POEMAS LONGOS IRREGULARES
O SER
Gordura
O gordo
Só está gordo entre as orelhas.
Se emagreço aí, se à gordura aí a mordo,
Toda a gordura cai nas celhas.
Não há dúvida de que a cabeça
É sempre a decisiva,
A definitiva
Peça.
Fonte
A comida,
Sustenta a vida,
Todavia não é
A fonte do poder:
A fonte do poder é a fé.
Ela é que é a fonte
Que a ponte
Nos há-de estender
Para todo o horizonte.
Tempo
O tempo que não passa
É o tempo sem sentido,
O da vida na praça
Onde deveras não me houver metido.
É o tempo da viatura onde a sério nunca estou:
Entrei num lugar
Para a outro chegar,
- Nela deveras, todavia, não vou...
Na multidão de gente
Não há ninguém presente.
Entrei na viatura da vida
De olhos vendados:
Sei lá bem onde fica o que me convida,
Sei lá bem para que lados
Me leva!
Tudo é treva...
E eu praticamente
Nunca estou presente!
Vou lá dentro
Simplesmente.
Para o centro?
Para a periferia?
Sei lá!
Até que um dia, o derradeiro dia
Tudo me esclarecerá...
Fatalmente
Alternativa de morrer ou não
Não existe.
O portão,
Fechado ou aberto,
Fatalmente persiste,
Mais longe ou mais perto.
Não há opção.
Do encontro final a sentença
É de a vida ali marcar presença.
E depois o pendor
Depende do que antes a vida for.
Parecem
Os eventos passam,
Mesmo os grandes.
E, quando ficam para trás, não nos enlaçam,
Pouco importa até que os comandes.
Aliás,
Quando vão ficando para trás
Das cenas,
Parecem ridicularias cada vez mais pequenas.
Tantas
As coisas são.
Serão?
Há tantas maneiras
Todas verdadeiras
De vermos as coisas!
Há tantas loisas...
Sei lá bem o que é
Que ali se põe de pé!
Mentes
As mentes mais capazes
Devêm, às vezes,
Para serem eficazes,
Obcecadas pelas teses.
Então da vida nem dão conta
Quantas vezes de nenhuma ponta.
Todavia, é forjadas nesta mecha
Que da vida provêm as pontas de flecha.
Avaro
O mendigo,
Avaro dos próprios despojos,
Não reparte com nenhum amigo,
Ninguém é amigo dos fojos.
Prefere dar os restos aos cães
A partilhá-los com tais ninguéns.
Por isso somos todos sem-abrigo:
O homem é um mendigo.
Ordena
Não me importo
De me pôr no meu lugar.
O que não suporto
É não ser eu a escolher
E ter de ficar
Onde me ordenar quenquer.
É um desacato
A pataco.
Mesmo que seja à frente a minha ficha,
É sempre o buraco
Do fim da bicha.
- É o que nunca acato!
Questão
A liberdade
Diferencia.
Finda a igualdade?
Todavia, a complementaridade
Todo o mundo enriqueceria.
Questão é a inveja
E a cobiça
Não dominarem o que a humanidade almeja
Na liça.
Servos
Sempre somos
Servos de alguém,
De joelhos nos pomos
Aqui ou além.
A liberdade então,
Na instância derradeira,
É de orgulhosos servidão
E peneira.
Digo
Digo o que me vier à cabeça,
Invento.
E acreditam, peça a peça.
O povo não tem crivo nem fermento:
Duro ou mole,
Tudo engole...
Quanto maior a massa
Que me enrole,
Mais lassa,
Mais escassa.
E, quão mais ela ali me imole,
Menos comigo bole,
Invisível traça.
Voluptuosidade
A voluptuosidade do mau trato!
Quanto idealista
É um masoquista
Que se ignora em pleno acto!
O que sobretudo aprecia
É sofrer dia após dia...
É a desculpa moral por excelência,
Em religião, política, ideologia,
Para a física urgência
(Ou mania)
De penitência.
Mais
Em qualquer época, o progressismo
É mais que uma fé:
É trabalho, é uma ponte sobre o abismo
A pôr de pé.
Perigoso, metódico, ingrato,
Não dá nada ao ir em frente
Senão o prazer inato
De remar contra a corrente.
O protagonista, de facto,
É semente:
Só enterrado entra em acto.
Partidário
“Sou partidário da liberdade.
Não gosta do que lhe pago?
Então, rua! Esteja à vontade.
E se eu não gostar de sua cara,
Rua na mesma! É mais um lugar vago...
A liberdade é uma jóia rara.”
- Liberdade, estranho pau de dois bicos,
De sangue coberto de salpicos...
Lugarejos
Os lugarejos de todos os países
Perdem gradualmente o cheiro da terra
Que os encerra
Mas, por mor das raízes,
Ainda não adquiriram o perfume
Que a cidade resume.
São desconfiados e empertigados.
É o que lhes esboroa os passados
Onde cada vez mais retumba
Um eco de tumba.
Vírus
O vírus de aldeia
Ataca gente de aspirações,
Chumba-lhe uma cadeia
De grilhões.
Advogados, médicos, industriais, comerciantes,
Ancorados em Universidades,
Tiveram um vislumbre de mundo novo, por instantes,
E cada um voltou para o brejo,
Perdido todo o desejo
Em boçalidades.
Formam uma oligarquia
De respeitabilidade
Onde enterram a luz do dia
Na fogueira da nulidade.
Ambiente
A rusticidade,
Indolência
de maneiras e conversa,
Ambiente padronizado sem imaginação,
A rígida dominação
Do espírito pela respeitabilidade,
Embora perversa.
Plácidos mortos
A escarnecer nos vivos
O inquieto caminhar, todos tortos
E furtivos.
Proibir a felicidade,
Escravidão procurada e defendida
Por escravos em clandestinidade,
A macaquear a vida.
O deus da insipidez
A cultivar, ciumento, a pequenez.
E a considerar-se, meditabundo,
A melhor raça do mundo.
Voto
A respeitabilidade
Das aldeolas
É um voto de pobreza e castidade
Quanto ao saber que lhe imolas,
Orgulho da perfeita ignorância.
O sábio ali é um presumido,
Ganância
Sem ponta de sentido.
Comunidade
Comunidade ideal,
Modos dignos, educados,
Nobres aspirações como próprio sinal,
Aristocracia de cuidados...
E, afinal, tudo visto de perto redunda
Na busca duma cozinheira barata,
No rápido aumento que inunda
O custo da terra pacata...
Jogam cartas
No grosseiro oleado onde as repartas,
Ignorando que há profetas a toda a hora
Na rua, lá fora.
Ora, era ali que a vida
Encontraria a porta de saída.
Enterramos
Todos mudamos,
Enterramos muito sonho
Que não se alcança
Mas guardamos
O breve medronho
Da esperança.
Tornamo-nos mais sensatos.
Queríamos mudar o mundo,
Doravante nossos actos
Tentam guardar o fecundo
Restinho de boa pele
Que houver nele.
Queríamos construir a moradia
Da humanidade.
Hoje em dia
Basta-nos ter nossa casa
Onde, na privacidade,
Podemos espreguiçar a inútil asa.
Somos irrelevantes moscas,
Como as mais desesperadamente toscas.
Calcula
O bom comerciante
Calcula com exactidão.
O inteligente, vendo mais adiante,
Não menospreza, então,
O passivo
Nem valoriza demais o activo.
Comerciante ou não,
Este é o chão
Onde em todas as áreas vivo.
Vulgo
O vulgo da média, baixa ou alta classe
Põe de pé,
Contra quanto o vulgar ultrapasse,
O que for de uso da respectiva ralé.
Ora, quem o consagre
Por vinho bebe vinagre.
Em qualquer classe, todavia, faz fé
De palavra-passe.
Só se salva
Em segredo
Quem aponte o dedo
A um qualquer vislumbre de alva.
Será
Que é que será ser alguém
Em si mesmo?
Um ser a esmo
Que nunca tem
O que contém,
Que o que tem nunca retém,
Que nunca é o que poderia ser,
Que é sempre um qualquer
Ninguém
Perante o que deveria
Devir algum dia.
E o ganho disto
No outro lado onde existo:
Um deus em potência,
Por essência,
Eternamente a caminhar,
Aqui em escassez, além em plenitude,
Perenemente a erigir um lar
A que nunca por fim se grude.
E é a festa da alegria
Nova dia após dia.
Braços
Um homem é já um homem
Quando tem sete anos.
Quando os braços da mãe o retomem
E consomem,
É um bebé atreito a mil danos
Mesmo se aparenta
Já ir nos setenta.
Idade
Tem a idade cada qual
Que sentir ter.
Aos vinte anos é real
O peso do mundo aos ombros sofrer.
Na idade madura é tão leve
Que, de repente, a medida
É que vai principiar em breve
A vida.
Cronologicamente
É uma ilusão.
Será? E se, todavia, verdadeiramente
O não for então?...
Mania
O passado
Fica lá para trás
Descansado.
O que me traz
Permanentemente incomodado
É o presente
Com a mania de intrometer-se em todo o lado
Teimosamente.
Ainda por cima deixando tudo abalado
Depois de ter debandado!
Tempo
O tempo corre
E, por ele além,
Toda a gente morre
E eu também.
Que estranho!
Quando ocorrer,
A vida há-de continuar a correr...
- E eu fora do rebanho!
Amigo
Marido apenas fiel
(O fel não conta, o fel),
Pai apenas indulgente,
Amigo apenas devotado a cumprir o papel,
Cristão de domingo, no meio de toda a gente,
Por homem do dever cumprido pretende que o tomem,
- Excepto do dever de ser homem.
Tudo casca
Onde inteiro se atasca.
A fundura
É toda escura:
Ninguém discerne,
No meio de tanto oco, onde pára o cerne.
Bombeiro
O mal de ser
Um bombeiro itinerante
É o de ocorrer
Tudo no derradeiro instante:
Não há lugar para nenhum voo,
O fogo já se apagou.
- É a frágil medida
De toda a vida.
Fundamentalismo
Fundamentalismo ideológico
Rejeita e reprime
O que for diferente.
Patológico,
Encarniça-se contra o desenfeixado vime
Mais vulnerável que surgir à frente,
Contra quem não se ajustaria
Ao cânone da ortodoxia.
De pés e mãos a todos ata
E, em nome da vida, mata.
Ignorância
Vivemos de ignorância programada
Sempre, sempre em disfarçada ditadura.
Décadas e décadas de jornada
Em sistémica negrura,
Todos por inteiro manipulados
Na nossa credulidade,
Com os dados
Deturpados
Da realidade,
Falido, a todo o momento,
O que deveria ser nosso conhecimento.
Perante
Todos são livres, iguais
Perante a lei?
Ora, prosperidade e relações sociais
Discriminam de cada qual a condição
Dentro da grei.
Determinam da categoria,
Então,
Qual a fasquia.
Não há igualdade nenhuma
Que tal desigualdade assuma.
Aristocracias
Aristocracias há várias:
A do estatuto social,
A da riqueza,
A dos de dentro do casal,
A dos de fora, doutra mesa,
Que, estendidas, dão a de dentro do país
E a do estrangeiro de raiz...
São várias
As castas
E a pior que arrastas
É a dos párias.
Em todo o mundo é assim.
Nem vale a pena pensar que a falta de juízo
Apenas a mim
Me rouba o paraíso.
Fim
O fim mais comum
Do homem, eras além:
Gozar e possuir,
Dominar e suprimir.
O diabo é só um
E nós, servos dele, também.
Como é que nos queixamos
Das chacinas que pelos trilhos da História deixamos?
Moramos
Quando moramos há muito
Num lugar,
Em nada acabamos por reparar.
Caminhamos às cegas,
Em passo fortuito.
Cruzas a vida e em nada pegas.
Qualquer riqueza que tiver,
De a não ver,
Negas.
Adulações
Mesmo os mais espertos,
Que incautos,
Às adulações abertos!
Em banquetes lautos,
O mais ridículo e impertinente
Não deixam de digerir
Quando temperado espertamente
Com elogios, a prevenir.