POEMAS LONGOS IRREGULARES
UTOPIA
Profundas
Nas profundas do coração
Há um lugar negro, negro como o carvão.
E este lugar desolado
Nunca, nunca está fechado.
Antes que te enegreça o dia,
Viola-lhe a porta,
Enfrenta-lhe a negra magia,
Esbarronda-lhe a mansão
E então
Rega com o sangue dele a tua horta.
Haverá uma transfiguração:
Cada rebento que fito
É um dedo apontado ao Infinito.
Levantar
Sem sonho
A vida é um deserto.
Onde a ponho?
Que me proponho?
Desperto:
É amanhã, é sempre para amanhã...
- Todavia, é o sonho, embora sem acerto,
Que me faz levantar cada manhã,
Cada vez mais perto...
Acompanhar
Acompanhar alguém
Na morte
Não é sorte
Que alguém tem:
Ninguém morre
Para eu ter a mão que o socorre.
A morte visa além,
Não o meu fútil
Entretém:
Não morre ninguém
Para eu ser útil.
Muito curto é meu grito
Se não crio lugar ao Infinito.
Corpo
O corpo, oitenta por cento de água,
O resto, cinza e pó,
Tristeza e mágoa,
O vazio de findar só.
Por cima, apesar disto, alcança,
Se nos unirmos, a esperança.
Então, daquela noite alveja o dia,
É a alegria.
E as possibilidades que agitas
Serão infinitas.
Mortos
Os mortos se multiplicam
Por todos os lados
E modificam
Do mundo os traslados,
À medida que se aplicam,
Distraídos ou denodados,
Às aguilhadas que nos picam
O suor e o sangue dos sonhos encetados.
Os mortos nunca ficam
Onde estão enterrados:
Do íntimo do Cosmos nos concitam
Aos céus estrelados.
Solicitam
O Infinito dos apaixonados.
Mulher
A mulher parece o sol, parece o céu,
Ilumina a vida do homem em qualquer noite de breu.
A mulher é como a Lua, destrói as trevas,
Ilumina-as do luar com que te cevas.
Faz brilhar o rosto do mundo,
Da terra alumia mesmo o covão mais profundo.
É do Infinito um rasto de luz
E nos conduz.
Quanto
Pobre ou rico,
Quanto mais de notas
Tiver as botas
Atulhadas em cada meia
Mais verifico
Que coxeia.
Para além,
De riqueza ou pobreza,
Que é que alguém
Afinal preza?
Desgraça
Julgamo-nos acima
Do comum.
Basta da desgraça a lima
Desbastar-nos o bodum,
Somos como qualquer um,
Iguais
A todos os mais.
Um desgosto dinamiza as pontes
Para os mais vastos horizontes.
Sonho
O sonho da utopia
É aquilo que nos alumia.
O fanatismo dogmatiza tudo quanto é:
Assassina a verdadeira fé.
Então assistimos, cada dia,
Ao estertor da utopia.
História além sempre assim
Nos matamos, por fim.
Espanta como ainda nos não exterminámos de vez,
Tanta vez repomos o pendor de tal jaez.
Sirvo-me
O passado
É para honrá-lo:
Sirvo-me dele, bocado a bocado,
Retirando-o pelo gargalo.
Se dele me servir com critério e precisão,
Inauguro,
Então,
O futuro.
Filhos
Nunca temos
Os filhos com que sonhamos:
Recebemos,
Acolhemos
E adoptamos.
Seremos virgens, se estamos disponíveis:
Então ocorrem
Os milagres mais incríveis.
Deus perpassa
Em nossa praça:
Tudo e todos vivem, mesmo quando morrem.
Solicita
A vida espiritual
É sempre matéria-além,
O que a solicita, afinal,
A mudar como convém.
É o que muda a carne em mim,
Na comunidade, no mundo,
No Universo sem fim,
Tudo tornando mais fecundo,
Mais jucundo,
A partir de cada confim.
Por isso não é nada espiritual
Encerrar-me, afinal,
Em qualquer encarnação
Que de antanho me chegue à mão.
Doutro modo fecho a porta
Ao Infinito
Que concito,
Enclausurando-me numa vida morta.
Quem Deus ateste
É quem crê que Deus nele se manifeste:
Ali de algum modo exequível
O impossível.
Além
Para além do ter, do saber e do poder,
Cuja utilização
Me ensinou a adulta geração,
Em mim o anseio de ser
Da fundura me tenta
E tudo fermenta.
Não há fronteira que o limite,
É o Infinito em meu palpite.
Brota
Ao me cindir
Da anterior geração,
Brota a liberdade na invenção
Do desejo de ir.
Corrida ou salto imprudente,
Atrai, no anelo,
Toda a gente,
Seduzida pelo mágico apelo.
O Infinito não dirige, atrai,
Não manda, chama.
E Deus aí vai,
Das humanas pegadas pala trama.
Maneira
De maneira muito natural,
Somos todos sobrenaturais:
Por tudo o que fizer, afinal,
Perpassa sempre algo mais,
Pressentido, fugidio,
A que mal apanho a ponta do fio.
Ora, é do fio esta ponta
Que o desvio
Aponta
Por onde tudo se ata
Ao Todo onde o Infinito me acata.
Vamos todos a caminho
E vemo-lo ao saltar fora do ninho.
Cruzar
Evoluir
É cruzar pelo sofrimento e luto.
O porvir
É produto
De vivências dolorosas inevitáveis.
Somos postos à prova
Até sermos confiáveis
Na fé em nós que se renova.
Mas, até que em seu imo cada um se acoite,
Todos passamos pela noite.
Tempo
Um tempo haverá
Em que muito longe estarei:
Um pai não há-de haver então por cá
Para te guiar dia a dia,
Como pobremente usei.
Continuarei,
Porém, contigo,
De Além na via
Eternamente ao abrigo,
Decerto irremediavelmente desajeitado,
Mas perpetuamente a teu lado.
Pretérito
Do pretérito sofrimento
Inda plangente,
Inda irremediável no momento
Presente,
Vibro de esperança no futuro
Onde tudo é possível,
Onde, lento, o Infinito inauguro
Gradualmente
Atingível.
Afasta-te
Não és tu quem de decidir
Tem
Que sonho alguém
Tem de seguir.
Diz a verdade,
Afasta-te um pouco.
O sonho é de quem ele invade:
Sábio ou louco,
A ele é que persuade.
Ele é, pois, o protagonista
De quantos tiver em vista.