da vida de vez cortar.
Palavra
A palavra tem poder
De mudar e construir
Muito maior que qualquer
Trato outro que auferir.
Baixa
Quem tiver baixa auto-estima
Crê que os mais o julgam péssimo
E os mais trepam vida acima
Sem dele ver nem um décimo.
Passos
Quando somos dispensados,
A dor é sempre maior
Que se os passos desviados
Fomos nós quem os quis pôr.
Impressão
A impressão que permanece
Será sempre a derradeira:
Pouco importa a vez primeira,
Ante aquela logo esquece.
Nada
Nada é definitivo,
Senão o que se viveu.
Bem ou mal, morre o que é vivo
E, se mal, pior ao bem meu.
Arbítrio
O livre arbítrio não é
O que escolho para a vida,
É o que a vida põe-me ao pé
Para vivê-lo em seguida.
Estranho
O mais estranho do mundo
É que em redor tudo morre
E eu nunca entendo, no fundo,
Que o mesmo comigo ocorre.
Luto
O luto pode ser triste
Como pode ser alegre:
Pende do que nele aviste
E do Todo em que o integre.
Camões
Estranhas vidas se apuram
Nas utopias que abraçam:
As obras de arte perduram
Mas os Camões todos passam.
Realizar
Realizar um sonho
Que muito se quer...
- Quanto sou lá ponho,
É como morrer.
Problema
Quando se foca a atenção
Sobre um problema menor,
Ele cresce, cresce então,
Maior finda que o maior.
Fundo
Por vezes, ser um herói,
Quando o bem comum abarco,
Significa que ele foi
Ao fundo já com o barco.
Poderes
Sempre os poderes preferem
Gente que em silêncio morre
A quem pela vida corre,
Fúrias mil nele a baterem.
Supermercado
Supermercado deserto...
Até onde a vista alcança,
Não é de bens, ao fim perto,
É deserto de esperança.
Muda
Mesmo quando toda a escolha
Parece de vez perdida,
A sorte rebenta a bolha,
Brota à frente uma avenida.
Palavras
As palavras serão vento
Mas o vento é que espevita
Do incêndio todo o tormento
Que nem a tormenta evita.
Época
Em época de paz
Discretamente aterra
A semente que faz
Desencadear a guerra.
Fáceis
As coisas serão decerto
Mais fáceis de proclamar
Do que de ficar vão perto
De um dia se realizar.
Palavras
Palavras leva-as o vento?
Todavia, um vento forte
Dum carvalho até o portento
Derruba em total desnorte.
Custa
Não custa manipular
Do indivíduo o coração,
Basta apenas controlar
As fontes de informação.
Horas
Dão vida as preocupações
Como as horas de prazer.
Porém, desconta as lesões,
Sabor mau de igual saber.
Aponta
Muitas vezes o mais óbvio
Passará despercebido
Se o pensamento pacóvio
Investe noutro sentido.
Armas
As armas nunca conferem
A ninguém qualquer nobreza:
Procedem desta e referem,
No que é nobre, o que se preza.
Temor
Temor da superstição...
Não existe luz alguma,
Só pavor da escuridão
E nisto só se consuma.
Glória
A glória, mas que ilusão!
A barbárie da maldade
Imiscui-se pelo chão
Que pisar a humanidade.
Conhecimento
Conhecimento é uma droga
Virulenta, irresistível.
Como em qualquer, nele voga
Bem e mal e a todo o nível.
Momentos
Nos momentos de perigo,
Nas conjunturas mais graves
Já ninguém pensa em pascigo.
As viandas? São tudo entraves!
Repelem
Jesus anda de teu lado
Mesmo se as igrejas dele
Te repelem com o enfado
De quem lhe roubou a pele.
Debaixo
Para quem debaixo de água
Estiver apenas conta
Voltar à tona da mágoa.
Que importa que mais aponta?
Semana
Uma semana em cadeia
É muito tempo, é demais.
Mas de liberdade cheia,
Que curta, mal dá sinais!
Assim
Passamos a vida à espera.
Quando chega, não é nada.
Nova espera se pondera
E é sempre assim a jornada.
Ocorre
Quanto ocorre muitas vezes
Já nos não impressiona?
Há morte há biliões de meses,
Contudo é sempre uma fona...
Perde
Quando alguém perde a raiz,
Finda a vida muito triste.
A pessoa, por um triz,
Quase como não existe.
Canção
Velha canção de embalar.
A mais velha e de viúva
Murmura quase a chorar,
É a bela canção da chuva.
Ganha
O homem, animal estranho,
Ganhará mais ordens dando
Do que ganha suplicando,
Se é que vem disto algum ganho.
Elmo
É um elmo esta solidão
A que fechei a viseira:
Ouvimos, vemos o chão,
Fora fica a vida inteira.
Simples
As coisas mais simples são,
A maioria das vezes,
As que nos levantarão
No futuro mais reveses.
Encurta
Um saber veloz apenso
À minha estreita medida:
O trabalho mais intenso
Encurta dias de vida.
Fugir
Cruzar ninguém pode a vida
Sempre a fugir do passado:
Vem ter connosco em seguida
E o pé finda acorrentado.
Entrada
A entrada para o inferno
Um portão não é de chamas,
É um arco florido, terno
E com as músicas que amas...
Tendência
Temos tendência a exigir
Do semelhante a nobreza
Que em nós nem há-de existir
E outra é a que ele acaso preza.
Milhas
As dez milhas de lonjura
Donde se quiser estar,
Parecem cem, se se apura
Quão sente quem se alongar.
Medo
Temos um medo de morte
Dum lugar desconhecido:
Somos o miúdo à sorte,
Do escuro sempre fugido.
Igual
Miséria, necessidade
Dão aos pobres tentação.
E as grandezas e a vaidade
Dão aos mais igual quinhão.
Sempre
O que temos no presente
Decepciona facilmente
E aquilo que desejamos
Sempre nele acreditamos.
Muda
O arrependimento
Por causa da morte,
Quando muda a sorte
Só dura um momento.
Criminoso
Criminoso arrependido
Diante do cadafalso?
Não do crime cometido,
É que a forca é-lhe um percalço...
Obrigação
Quanta entrega de poder
Sobre os outros pressupõe
A obrigação de escolher
Que ao engano nos expõe!
Eterno
Esperança, inquietação,
Tudo eterno recomeça.
A felicidade não
Fixa a lei, nela tropeça.
Fogo
O fogo é que desenlaça
Oiro de gangas que o tomem.
O mesmo opera a desgraça
Ao vir depurar um homem.
Violento
Arrastado em turbilhão,
Nem lhe restará uma reza,
Incapaz de dizer não,
- É o violento por fraqueza.
Sombra
Como a sombra é inseparável
De quem caminhar ao sol,
O traidor sempre encontrável
É do inovador no rol.
Preocupado
Preocupado com amos
Anda a vida inteira urgente
O que nasceu com os ramos
Presos ao pé de alta gente.
Escrita
A escrita sempre falseia
O que houver no pensamento.
A mente é da praia a areia,
O papel, de horta um tormento.
Herói
Pela paixão arrastado,
Todo o herói é um desatino
E a grandeza que há tomado
Foi de a tempo tomar tino.
Viagem
Será o homem como o barco,
Afunda se não há porto.
Mas, se a viagem não abarco,
Nem sou barco, estarei morto.
Velho
Ama o velho a solidão,
Pressente, no negror pulcro,
A infinita dimensão
Que mora além do sepulcro.
Gente
Quem se solidarizar
Com gente vulgar repara
Que nunca a gente vulgar
Gente vulgar se julgara.
Conchas
As conchas não vêm de fora,
De dentro se desenvolvem:
O espírito que ali mora
Revelam enquanto o envolvem.
Mistério
Mistério que nos rodeia
Não é o sexo, que elogia,
É como é que finda cheia
Cada hora cada dia!
Saco
Há quem seja um saco inchado,
Cheio de sentenças dentro,
Rótulos por todo o lado...
- E é um ninguém quando nele entro.
Inocência
A inocência se avizinha,
Por mor do inocente dom,
Muitas vezes duma vinha
Em poda de perdição.
Palavras
Como somos pueris!
Quando às palavras te dobres,
Logo mesmo os actos vis
De nobres termos recobres.
Tirania
Tirania que se aprume
Não é mera veleidade:
Primeiro devém costume,
Logo após, necessidade.
Quase
Quase nada neste mundo
Se entende como se diz
E nada se faz, no fundo,
Como eu entendido o quis.
Eterno
Insatisfação e dor,
Das empresas culturais
São sempre o eterno motor,
Hoje e amanhã que sonhais.
Direito
Há um direito superior,
Acima do positivo,
Que é o real conformador
Do que naquele for vivo.
Espírito
O espírito é criador.
Força física pesada,
Perante dele o fulgor,
É quase insecto de nada.
Tenta
É por exterioridades
Que o que vive da ganância
Mas não tem as qualidades
Tenta impor sua importância.
Condição
Há muito quem apetite
Só tenha do que outros comem.
Ninguém logra ter desquite
De sua condição de homem.
Toiro
Mesmo o toiro bravo cansa
Se marrar apenas no ar.
Nenhum poder força alcança
Se ninguém se expõe a par.
Sábio
Sábia superioridade
Do sábio ouve, indulgente,
O chilreio, paciente,
Dos miúdos: é a cidade.
Divertimento
As pequenas vilanias
Tal como as grandes vaidades
São divertimento a dias
Para todas as idades.
Justeza
A justeza do justo tanto enguiça
Que então nem reparamos na sequela:
Quem põe a andar a roda da justiça
Pode ser apanhado então por ela.
Impostura
Onde a impostura reina
Desaparece o riso:
Atinge, quando teima,
Mesmo idiotas com siso.
Louvores
Os louvores dos amigos
Quase automáticos criam
Uma leva de inimigos
Que em nossa carne se aviam.
Músculos
Os músculos mais depressa
Trabalho encontram a sério
Que o que a inteligência meça,
A fiar-se de seu império.
Mecânica
A mecânica rotina
De qualquer labor hodierno
É de escravidão a sina
De qualquer sonho superno.
Homem
O homem tem um sentido
Deveras apalhaçado:
O homem mais presumido
É o homem mais fracassado.
Fanfarrão
Mais fanfarrão egoísta
Sempre é o falso coração
Que crê que ele é que conquista
Qualquer bem-querer à mão.
Honras
Tem honras qualquer profeta
Se não for na própria terra.
Qualquer pessoa concreta
Igual desterro a desterra.
Proibi-lo
O modo mais eficaz
De algo tornar desejável
É proibi-lo, contumaz,
E sob pena inevitável.
Esforço
O esforço de andar de guarda
É um ladrão muito esgotante:
Rouba-nos, na senda parda,
A alegria vida adiante.
Surpresa
Surpresa é característica:
Nunca sabemos quando uma
Aparece, muito artística,
E a pesquisa desarruma.
Calmante
O calmante natural:
Este murmúrio das ondas
Do mar penteando o areal
E o céu onde o infindo escondas...
Mudança
A mudança minha é boa:
Quer dizer que nossa vida
Já não segue mais à toa,
Segue em frente e à medida.
Cobrindo
Pensar não é solidéu
Cobrindo mentes a par:
Se todos pensam como eu,
Alguém não anda a pensar.
Fora
Lá fora, além da raiz
Onde aqui me enraizei,
Lá fora é sempre o país
Que só nunca visitei.
Metade
Metade do que ensinamos
Não é verdade, é mentira
E nem sequer vislumbramos
Qual metade tenho em mira.
Espanta
Espanta o que não sabemos.
Mais espanta o que nós cremos
Que sabemos e, contudo,
Só por saber passa. E é tudo.
Portas
É sempre às portas do nada
Que a maior guarda se posta:
Dá o vazio demasiada
Vergonha, sendo esta exposta.
Aroma
Há um aroma, na mentira,
De morte, que é quanto odeio
No mundo e que tenho em mira
Esquecer da vida em meio.
Sou
Conheci além um porto?
Dizer, porém, conheci
É de algo falar que é morto:
Não sou além, sou aqui.
Quem
Somos quem somos. Verdade?
Quando a pensar nós nos pomos,
Não somos nunca quem somos:
Sou quem molda a sociedade.
Filhas
Filhas do enamoramento,
As realidades são falsas,
Mas são lindas. Mas são vento
E a que alturas tu as alças!
Esquecer
Esquecer é imaginar
Que algo que foi o não foi,
Imaginário que dói,
Um pouco da morte a par.
Trai
Saber quando um homem mente,
Que termo trai a intenção?
É o impossível presente:
- Um imo não tem portão.
Tempo
O tempo é bom para a história,
Não, porém, para a verdade.
Tudo distorce a memória,
Dá sempre outra identidade.
Esquece
Só esquece deveras quem,
Ao esquecer pretender,
Do que esquece mais além
Se esquece até de esquecer.
História
A História que tu reviras,
Mal a tocas a escalavras:
A História são mil mentiras
Em mil jogos de palavras.
Saber
Queres saber a verdade
Ou quanto dela se abusa?
A verdade de verdade
É sempre, sempre confusa.
Pouco
Quão pouco heróico é o presente
E a verdade, pequenina,
Senão na hora em que a invente,
O instante em que me ilumina!
Juram
Juram a todo o momento?
De que é uma jura capaz?
Melhor não é um juramento
Do que o jurador que o faz.
Único
É dum único tostão:
Tocas, fechou-te a armadilha.
Moeda não corre senão
À moeda, em frente da quilha.
Móveis
Móveis dum único preço,
Bricabraque a que me ligo...
- Se me estimo, ali me meço,
Sou eu num espelho antigo.
Cavalos
Nossos cavalos galopam
Mal aponta o amanhecer,
Mal nos topam, mal nos topam,
Mais que nós vida a correr.
Sapateando
A sorrir sem se dar conta,
Sapateando a dançar,
Será quem, de ponta a ponta,
É feliz de par em par.
Brancos
Não é um pai mas um avô:
Cabelos brancos da vida,
A cabeça um iô-iô
E toda ela florida!
Velho
De dia para dia o velho pai
A criança se torna da criança,
Nenhuma protecção dele hoje sai,
Defesa sem defesa, o eterno o alcança.
Cada
Cada guerra porá fora
De moda uma geração
De heróis porque, de hora a hora,
Cobre-os doutra vala o chão.
Problema
O problema de hoje em dia
São os actos, não as actas:
- Como haver democracia
Se não houver democratas?
Discutir
Quem vai discutir a corda
Com que irá ser enforcado?
Quem pretende que isto o acorda
E não o ser condenado?
Qualquer
A gente quer qualquer coisa,
Qualquer coisa na parada,
Que qualquer coisa na loisa,
Qualquer é melhor que nada.
Conta
Em política, a aparência
Conta mais que a realidade
E devém uma indecência
Quando ao fim tudo ela invade.
Poder
Todo o poder nos corrompe
Mas a falta de poder
Corrompe inda mais, que rompe
Com toda a malha de ser.
Caímos
Sempre que de nós
Tentamos fugir
Caímos após
Em nós, a seguir.
Odeio
Há sempre um incontornável
Que atinge de quando em quando.
Odeio este insuportável
Que, afinal, vou suportando.
Faltou
Faltou pão, faltaram paus?
Quem vai mondar as raízes?
Os infelizes são maus
E, além de maus, infelizes.
Culpa
Sempre a culpa é mesmo estranha.
Será que a deveras sentes?
Aparece e quem a apanha
São, no fundo, os inocentes.
Santo
Quem nunca pecou não é
Santo deveras, por junto.
Quem nunca pecou, de pé
Nem se tem, é só um defunto.
Pior
O pior da vida é haver
O incomportável que tenta
Propriedade em mim deter
E, contudo, a gente o aguenta.
Fez
O que não me fez tremer,
Apetecível, temível,
Não foi deveras sequer
De algum modo inesquecível.
Tipos
Dois tipos há de pessoas:
As que correm risco às portas;
As que andam só pelas broas,
Que são as que já estão mortas.
Mede
Mede a grandeza de alguém
Para outrem ele rir
Quando ele chorar, porém,
Por dentro como sentir.
Adulto
Muito eu me via acolá!
Depois nunca mais me vi.
Eu já fui adulto, já,
Contudo depois cresci...
Verdadeiramente
Verdadeiramente morto
Poderá ser para alguns
Da bênção de Deus o porto,
Sem mais infernos nenhuns.
Demais
A dor e a miséria,
Quando repartidas,
Por demais são féria
A entregar-nos vidas.
Lado
O outro lado pleno,
Meu mergulho interno:
Povoado pequeno,
Porém grande inferno.
Mentira
Mentira, para o fanático,
É o que transmuda em verdade,
Que o que conta, em senso prático,
É crerem no que lhe agrade.
Rói
Só Deus sabe o mal
Que rói as pessoas
Para os mais fanal
Só de coisas boas!
Volta
Quando temos um momento
Para nós próprios de olhar,
Volta logo o pensamento:
- Para quê tanto lutar?
Semearmos
Tanta amargura se encontra
E tanta angústia, ao sinal
De semearmos a montra
Do trilho do bem e mal!
Bênção
É uma bênção possuir
Imaginação que agrade
Independente, ao surdir,
De qualquer realidade.
Exercício
O exercício dum dom,
Dum dom extraordinário
Do prazer da vida é o tom,
Mesmo o mais atrabiliário.
Preserva
A discreta irreverência
Nos preserva a liberdade
Como o contrário, na essência,
À escravidão persuade.
Espíritos
“Espíritos?! Não, não creio.
Quem é que acredita neles?
Arrepiam-se-me as peles:
Não acredito, receio...”
Pequeno
O meu pequeno trabalho,
Tão simples e tão pateta,
Não muda o mundo um negalho
Mas põe-me a vida completa.
Óculos
Quando os óculos perdi,
Ao olhar-me para dentro,
Pela vez primeira vi
Tudo claro: vi meu centro.
Sons
Há sons de Verão
Para sempre em mim:
Mar em cantochão,
Gaivotas sem fim...
Livro
Um grande livro, memória
A arrebatar-me acolá,
Um grande livro é uma história
Que nunca terminará.
Luz
Há quem torne a luz do sol
Para todos mais brilhante
Desde o apontar do arrebol
À noite mais sufocante.
Desnudo
Desde que haja caridade
Logo aparece o intrujão
A cobrir toda a cidade,
Desnudo, a estender-lhe a mão.
Demais
Tenho visto muitos quadros
Mas com trabalho de menos.
Nenhum com demais nos adros
Sagrados fazendo acenos.
Íntimo
O íntimo de cada homem
É o último a ceder nele:
Quando a forçá-lo o consomem,
Nem o mundo inteiro o impele.
Diligência
A diligência é um apelo
À misericórdia alheia
E a mim próprio no singelo
Fracasso meu que me ameia.
Cada
Cada um é seu sujeito,
É a sua verdade em marcha,
A tornar-se um eu atreito,
Em devir tecendo a escarcha.
Desmorona
Qualquer verdade adiante
Desmorona a realidade
E requer a todo o instante
No mundo outra identidade.
Proclama
Dos homens a maior parte
Proclama querer o Bem.
Na prática (mero aparte)
Só Mal os actos contêm.
Deveremos
Uma qualquer conjuntura
Deveremos aceitar
Quando a razão nos apura
Que a não pode remediar.
Tremer
Toda a História é um pesadelo
De que tento despertar
E dou por mim, no sincelo,
A tremer, não a sonhar.
Ordem
Qualquer ordem implantada
Receia toda a evidência
Que a vá pôr em retirada
Da perpétua sonolência.
Dor
Se toda a dor, como o fogo,
Produzir ondas de fumo,
Todo o mundo, desde logo,
Se obscurece, em resumo.
Palavra
A palavra tem magia,
Carrega tanta esperança
Ou desespero que um dia
Mais forte que a ideia alcança.
Tédio
Se na vida não houver
Nada a fazer, o dissídio
Contra o tédio de viver
É por fim o suicídio.
Pouco
Um homem sagaz
É o que faz, pioneiro,
Comida capaz
Com pouco dinheiro.
Longo
Eu nem adivinho,
Pois sai do meu peito:
- Que longo caminho
O do dito ao feito!
Virtude
A virtude é perseguida
E, se os invejosos morrem,
A inveja, não: difundida,
O mundo os filhos percorrem.
Tirano
Ser tirano é perigoso,
Por muito gozo que dê
Ao tirano o pé gostoso,
Que ele um dia perde o pé.
Cobiça
A cobiça é bem fecunda
Terra de dupla cultura:
Mal uma colheita apura,
Logo outra semente a inunda.
Desvela
Trilho de humanização
Desvela mais as fraquezas
Do que visa a exposição
De nossas fátuas grandezas.
Pratos
Dos dois pratos da balança
O mais estranho pendor
É que entre quem os alcança
Pendem mais para o senhor.
Preocupe
Por mais que pelo outro mundo
Se preocupe quenquer,
Prima condição, no fundo,
É sempre a de aqui viver.
Avançam
Sentimentos perigosos
E não fáceis sentimentos
É que avançam, caudalosos,
Da Humanidade os intentos.
Fragilidade
Fragilidade potente,
Voa o homem nos espaços.
Quem diria do indigente
Algum dia tais abraços?
Boa
Dinheiro não é sinal
De ter boa educação,
Nem a educação, então,
O é de boa moral.
Procuramos
Procuramos sempre aquilo
De que mais sentimos falta,
Embora saiba o sigilo:
- Sou eu perdido noite alta.