POEMAS LONGOS REGULARES
O SER
Cego
Quem é cego de nascença
Sabe lá bem que é ser cego
Até alguém lho dizer!
Mesmo então é uma sentença
A que sente pouco apego:
Que é que cegueira há-de ser?
Apenas é quem já viu
Que sabe o que é que é cegueira.
Só quem na pele a sentiu
Tem a noção verdadeira.
O Homem sente-se sozinho?
- É que ele tombou do ninho...
Sofrimento
O sofrimento é único, absoluto.
Podemos ver doenças repetidas,
Que faz cada indivíduo dele o luto
Na vida dele só, não noutras vidas.
Única cada dor, que é que nos traz
A um sentido de vida enfim capaz?
- No emocional sofrer, na intensidade,
A consciência se crê mortalidade.
Fluxo
A morte, o fluxo do rio
Sempre em direcção ao mar,
Tranquilo e sem mais desvio,
Sem correr, acelerar...
Ir nadar contra a corrente
De mim próprio? Que demente!
Bem mais que dentro de alguém,
Muito mais que dentro em mim,
Este Deus que é mais além,
Num além sempre sem fim,
Este Deus de tudo centro
É nele que eu vivo dentro.
Exprimo
Não exprimo sentimentos,
Que um dia alguém me magoou?
Como se todos os ventos
Foram tufão que arrasou...
Quem cuide há que o mundo inteiro
Tentará fazer-lhe mal
E nem um, por derradeiro,
Chega a ter um fito tal.
Na fundura das matrizes
Todos querem ser felizes.
Não nasce nunca um petiz
Só para ver-me infeliz.
Camponês
Se o camponês deixa a terra,
O grão de trigo entristece,
Pois ninguém volta da serra
A espiga a colher que esquece.
Até se entristece a erva
Que ninguém torna a roçar.
A vaca, o boi de reserva,
O cavalo que ficar
Findam tristes, que esperavam
Por água, pela ração...
Até as aves abalavam,
Que o rego não tem mais grão.
A chuva que rega os campos
Fica triste ela também:
Noites frescas, figos lampos
Já não são para ninguém.
O camponês foi-se embora,
O Universo se contrista
Todo inteiro, a toda a hora...
Quem se enleva com tal vista?...
Antes
Sempre antes de desabar
A sociedade começa
Os cidadãos a matar,
Até cair, peça a peça.
Os cristãos matam hereges,
Os nazis cremam judeus,
Os comunistas que invejes
Por traição matam os seus...
A nova ordem do mundo
Assim sempre se afundou.
A decadência, no fundo,
Deveras principiou
Quando se queimam os vivos
Para salvar uma ordem.
Sintomas do fim esquivos,
Cantos de cisne o chão mordem.
-Vemos, ao acordar de alva,
Que nada disto nos salva.
Juventude
A juventude é nervosa,
Impaciente, exigente,
De outrora as reformas goza
Que a levam a ir em frente.
É o que torna mais premente
A urgência de continuar:
Por fazer há dependente
Um mundo por acabar...
É o que torna intolerável
O permanente imutável.
Chuva
A chuva cai, forma poças,
As poças formam um rio,
Os rios juntam-se em fossas,
Terra abaixo é um desvario.
Também nós acabaremos
Em rio por nos juntar
E arrastados nós seremos
Do peso que se somar,
Tanto mais depressa quanto
Mais numerosos nós formos.
Já tornar atrás, no entanto,
Não podemos nem supormos.
Mais correm águas terrenos
Quanto maior o declive.
Muros grandes ou pequenos
Nenhum então sobrevive.
E ninguém culpa terá
Dos custos do que vem lá.
- Somos, porém, responsáveis
De prevenir os prováveis.
Escravidão
A escravidão acabou,
Mil modos de servidão?
O hábito, porém, ficou,
Geração a geração:
Em todo e cada país,
Livres leis, actos servis.
Despotismo familiar
Do pai sobre o filho, a mãe...
Despotismo a laborar:
É o patrão e mais ninguém!
E o despotismo político?
Entronizado, é somítico.
Mil modos de despotismo...
- Quão custa trepar do abismo!
Surpresa
Na cidade, uma nevasca
É surpresa divertida.
No campo, a vida se atasca,
Perdemos o rumo e a lida,
O frio é de matar,
Ninguém, pois, deve arriscar.
Aflora nisto o contraste
Que tudo opõe quanto baste.
Vulcão
Um vulcão despeja um rio
De lava no agricultor.
Provoca assombro, arrepio,
De prejuízos um ror.
Só que então herdam-no as granjas
E um ou dois anos depois
Lavrarão da terra as franjas
Ao passo ancestral dos bois.
- Dentro, igual, mudar é lento,
Fora sopre embora o vento.
Nada
Nada existe neste mundo
Com a duração eterna,
Nem o momento jucundo,
Nem sequer a dor superna,
Nem alegria ou tormento,
Nem o desapontamento...
Quanto às realizações,
São faíscas sem trovões.
Tudo muda e se transforma,
Nasce e murcha: é eterna a norma!
Casam
Não são muito perspicazes
Em regra os homens no amor.
Nunca casam, eficazes,
Com as cheias de pudor
Nem com as donas de casa
Que aos dias sopram a brasa.
- Olham para uma mulher
E é a cabeça a se perder!
Felizes
Os mais felizes na vida
São estúpidos ou génios.
Uns nem darão pela lida,
Outros vergam aos convénios,
Triunfam do muro à toa
Vencendo a própria pessoa,
Findam na moderação
Sensata em cada estação.
Serão poucos os felizes,
Num ou noutro dos matizes.
É a maioria do meio
Que é um peito de murros cheio.
Magia
Seja a vida lá o que for,
Seja lá qual for o horror
Que os homens fizerem dela,
O mundo é paisagem bela,
Um lugar de maravilha,
Magia que em tudo brilha,
Um sítio mesmo estupendo...
- Nós é que mal o imos vendo.
Sempre
Institucionalizar
É sempre de vez trair
O que era de preservar,
Morto ao fim sem mais servir.
Seja em que domínio for,
Política, religião,
Num lar cheio até de amor,
- Reforça o que atira ao chão.
Seja embora um Santo Padre,
Atinge a raiz da madre.
- No meio deste ludíbrio
Como atingir o equilíbrio?
Experiência
Experiência nunca é
Aquilo que me acontece
Mas o que ponho de pé
A partir do que aparece.
Toda a vida a andar à nora,
Pergunte ao burro que essência
Terá para ele agora
O que é uma circunferência.
A pergunta e a não-resposta
Mostram toda a questão posta.
Sobre
Por sobre o corpo, a armadura
Invisível de defesa.
Depois dela, a armila dura
Dum estilo a que andar presa.
Depois, a roupa interior,
Mais as calças e os casacos,
As mantas, a ter calor,
As carteiras dos patacos...
Camada sobre camada,
Como os cadernos dos tomos,
Somos carne disfarçada,
Mudamos no que não somos.
Grão
O poder do que é costume!
De alguma coisa nasceu
Que no passado o resume
Mas hoje ninguém o assume,
Nem sequer o percebeu.
Mas repetem-no, ligeiro,
Ninguém quer ver o primeiro.
Incontestável
Quando um homem se reserva
De dar uma opinião,
O que faz é que a preserva
Incontestável então:
Nem uma oportunidade
De a discutir de verdade!
E, enfim, todos vêem bem
Qual a opinião que tem...
Angustia
É o que angustia esta ideia
De que há um dia em que morri
E nada ocorre na meia
Vida que fora teci:
O mundo além continua
Comigo fora da rua.
A minha ausência da estrada
Nada significa, nada!
Compra
Compra um rico um fato novo,
Escolheu-o aos quadrados,
Veste-o três vezes num ano,
Tal se fora por engano,
E os parabéns ao renovo
Choverão de mil e um lados.
Um pobre sonha uma vida
Com tal fatiota estranha,
Compra-a, veste-a todo o dia,
Todo o mês, um ano avia...
E ridícula, em seguida,
Vai ser vista esta façanha.
- O mundo apouca a pobreza,
Mais fraca torna a fraqueza.
Assusta
O que assusta mais
É perder os sonhos.
E a morte, jamais?
- São iguais sinais,
São iguais medonhos:
É o mesmo que dizes,
Só que em dois matizes.
Ocupa
O maior problema
De sentir vazio
É quanto, por lema,
Prende à vida o rio:
Nunca me liberta
Meu espaço à certa,
Tenho a barca presa
No vácuo retesa.
Natureza
É da natureza humana
O mais simples de entender:
Queremos (não nos engana)
Sempre o que se não tiver.
Depois, quando se tiver
O que se quiser, porém,
Continua-se a querer
Aquilo que se não tem.
Chegaram
Por medo, muitos calaram,
Outros outros esmagaram
E chegaram a matar,
De medo e de acreditar.
Depois, no traído chão,
Vêem que não têm perdão.
Na religião foi assim,
Na política utopia,
Nas crendices da magia
E nunca a asneira tem fim...
- A maior lição da História
É que se perde a memória.
Consoladora
A consoladora instância
Capital da vida humana:
Não, nada tem importância.
A desgraça só me engana
Porque tenho ego demais.
Ante o que o Cosmos emana
Eu nem ando aqui a mais:
Sou tão ínfimo, irrisório
Que mal há de mim sinais.
Para quê todo o envoltório
Da minúscula aventura?
De que vale ser finório?
- Não valho uma sinecura!
Velhice
A velhice, como a noite,
Será hora, enfim, de espectros.
Tudo amores são que acoite
Em meu imo erguendo os ceptros.
Mesmo até quem não amei
Em mim acolhe igual lei.
Todo o fumo do passado
Me atavia de beleza,
É de poesia um traslado,
Aldeia que mal se preza
E que, do alto da montanha
Entrevista, o Infindo ganha.
Neste melancólico hoje
É o suave dia de ontem
Que tempos fora me foge
Que um horizonte outro apontem.
Há quem lhe fuja e há quem
Só queira o que dali vem.
Somos
Na prosperidade
Somos populares.
Já na adversidade
Vai-se a identidade
Ao costas voltares:
Pelas caminhadas,
Só caras viradas!
Mergulhão
O mergulhão acasala
Sempre para toda a vida.
Retorna ao lago sem mala,
Todo o ano, para a gala
De vida gerar na lida.
Nós é que a simplicidade
Do mergulhão nunca temos.
Saltamos, idade a idade,
Carregados de inverdade,
Mal damos vida, sofremos.
Arte
Qualquer arte é como a vida:
Música, escrita, pintura...
Requer muita paciência,
Fé, paixão e muita lida.
E a beleza do que apura
É emoção por excelência.
Uma má expectativa
É apenas ressentimento
E acaso preconcebido.
Todos buscamos a viva
Felicidade no vento
Do lar, do amor, do sentido...
Quem se diverte na vida,
Ocorra quanto ocorrer?
Poderemos planear tudo
Vida fora, de corrida,
Que o não controla quenquer,
É um mergulho cego e mudo.
Ao mergulhar de cabeça,
Experimento alegrias
E as tristezas que calhar.
Partilho após cada peça
Com meus amores dos dias
Antes de tarde findar.
Árvores
Vejo nas árvores gente:
Vergam-se mas sem quebrar;
Crêem num bom dia à frente,
Do pior tempo apesar;
Adoram simplicidade
Na vida e na natureza;
Tentam tocar de verdade
No céu, ar fora em beleza.
Toque
Qualquer arte nos aponta
Um toque da infinitude,
Erguendo-lhe a breve ponta
Com que nos o afecto ilude.
Porém, o mundo é maior
Que todas as artes juntas,
O real ao nos impor,
Além de quaisquer perguntas.
Resolve mais o interesse
De quem das artes se esquece:
- O que respiram e comem
Não é das artes que o tomem.
Toca
Deus no mundo desemboca
Em nossa toca traída:
Quem o invoca com a boca
O renega com a vida,
Quem se ufana de servi-Lo
Serve charcos de água morta,
Chocho eco de seu estilo,
Nunca o fogo da retorta...
- Se Deus pudera sofrer,
Como pudera então ser?
Resíduos
Mesmo o demente incurável
Tem resíduos de razão,
O delinquente insondável
Tem bondoso coração...
Os prudentes são mui raros,
Perseguidos, não ouvidos.
E os que os respeitam, amparos,
De os seguir mal são servidos.
É neste desequilíbrio
Que a vida devém ludíbrio.
Envelhecido
O envelhecido Ocidente,
Bizâncios apodrecidos,
Não aprende, embora o tente,
Sempre de amores traídos.
Na Revolução Francesa
Não ama os descamisados.
Nas Guerras Mundiais lesa
Os países dominados.
Na Revolução de Outubro
Odeia o campónio rubro...
Agora o Terceiro Mundo
Despreza do saco ao fundo
E dá cabo do Planeta,
Não vá secar-se-lhe a teta...
Algumas boas vontades,
Minoria a quem persuades,
Não bastam para que o lapso
Não finde em novo colapso.
Cada desastre é maior,
Maior do que o anterior.
- Logo, não aprende nunca
E o trilho de mortos junca.
Cardos
Não se aplica
A uma fome,
Só a quem fica
No que tome:
Quem se pica
Cardos come.
Quem não liga
Foge à briga.
Nunca
Nunca a espiritualidade
Alguma vez subsistiu
Sem a materialidade
Que pés lhe deu.
Nunca a luz duma candeia
Alguma vez nos luziu
Sem ser de gordura cheia
E sem pavio.
O estômago é que ligou,
Contra a seca, a tempestade,
O homem que se aterrou
À divindade.
Atribuem
Sempre os grandes aos pequenos
Atribuem as ideias
Lisonjeiras com acenos
Em que só os outros ameias.
Mas louvores são, em regra,
Mera obra dos louvados,
A manter onde se integra
Cada um de ambos os lados:
O grande lá nas alturas,
O pequeno nas funduras,
Que os fracos não se despeguem
Da fraqueza nem a aleguem!
Jugo
Sempre a grande maioria
Da gente que for normal,
Mal pé no mundo metia,
Sempre o jugo sacudia
Qualquer que fora real.
E nenhum dia se via
O oprimido defender,
Voluntário que sofria,
Um opressor com mania
De todo inteiro o espremer.
- É o que aos de grande figura
Cava, a prazo, a sepultura.
Fortuna
A fortuna não promove
Felicidade a ninguém
E ninguém a que ela move
Pode feliz ver-se além,
Senão quando a morte prove
De vez o que nunca tem.
Já que tudo é provisório,
Ser cá feliz, que ilusório!
Grandezas
Grandezas do passado e do presente,
Fruto de sacrifício, suor, sangue
De inumeráveis homens, diferente
De antanho para hoje só no langue
Prémio de ser consciente doravante
O iníquo da beleza ali constante...
Nem vítima de outrora se teria
Por vítima encarado, em maioria.
Respeito à hierarquia, à tradição,
Social desigualdade, religião,
- Tudo confabulava no sentido
De o rumo humano ser mundial gemido.
Essencial
O essencial duma obra de arte
É o papel que nos revela,
O engenho que ali reparte,
A emoção que nos atrela,
- O que ela der, sem mais nada
Que ela própria na jogada.
Que é que o interesse aumenta?
A história que lhe subjaz,
A data em que ela se inventa,
A conjuntura por trás,
- Quanto a falar a puser
Que em lenda a leve a colher.
Planos
São dois planos de memória,
O do pequeno e o do grande.
O pequeno faz a história
Que o quotidiano mande.
O grande será o dos termos
Que rápido é de nem vermos.
Uma dá para lembrar,
Outra vai esquecer, a par.