POEMAS LONGOS REGULARES
UTOPIA
Pai
O pai prevenia outrora:
“Tudo é lugar de passagem,
Praça aberta a toda a hora,
Sem dos ventos a triagem,
Nem uma marca demora...”
- Mas, pouco a pouco, a viagem
É o porvir que nos namora.
Acomodado
O acomodado acredita
Que o rebelde é permanente
Um lamento efervescente.
E mui rápido concita
Deste os sonhos solitários,
Fecha-os logo nos armários.
O cidadão agitado
Dentro de si próprio tem,
Acaso inarticulado,
Um rebelde ali refém
Mas com anseios tão dóceis
Como os dele ante os já fósseis.
Ir-se-ão ambos amparando
Vida fora, o além sonhando,
E o banal do dia-a-dia
Desata a adquirir magia.
Fuga
Numa fuga apaixonada
Deve haver o lugar donde
Mas também o para onde,
Ou finda a fuga frustrada.
A falta do para onde
É que na rebelião
Acarreta a frustração
Onde a derrota se esconde.
E pouco importa a utopia:
Quanto maior, mais abalo
Nos desilude o regalo
Frustrado com que atraía.
Nisto é que a revolução
Morre: por falta de chão.
É que o chão entressonhado
Mora sempre noutro lado...
Todos
Todos os homens que o são
Requerem uma ilusão.
Do comércio entre os factos
Acreditam que, além pactos,
Podem viver e morrer
Por uma coisa qualquer
Diferente, como um beijo,
Do que apenas vender queijo...
Seja lá o queijo o que for,
Do comércio no teor.
- Agarram tal nada então,
Transmudam-no na ilusão.
Chávenas
Chávenas beberricando
E torradas mordiscando,
Não vão a parte nenhuma,
- São perenidade, em suma,
Até que a morte na terra
Ignorados os enterra.
E nem do lado de lá
O compasso mudam já:
Não faz parte de seu fito
O atractivo do Infinito.
Ficam de vez no caminho,
Mero terreno maninho.
Até quando (se algum dia...)
Algum olhar se alumia.
Abolir
Abolir qualquer ficção,
A pretexto de mentira,
É matar a vida então,
Que perde o sonho que mira.
Tudo ali desaparece,
Varrido o amor, o desejo
E o mundo inteiro se esquece
Até do ar de tal ensejo.
O passado é uma invenção
E não tem nada de grave.
O porvir, igual demão,
Quem, pois, proíbe que o grave?
Mente
Uma mente vigorosa
Revigora-se na luta
Da vida dificultosa,
Em grande, grande disputa.
A grande necessidade
É que faz sobressair
A grande virtude que há-de
Deste húmus gerar porvir.
Importa
O que importa é o sonho,
Pouco importa o homem.
Que nome me ponho?
Todos mo consomem...
Os inomináveis
Somos do Infinito,
Os degraus trepáveis
Do Além que concito.
E antegosto aqui
O além que entrevi.
Bastidores
Da utopia os tenebrosos
Bastidores quem não lia
Nunca lia os horrorosos
Crimes de que se tecia.
Puro iria e com fervor
Ao altar do sacrifício
Até a verdade se impor:
- Ele é do engano um resquício.
E tanto mais enganado
Quanto o utópico é sagrado.
Corras
Andas tua vida inteira
A fugir, fugir do medo.
Por mais que corras se abeira,
Mal te escondas em tua leira,
Sempre ele te apanha, tredo.
Não há como lhe fugir
Senão entregar-se, ao ir.
Entregar-se e estar por tudo:
Nada sendo e por ti mudo,
Então serás, deste modo,
Apenas a mão do Todo.
Artista
Vida de artista: criar.
Tudo o mais não vale nada.
Entre mil há-de um vingar
E os mais, lista derrotada.
E mesmo o triunfador
Se enoja, desiludido:
Astúcias de corruptor,
O arranjinho comedido,
O ajuste, a especulação...
Tudo é sujeira demais.
É o vazio da ilusão,
Frescura de alma, jamais.
É preciso partilhar
O êxito com intrujões,
Os farsistas do lugar,
Os célebres a feijões...
Há infindos ladrões de glória!
E toda a glória almejada
Que traz no fim? Não traz nada,
Nem sequer para memória.
Estima de escol perdido
Na grã massa alienada?
Tudo há desaparecido
Ante outra estrela brotada.
Pode um canto de museu,
De biblioteca esquecida
Ainda dizer de seu...
Mas diz a quem? Mal há vida!...
A esperança inconsciente
De algo ainda subsistir
Para além, além da gente,
Quando ninguém existir...
- Se assim não fora, algum dia
O artista trabalharia?
Gozo
O gozo é uma expectativa:
É sempre antes a alegria
E durante, enquanto viva,
Que depois, de tão esquiva,
Logo se esvai a magia,
Língua de fogo furtiva.
Assim é com o comer
E também com o dormir:
Satisfeitos, vai-se a ver,
Tudo findou sem porvir,
Já não há mais que sentir
Uma sensação sequer.
Quanto ao amor, sempre é o mesmo:
Expectante crispação,
Angústia a colhê-lo a esmo,
Volúpia vivendo-o então.
Do cume tombo no chão,
Finda em cinzas o torresmo.
É tudo como no jogo:
Uma tensão dolorosa,
Sofrimento onde me afogo
Na espera que então se goza
De ganhar, colhendo a rosa.
No fim apagou-se o fogo.
Desejo recomeçar,
Que o que importa é o jogo em si,
A dor a me extenuar,
Não este alegre ganhar
Que me morre logo ali,
Mal deu para saborear.
- Tanto andamos a caminho,
Que este é que é meu pão e vinho.
Quem quer um Reino terrestre
O que faz faz que sequestre.
Enquanto
Enquanto as nossas histórias
Voem a quem nós amamos,
Não findamos nas memórias
Mas nós por nós, sim, findamos.
Contudo, na natureza,
Noutrem, na comunidade,
Nossa marca integra, presa,
Todo o porvir que ali grade.
Aqui é que eternamente
Dura, comigo presente.
Ouço
Ouço minha mãe cantar
Deste melro no trinar,
Ouço minha avó no conto
Da andorinha em voo tonto
E no coaxar da rã
Do campo ouço minha irmã...
- Em tudo mora a família
Se ouvido presto, em vigília.
Só quem vive distraído
Não vê tudo a tudo unido.
Casal
Num casal, nenhum sacia
O seu cônjuge, afinal.
Há uma ausência fugidia,
É sempre longe o total,
A intangível relação...
Não há posse ou dependência
E a falocracia então
É só perversa demência.
Os esposados a sério
São quem confia na vida
E dela nasce o sidéreo
Que acolhem, prenda à medida.
Entre
Entre uma lei e um desejo
Há um diálogo em tensão.
Permite ela deste o ensejo,
Nem sempre a consumação,
Como em criança que cresce
A norma com que floresce.
Norma então reformulada
Abre ao desejo outra estrada.
Mas, na curva do caminho,
Torna o desejo maninho...
- E assim sucessivamente,
Trilho infindo pela frente.
Fé
A fé, se institucional,
Refaz grilhões de fiéis
Que se alheiam, afinal,
De serem vida das greis.
Têm grilhetas atadas
Às mãos hierarquizadas.
Não representam por si
O sonho que anda a caminho,
O impossível que entrevi,
O além, lá fora do ninho,
O algures que, procurado,
Todos buscam, nunca achado.
Ateu
Ateu dos ateus
Só pode ser Deus:
Como ele é quem é,
Não pode ter fé.
Imitá-lo adrega
O ateu, pois, que o nega.
Chega a ser o fiel
Mais fundido a ele:
Depende da vida
A que isto o convida.
Se o amor for tudo,
É Deus por miúdo.
Panóplias
Panóplias, brasões, escudos,
É tudo isto muito nobre,
Enfeita muros graúdos
Do que escapou de ser pobre.
Nunca, porém, substitui
Vida viva por que anseias
E que além daquilo intui
O sangue a correr nas veias.
- Por isso esta salta o muro
Das classes, rumo ao futuro.
Inquietude
A inquietude que o homem traz consigo,
Desde o primeiro chão que lhe foi berço,
Impeliu-o constante desde o abrigo
A saltar fora, à descoberta terso.
O seu destino foi sempre avançar,
Ir mais além da freima e do cansaço,
Mesmo quando o quebranto retornar
Longo convida em solitário traço.
A marcha continua para a frente:
- Da cósmica pegada sou o agente!
Muitos
Muitos dos torturados na prisão,
Mortos na escuridão, queimados vivos,
A crítica irão ser que a progressão
Alenta, a discordância (que os arquivos
Refreia às prepotências) e os anelos
Que do ventre das eras atam elos
Por uma vida justa onde inauguro
No sangue de tais gentes, o futuro.