POEMAS  LONGOS  IRREGULARES

 

 

 

DEVERES

 

 

 

 

Êxito

 

O êxito provém de encontrar

O maluco que anda às voltas

Dentro de nós,

A dar-nos cabo da vida, a sós.

Temos de o encurralar,

Amarrar-lhe as patas soltas,

Mas sem o matar.

Enfiamos-lhe o arreio da charrua

Ao pescoço

E desatamos a lavrar

Cada pedaço de Lua

Que for nosso.

Mal o controle,

Desata a trabalhar

Como um diabo

O húmus mole

E leva-nos a vida a cabo.

 

De súbito, pelas estradas,

Apenas semearíamos gargalhadas.

 

 

Unir-nos

 

Vergonha na derrota?

Só se ela me embota.

 

Se houver honra e coragem,

Nem sequer há glória

Na vitória,

Fica só de irmãos a imagem.

 

O que hoje nos dividir, em vida sã

Pode unir-nos amanhã.

 

 

Negar

 

Negar a morte

Não é virtude

Perante a fatalidade:

Não nos muda a sorte

De sermos finitude

E vulnerabilidade.

 

Só por não nos vermos tão inferiores

Findamos maiores?!

 

Negar a fatalidade,

Tal se a morte não existira,

Fará que a vida mais nos desagrade

E fira.

 

Ninguém findou mais feliz

Ao respeitar tal matriz.

 

 

Trancou

 

Não há lugar

Para da morte falar

 

Com quem for um morto-vivo:

Trancou a vida no arquivo.

 

Enterrou

Toda a dimensão humana,

Caminha sem rumo e sem voo,

Em terra plana.

Só lhe falta morrer

Para a terra da sepultura crescer.

 

A biologia é mera condição

Para auscultar a fundura íntima do coração.

 

Só nos tornamos humanos

À medida

Que transpomos mil enganos

Na subida.

 

Só pela consciência da morte

Nos apressamos a construir

O ser ignoto que quenquer

Transporte,

Em seu íntimo fluir,

Até ser quem deve ser.

 

 

Acreditar

 

Acreditar a gente acredita

Até nos dados dos sentidos.

E o cientista acaso me critica:

Não terei meus juízos bem medidos...

 

A fé, todavia, é uma entrega,

Uma vivência, não um conceito.

E, quando adrega,

Deus, já não eu, desata a morar em meu peito.

 

Benefício

Ou adversidade

É indiferente, se não houver de mim resquício:

Seja feita a vossa vontade!

 

 

Outrem

 

De vida fazer a minha escolha

Para a outrem agradar

Sem que de mim colha

Nem o ar que respirar

É nem auferir da molha

Com que o dia chuviscar,

É engarrafar-me com rolha

E jamais me degustar.

 

Ou nisto

Sou eu próprio que existo,

 

Se tal trilho cada vez mais me grude

À minha plenitude,

 

Ou ir-me-ei arrepender

Quando o fim vier

 

Porque, afinal,

Tudo na vida ali me ilude

E de mim não há sinal.

 

 

Trabalho

 

Se o trabalho me oferece

Um mundo melhor

Embora em pequena messe

Em vez de operários para um ror,

 

Se me envolvo com energia

Na transformação

E me plenifica dia a dia

A cada demão,

 

Vejo sentido

No rumo escolhido.

 

Pouco importa o que o trabalho

Me exaurir,

Valho tudo o que valho

Por ele ao ir.

 

 

Adquirir

 

Há muito quem viva

Para adquirir bens

Que arquiva, arquiva e mais arquiva...

Trabalha duro sem mais aléns,

No jardim não tem cecéns,

Acumula riqueza material,

Mágoas e crises.

Tem muito, afinal,

Mormente problemas nas matrizes

E nas raízes.

 

Quando abismal

É a altura dos muros

Entre o que for na vida pessoal

E o que for no empenho laboral,

Fica em apuros.

 

No trabalho é um,

Outro lá fora?

Desintegra-se então cada um,

Não demora,

De si próprio por mor do jejum.

Mora

Longe de si,

Não ali.

Depois de tanto ganhar chega a hora

De perder, agora.

 

E pode durar uma vida inteira

De perder esta ladeira.

 

 

Diferente

 

Fazer o bem

Para ser feliz na vida

É diferente e não convém

A fazer o bem

Para a freima ser bem sucedida.

 

O trabalho é um meio,

Não um fim:

Se opero por qualquer receio,

Escravo do freio,

Então ainda não sou eu em mim.

 

Ante o muro derradeiro, após,

Que faremos nós?

 

 

Arrepender-me

 

Arrepender-me não fará sentido

Na medida

Em que em cada momento tiver agido

Com o melhor que vislumbrei na vida.

 

O que sei agora

Não o sabia naquela hora.

 

Portanto,

Abaixo o quebranto

 

E pés firmes na terra,

A trepar da vida a fronteira serra!

 

 

Vivi

 

O que vivi pouco importa,

O como é que sim

E o para quê, que abre a porta

Até à fronteira do fim.

 

O porquê de nada serve,

Se atira para o passado

Que nada doravante preserve,

Quando o porvir

É que anda à minha frente, denodado,

A seduzir.

 

Na perda

Aprendi o tamanho do amor

A atear calor

À minha pegada lerda.

 

Minha íntima espiritualidade

É ou não meu único comando

À minha entrega de verdade

Ao cósmico Grande Mando?

 

 

Ficam

 

O pior

Do que indesculpável

For

É que nunca mais é retirável.

 

É um vidro partido:

Por mais que lhe varra os cacos,

Só pode mesmo ser varrido,

Ficam lá sempre os buracos.

 

E cuidado, não vá nalguma lasca

Ver que o meu pé se atasca!

 

 

Ideal

 

Para continuar

A viver

Todos iremos precisar

Dum ideal qualquer.

 

Sem batalha a travar,

Porém,

Vai-se o ideal reduzir até se aniquilar:

Aí já nem serei ninguém.

 

 

Vive

 

Vive sozinho,

Ajuda tudo quem lhe é vizinho:

Enfermeiro,

Parteiro,

Guarda crianças,

Carpe da dor as tranças...

 

- Não é mais útil a todos

Com a bondade quotidiana

Que de toda a ciência os engodos

Que o escol intelectual emana?

 

Semente não semeada

Apodrece na estrada...

 

 

Lembra

 

Arriscas?

Lembra que, quão mais mexemos,

Mais a nós atrairemos

As faíscas.

 

Todavia, se tens fome,

Qualquer risco que se tome,

 

Pode bem encher-te a colher

De comer.

 

 

Todo

 

Todo e qualquer descontente

Estará connosco?

Quanta desvairada gente

Com que me embosco!

 

O problema de morte

É que apenas Deus estará contente

Com a sua sorte.

 

Então todos os mais

Sangram, afinal, com que sinais?

 

 

Culpa

 

Que culpa tem

Quem nada obtém

Com brandura?

Se o governo der

O que o povo quer,

O que apura

É que, por entre os gozos,

Todos findam respeitosos.

 

 

Ver

 

Queres ver as pessoas

Como elas são?

Não deixes de as ver então

Más ou boas

Como os outros as verão.

 

Mais ainda,

Como cada uma,

Feia ou linda,

Se presuma.

 

Aí concluirás

Teu saber deveras sério:

- Cada uma é capaz

De ser um interminável mistério...

 

 

Bastante

 

Infelizmente

Há bastante gente boa

Das igrejas na corrente

Rotineira, indiferente,

Para lhes garantir à toa

A continuação

Da traição

Ao espírito sadio

Que nelas agoniza sempre por um fio.

 

 

Manhoso

 

Pela bondade

Aguarda manhoso o ódio

E o amor que nos persuade

Do escárnio encontra o bródio.

 

Quem não puder ser caçador

É caçado sem pudor

 

Todo o sol que é positivo

Tem na sombra o negativo.

 

Como sempre ignoramos isso,

Queima-nos o fogo ao menor chamiço.

 

 

 

Castelos

 

Ninguém deve destruir

Com brutalidade

Castelos no ar que o amor erigir,

É desumanidade.

 

Urge revelar a sandice,

Porém, com meiguice.

 

Doutro modo poderei cavar o cataclismo

Dum íntimo abismo.

 

 

Cuidado

 

Cuidado com a multidão,

A multidão não presta!

A multidão detesta

A perfeição.

 

A multidão não tem coração

E apenas o coração atesta

O sonho no meio da ilusão,

O sonho que dispara a besta

Para o cume da humana condição.

 

A multidão

Apenas encesta

A cesta de pão

Por que o bandulho se encabresta.

 

Aí é lesta,

No mais, não.

 

Então?

Queremos a festa

Ou rojar no chão?

 

 

Feito

 

Quem espera ser feito feliz

Infeliz devém pela própria mão.

Expectativa arrogante é dele o matiz

E a matriz,

Impertinente

É a permanente

Demão.

 

 

Absolutamente

 

Quem estiver

Absolutamente seguro,

Uma certeza absoluta pode ter:

O absoluto

Do seu produto

É fatalmente um erro de apuro,

Creia ele no que crer.

Dos apuros em que se meter,

Este é o pior, auguro:

Apodrece-lhe na raiz

Tudo o que quis.

 

 

Tentar

 

Tentar evitar

Que alguém a si próprio faça mal

Com qualquer escolha real,

Superstições ou medos

É tentar parar

O mar

Com os dedos.

 

 

Rapariga

 

Rapariga de carreira:

De luxo a que restaurante

Se abeira,

A que clube e com quem importante

Vai entrar

Para jantar.

 

Apenas importa o aspecto

E o lugar,

Para trepar

No profissional trajecto.

 

Que roupa usa,

Que carro conduz,

Que zona elegante a medusa

Reproduz...

 

Tudo futilidades

Nas prioridades.

 

As prioridades certas

De ter as mãos abertas

A reproduzir em redor felicidades

Ficaram pelo caminho.

 

Ora, estes pequenos momentos

É que são os fermentos

De vidas plenas de pão e vinho.

 

 

Fales

 

Não fales com estranhos,

Que a terra que pisas é mole

E com eles não há nela ganhos,

Logo te engole.

 

Contudo, sê farol

Para barcos humanos de todos os tamanhos,

Lista-os a todos em teu rol.

 

Se pelo teu promontório perpassam,

Todos esperam luzes tuas que os abraçam.

 

 

Rasgar

 

A vida inteira prontos

A rasgar estradas

Por qualquer que seja o abismo...

Nos contos

As fadas

Nunca sofrem de reumatismo.

 

- E seremos assim

Até ao fim.

 

 

Ali

 

Ali onde vivemos

Ninguém aborrece ninguém.

A única questão

É se somos felizes ou não.

Porque nos mudaremos

Se ninguém quer ir mais além?

De hoje a correria

Nem sempre quer dizer alegria...

 

 

Fome

 

Quando a fome espreita os hortos,

Não há muito vagar

Para chorar

Os mortos.

 

Então, se for uma ninhada

Que sobrevive,

Obriga, duma assentada,

A que tudo o mais rápido se arquive.

 

 

Tempo

 

O mais importante

É o tempo com os amigos e a família,

Viver cada instante,

Desfrutar cada segundo de vigília...

E até, a seguir,

O de dormir.

 

Perante

O de vez ir.

 

 

Momento

 

Meramente

Estar presente

 

Ao momento que perpassa

De felicidade é traça.

 

Não correr, não planear

Nem laborar pelo mundo,

Apreciar

O presente segundo.

 

Não tentar modificá-lo,

Fruir do regalo.

 

Nem fugir dele:

Fundir-lhe a minha pele.

 

 

Peixe

 

Há muito peixe a invejar

A tentativa

Furtiva

Dum cavalo para nadar.

 

Por isso

 Acaba o peixe por se afundar,

Ao sorver ar,

E culpa sempre um qualquer enguiço.

 

E há quem não creia

Em feitiço!

E não é volta e meia,

É a vida cheia

Disso.

 

 

Renascer

 

Renascer para nova vida

Será sempre angustiante.

Hesitar é então a medida

Do instante.

 

Há, porém, quem o pressinta

E não minta

No passo adiante.

 

Às vezes é um estranho

Com a palavra

De meu ganho

E a charrua inaugura a lavra.

 

E a vida verdadeira

Por fim ganha tamanho,

Cada dia mais inteira.

 

 

Simples

 

Como tudo o que é importante,

É tão simples tudo!

Um termo ao acaso, num instante

Mudo,

E explode um universo de sentido

A que me grudo,

Transcendido,

E o mundo inteiro é diferente

Daí para a frente.

 

Folha ao vento,

Que sou eu neste mundo contingente

Onde me invento?

 

 

Enquanto

 

Enquanto não mandes,

Atende aos pequenos nadas

E deixa que os grandes

Se resolvam por si

Nas estradas

Que a vida for rasgando por aí.

 

De repente, o teu nada

Inda vira a contento a curva da jornada.