POEMAS LONGOS REGULARES
DEVERES
Quero
Quero saber que mereço.
Porém, quanto mais procuro
Mais me escapa quanto peço,
Do que sou sei lá meu preço
E aos mais sei lá que figuro!
Ninguém pode validado
Ser, afinal, por ninguém.
Ou creio no meu bocado
De qualidade prendado
Ou não creio e tudo bem.
Porém, sempre duvidamos
Daquilo em que acreditamos...
Alguém
Alguém que se preocupa
Por ter magoado alguém,
Que os sentimentos à lupa
Vê doutrem como convém,
Capaz de ajudar, sentido,
O maior desconhecido,
Este é que, mesmo sem nada,
Afinal tudo irá ter
Para cobrir a jornada
Que cada dia tiver.
Faz, mesmo estúpido, rir
Todo o caminho que é de ir.
Criança
Quem não gosta de pensar
Nem de falar sobre a morte
É uma criança a jogar
Às escondidas da sorte
Numa sala sem mobília.
Tapa os olhos com as mãos,
Crê que da vida a vigília,
Do fundo dos corrimãos,
A não vê, ninguém a vê:
“Se para a morte não olho,
Ela não me vê nem lê;
Se a não penso, o que recolho
É que ela já não existe.”
Quando nesta ingenuidade
Todo o mundo ali se aliste,
Nem a vida é de verdade.
Refugiei-me num nicho
Que é só caixote de lixo.
Partilha
Quem partilha a violência,
Quem preconceitos partilha,
Infeliz dentro, na essência,
A fingir fora que brilha,
Não entende feitos tais:
- Cultiva morte demais.
É criança adoecida,
Desnuda a tapar os olhos,
Estranhamente crescida,
Crendo que, com tais antolhos,
De vez devém invisível
- E expõe o seu pior nível.
Ausente da própria vida,
Nada garante o improvável,
Sempre embora em vida viável:
Finda, ao fim, arrependida?
É que, sem reconversão,
É vítima do tufão.
Enquanto
Enquanto houver tempo ainda,
Arrepender-nos podemos
Do que quer que já fizemos
E a conversão é benvinda.
Perante a morte, porém,
Já ninguém mais tempo tem.
Se então nos arrependemos,
Findaremos condenados?
Ignoramos, esquecemos
Que as escolhas e os cuidados
Antes tomados, decerto
É o que lá damos por certo.
Nem sequer daremos conta
De tal erro, lá na ponta.
Fim
Chegar ao fim do caminho,
Em frente ao muro final,
Arrependido, afinal,
De não mostrar o carinho
Por quem já partiu de vez
É a derrota no entremez.
Porém, se algum tempo houver
De demonstrar este afecto,
Se o indivíduo o fizer,
Tudo muda então de aspecto:
É um milagre tal vivência,
Presente ali toda a ausência!
Energia
A energia que vem dalgum labor
Mas que me não trouxer sentido à vida
É uma energia má e bem pior
Que energia não ter, mas paz sentida.
Se ganho uma fortuna e chego a casa
Igual a um morto-vivo em carro novo,
Algo errado na vida que me apraza
Há-de haver e me impede outra que aprovo.
Se a não viver, serei um derrotado
Embora enorme naqueloutro lado.
Felicidade
De felicidade estado,
De alegria e de prazer
Não é apenas o cuidado.
Muitas vezes é alcançado
Depois de muito sofrer
E de isto ter superado.
Cobertos de cicatrizes,
Contudo sobreviventes,
Melhores, com mais matizes,
Mais fortes desde as raízes
Do que antes dos acidentes,
- É ser feliz quanto vises!
Colocarmos
Ao colocarmos a voz
Naquilo em que acreditamos,
A palavra tem de nós
Algo onde nos semeamos.
Pode ser palavra boa
Ou pode ser má palavra.
Não pode ser dita à toa,
Que urge preservar a lavra.
Se o termo certo não há,
Então há o do silêncio
E o silêncio falará
Mais que o outro: chega e vence-o.
Então é um silêncio cheio
De palavras por dizer,
Que a ninguém dizer conveio
Mas todos vão entender.
É do incêndio o extintor
Para tal tipo de fogo.
Água à floresta o calor
Apagará desde logo.
Se for da electricidade,
Apagá-lo é com espuma.
Se a palavra em fogo invade,
Só o silêncio é que o arruma.
Saber
Saber perder perdoar
Ao outro é como a si mesmo,
Como, em segundo lugar,
Jamais ignorar a esmo
O que de bom foi vivido
Em todo e qualquer sentido.
Finalmente, é uma certeza
De que deixámos legado,
Diferença que algo preza
No tempo que há terminado,
A marca que transformou
Algo ou alguém. E findou.
Mas continua, discreta,
No mundo em que se projecta.
Certeza
Sem a certeza do fim,
De algo que findou de vez,
Difícil partir é assim
Noutro rumo, outro entremez.
É parar de respirar,
Preso, numa expiração,
Sem jamais então lograr
Inspirar a inovação.
Meu ar dos pulmões retiro
Mas inda não deixo entrar,
Preso ao último suspiro,
O ar novo a me restaurar.
Se termino a relação,
Um trabalho sem regalo,
Mas fico ali preso ao chão,
Algemei-me ao intervalo.
Mais fácil suprir a perda
Será, tornando-a efectiva,
Que ficar atado à cerda
Rota da vida afectiva.
Difícil
Mais difícil de lidar
Que com a morte efectiva
É o simbólico finar
Da relação que mal viva,
Dum trabalho que frustrou,
Projecto que perde o voo...
A morte morre de vez,
Nestes algo vive ainda,
Ressuscitarão talvez...
No muro esbarro e não finda!
- Ir só poderei adiante
Se o nó desatar no instante.
Forçar
Para não ser esquecido
Vou forçar-me a estar presente?
É de ex-mulher, ex-marido
E perde todo o sentido
O ódio, vingança onde assente.
Seria libertador
Se o que fizera lembrar
Não fora de mal um ror
Mas o bem que ali causar.
Só que então nada forçado
Provém do caminho andado.
Perde
Para aprender a perder,
Que se perde é de aceitar
Sem prorrogação haver,
Honesto o fim a encarar.
Será com simplicidade
Apreender a verdade.
Finda a raiva ultrapassada,
Olho o fim com bonomia,
Quem me traiu na jornada,
Quem me humilhou algum dia...
- Tenho compaixão por todos
E por mim, mesmo sem bodos.
Entender que se tomámos
A atitude que deu mal,
A pedra onde tropeçámos,
Alguém que não é real,
- A escolha, num tal momento,
Era onde eu bebia alento.
Escolhi
Se escolhi ser uma vítima,
Nunca então nem um resquício
De ser minha alma legítima
Obterei do sacrifício:
Se foi só para agradar
Mais valera nem ter par.
A guerra pelo poder
É que nosso ego subiu,
Após fracassos viver,
Ao pior do apogeu.
É aquilo, ao virar da esquina,
Que ao abismo nos inclina.
Sabê-la
Aquilo que não sabemos
Poderá fazer-nos mal.
É bom, pois, que escrutinemos.
Mas quanta coisa real
É bom que nós a ignoremos,
Que sabê-la é que faz mal!
Aquilo que aí não sei
Nunca, pois, lamentarei.
Todo
Todo o Todo mora em tudo,
Da partícula menor
Ao Infindo mais graúdo,
- Tudo é Um, seja o que for.
Se um dia descodifico
A informação infinita
Que em mim há, que sou, que implico,
- Deus verei que em mim palpita.
Se eu mudar da forma certa
Do espírito rumo à vida,
Deus no mundo é que desperta.
Qual finito? É sem medida!
Tão sem medida desperta
A realidade finita
Que a vida é uma porta aberta,
Mesmo morta ressuscita.
Capitular
Capitular sem lutar
Não é de livre, é de escravo.
Às vezes é de esperar,
A ver onde o ferro cravo.
O nosso destino é um barco
Que podemos governar
Ou ao capricho dum arco
Qualquer do acaso vogar.
Somos nós que decidir
Teremos de como ir.
Classe
Qualquer classe dominante,
Encurralada à parede,
Protesta que quer pagante
Ser de quenquer que lho pede.
Julgam que, sujando as mãos
Lavrando a terra, na essência,
Lavam com estas demãos
Deveras a consciência?!
E quando é um país cimeiro
A dominar um terceiro?
E um mundo desenvolvido
Do que é atrasado esquecido?
Íntimo
Se o íntimo convencido
For de que a sociedade,
Ídolo de homens erguido,
Pode igual ser abatido
Por igual fraternidade,
Pois nada é definitivo
Nem sagrado neste mundo,
Então a jogada ao vivo
As baias rasga do arquivo
E o chão do homem é fecundo.
Sois
Sois numerosos e fortes
Mas não tendes consciência.
Cada qual cuida dos portes
Da própria subsistência,
Só problemas pessoais...
- Quando vos unificais?
Nada vos resistirá
Se o pé cobre o mundo que há!
Crê
O reformador
Crê que o pormenor
Pode-o alterar,
Mas tudo em geral
É belo, afinal,
Permanece a par.
Revolucionário,
Radical, sumário,
É um destruidor:
Após destruir
Pode construir
Um mundo melhor.
Encontram-se a meio:
De reformas cheio,
O mundo é podado.
Todo o galho seco
Cai, que virou peco:
Morre o mundo herdado.
Se, porém, se extremam,
Connosco de vez
É que nunca atremam
E tudo é um revés.
Nem ao mudar tudo
Ou parar me acudo.
Rico
Ó meu rico Sº. António,
Meu santo casamenteiro,
Não me deixes ser demónio
Mas deixa-me ser brejeiro.
Santo António de Lisboa,
Vaso de manjericão,
Trazes festa à vida à toa,
Canto, dança – e tudo é pão!
Sº. António, língua de oiro,
Desce lá de teus altares,
Vem partilhar do tesoiro
Dumas festas populares.
Sº. António de Lisboa
De língua mui afiada,
Vem afiá-la na broa
Duma boa sardinhada.
Formidáveis
Quando os socialistas são
Formidáveis repartindo
Dinheiros doutrem, então
É questão onde ando eu indo.
Imemorial é o consenso:
“Que bem prega Fr. Tomás!
Vê o que diz, não o que faz...”
- A que família pertenço?
Melhor é ter sempre alguma
Não pertencendo a nenhuma.
Na liberdade adquirida
Afiro o passo à medida.
Monda
Todos oscilamos
Com altos e baixos
De força ou fraqueza.
Tudo o que logramos
Na monda dos sachos
Bem pouco alguém preza:
É nos dominarmos
No que suportarmos.
Espírito
Espírito de justiça
Existe nos que dominam
Leis, decretos e na liça
O campo uns aos outros minam?
É por quem muito possua
Que a protecção toda actua?
Afinal, não é de ao fraco
Proteger o pobre caco?
À lei não é obrigatório
Ter de ética um envoltório?
Festa
A festa apenas encanta
Quando só for altruísmo:
É de alegria que canta,
De rumo de vida a crismo.
Fazê-las para se impor,
Para se pôr em destaque,
Ligá-las a um fim tutor,
Contra a alegria é o ataque.
Degrada-a, num tal momento,
Num pobre divertimento.
É coçar a comichão,
Já não é uma festa então.
Chuva
Como a chuva é requerida
Para uma ervagem crescer,
Uma desgraça sofrida
Conduz a reconhecer
Nossa infinda pequenez
Ante o Cosmos que nos fez.
Quaisquer infâncias pequenas
Pertencem ao dia-a-dia
Como as folhas, às centenas,
Às árvores que há na via.
Cair na lama é o pior?!
- Vai lá sentir-te o maior!
Razões
Do modo por que falaste
É que perdeste a razão?!
Não a perdes por contraste
Das razões que lá não vão?
Se tem razão o argumento
Que te assistir, afinal,
Não há modo que o cimento
Quebre ao balanço final.
Que é que importa um grito lá?
- Ou há razão ou não há!
Crianças
As crianças preguiçosas
Não existem, mas cansadas
Com o insucesso das glosas
Onde as temos amarradas.
O insucesso gera mais
Insucesso a cada mão,
Descrente pelos sinais
De aí vir mais frustração.
O bom resultado alcança
Aumento à motivação
Donde cresce a confiança,
Êxito a brotar do chão.
A criança não acorda
Com intenção de falhar.
Pais e mestres são a corda
Sempre ao pescoço a apertar.
Se a vida escolar não traz
Nada que a torne feliz,
Como confiante é capaz
De outra devir de raiz?
Erijas
Que erijas teu edifício
Mesmo com demolição
De castelos no ar herdados!
É o que traz teu benefício:
Arrancas um coração
Mil a semeá-lo em bocados.
Que apagues duma penada
A tua história passada,
Que apagá-la, a bem querer,
É toda a reescrever!
Buscas
Buscas autenticidade
A marcar teu dia-a-dia
E o que encontras de verdade
É quase só nostalgia.
O camponês evocado
É a câmara frigorífica
Que preserva no mercado
Uma verdura magnífica.
Quando tudo é apenas isto,
A autenticidade é um quisto.
Podes ter toda a razão
Mas não sabes nada então.
Partir
Não mantenhas este impulso
Dos que tentam as paredes
Partir mesmo à cabeçada.
Deves preferir o insulso
Jeito de quando não cedes
Até ter a nova estrada.
A muralha que então vedes
Fica atrás já torneada.
Resto
Neles próprios enrolados
Como se o resto do mundo
Nem existira nos prados,
Enquanto no abismo, ao fundo,
Todos morrem afogados,
A dois passos mal contados...
- Mas que mundo! Mas que imundo!
Que cola junta os bocados?
Nada
Quando nada muda,
É o tempo que passa.
Ser feliz não gruda
A teia tão lassa,
Contrariedade
Da felicidade.
Fomos, pelas eras,
Bem domadas feras.
Fizeram-nos crer
Que parar é ser...
E a sabedoria
Do povo diria:
Em frente, correr!
Parar é morrer...
Éramos
“Nós éramos tão felizes!”
- Faísca a infelicidade.
Mas se é só muda de idade
Com a troca de matrizes,
Cheias de seiva as raízes,
Onde fica a tempestade?
É só gerir bem os rizes,
Que, com o tempo, se alcança
Da tempestade a bonança.
Tempo
O tempo é nosso inimigo.
Quando o amor, uma alegria
Lhe resistem dia a dia,
A rotina por abrigo
Toma então: com tudo bole,
Esmigalha e torna mole...
- Só teremos, por resposta,
De refundir nossa aposta.
Copo
O meio copo da vida...
Se não for cheio, só meio,
Não o quero, de seguida.
Um copo só meio cheio
Nem é um copo, é má medida.
Para que é que irei beber,
Se apenas bebo o possível?
O possível quem o quer?
Nem deficiente é credível!
O possível não é mais
Para os êxtases geniais
E eu quero-me arrebatar
Ou não saio do lugar!
Medo
Quem tiver medo de errar,
Já neste medo anda errando.
Não lho logro perdoar,
Pois quem erra anda tentando
E sabe que, por tentar,
Pode sempre, sempre errar.
Isto é que é uma maravilha,
Pois serão sempre os melhores
Que, ao saltarem de ilha em ilha,
Mais cometerão errores.
E sempre de quem mais erra
É descobrir nova terra.
Pobreza
Maior pobreza é pensar
Que ter de ganhar a vida
É ter dinheiro a ganhar.
O maior pobre é a quem resta
Ter dinheiro sem medida,
De rico para ter festa.
E por aí se ficar...
Então e a quem amar?
Que tristeza de riqueza!
Antes a pobreza ilesa...
Valer
Aquilo de que precisas
É dum corpo a respirar
E um mundo para viver.
Pode nem valer as brisas
Nem o carinho dum lar,
Porém é o mundo que houver.
Será teu mundo, aproveita
E respira desde então,
Respira o sonho a caminho,
Modela-o com teu vizinho,
Até que, à hora da deita,
Te falte a respiração.
Custa
Por vezes custa estar vivo,
Creio que não há saída,
Que da dor nunca me esquivo,
Não pára a carne moída.
Mas tudo irá na corrente.
Sempre. Embora um pedacinho
Nos mantenha, renitente,
Um gesto bom comezinho.
O que o bloqueia, porém,
Foi-se turbilhão além.
Intolerável
Na intolerável tortura,
Que é que será ir-se abaixo?
Cair de vez na loucura,
Confessar culpas em cacho
Que nem há nem pode haver,
Ou deixar-se enfim morrer?...
E o torturador? Em cima
É dele o lugar e o clima?!
Ou será que é tão debaixo
Que à luz do dia o nem acho?
Deveras
Deveras grandeza humana:
Bondade sem condições,
Darmos aos que nada têm,
Não o que das sobras mana,
Antes muitos dos tostões
Do pouco que nos advém.
É dar mesmo até que doa
Sem buscar prerrogativas,
Sem impor que nossa é a boa
Acção e as mais, negativas.
Sem procurar gratidão
Dos que o nem pedido hão.
É a grandeza no entremez
Desta nossa pequenez.
Altura
A certa altura da vida,
“Que se lixe!” – é de clamar,
Sem mais norma comedida,
De cabeça mergulhar.
Apenas há uma maneira
De enfrentar a vida avessa,
Gozar a praia fagueira,
Saltar ao mar: de cabeça!
Se alguém te gritar: “pára e cresce!”,
Terás de lhe retorquir:
“Da frente desaparece,
Tu tens é de diminuir!”
Há muito pouco na vida
Que podemos controlar.
Ser feliz é uma medida
À mão para continuar.
Podemo-nos divertir,
Ocorra lá o que ocorrer
Na vida que nos trair:
Feliz então é quenquer.
Podemos ser a criança
Que se alegra enquanto lança
Ao vento, quando ele a impele,
Mil estrelas de papel!
Fácil
É fácil, descontraídos,
Falar com desconhecidos.
Mais que com irmãos, amigos,
Pais – que todos são-me abrigos...
A mãe revirar os olhos,
Mudar de assunto, de antolhos
Quando o tema não lhe agrada,
Que fadiga mais cansada!
Mas o amigo com saudade
De solteiro alguém persuade?...
E mais: juram que jamais
Ocupam casa de pais...
Desconhecido, o que arquiva
É sem ter expectativa.
Incentiva e é paciente,
Mesmo aborrido, consente.
Até, se os olhos revirem,
Que importa? Se os meus não virem...
Maneira
A maneira de tratar
Com fúteis de sociedade
É de os atemorizar
E de em voz alta clamar
Segredos de vacuidade
Que são deles os escândalos:
-Seremos deles os vândalos!
Prémio
O mundo não tem que valha,
Que valha para partilha,
Nem prémio que não a palha
De o burro acolher a cilha.
Artes, em contrapartida,
Só têm prémios de sonho
Quando a barriga convida...
Em que lugar é que os ponho?
Não há mesmo alternativa:
Ou combino ambos os hortos
Numa trança em chama viva,
Ou findamos todos mortos.
Impedem
Pais que impedem à criança
O prazer da idade dela
Culpabilizam a trança
De tudo quanto ela alcança,
Não é livre na sequela.
A angústia deles é trela
E o ciúme a toda a hora
É esmagadora tutela,
Vigia a vida à janela,
Filho é escravo, não demora.
O que restar, doravante,
É amor infantilizante.
Trai
Toda a culpabilidade
De insubmissão, desrespeito,
Se trai do íntimo a verdade,
Não é espiritualidade,
É humano apenas despeito.
E quem deveras quer ser
Ultrapassa tal viver,
Seja lá quem for que afaste
E a fúria com que o agaste.
Por mais sagrado que seja,
Trai este o que diz que almeja:
-Não é porta-voz de Deus,
É porta fechada aos céus.
Crente
Crente que for verdadeiro
Não poderá ser malvado
Nem contra um malvado inteiro
E o outro mundo há fechado.
E não pode ser injusto
Com os injustos que houver,
Nem cruel, embora a custo,
Com os cruéis que sofrer.
Mas deve tentar o bem
Com o tratante do mal:
Inaugura ali também
Dum outro mundo o sinal.
Germinámos
A dificuldade-mor
É que todos a caminho
Andamos de sermos Deus.
Então vamo-lo supor
No menor campo maninho
Onde germinámos céus.
Logo a soberba enche o peito,
Rasga o orgulho trilho a eito.
E, em vez de deus, nos tornámos
No diabo que rejeitámos.
Segue
O mal segue normativos
Que viram o bem do invés:
Não sejas veraz de vez
Mas parece-o nos motivos;
Se és veraz, contam contigo
Mas dos mais não és abrigo;
Não respeites propriedade
Mas afirma que é sagrada;
Colhe-a toda dominada,
Que, ao ter a totalidade,
Sem contestação ali,
Tudo depende de ti;
Da moralidade alheia
Serve-te como instrumento
Para teus fins de mão cheia
Sem hesitar um momento;
Cada um leva ao pecado
Mas diz que o hás condenado;
Não ames ninguém e faz
Infeliz a quem não queira
Depender de ti na jeira
De cada dia falaz;
Sê coerente, nisto atento,
E sem arrependimento.
- Na igualdade deste agir
Aparentas o homem justo,
Modo hábil e sem custo
De os mais de escravos fruir
Antes de que nem sinal
Eles possam ter de tal.
Nunca
Aquilo por que se esforçam
Para serem mais felizes
- Os salários que a mais orçam,
Casas com bem mais matizes... –
Nunca dá mais alegria
À vida, nem por um dia.
Porém novas experiências
- Umas férias, uns concertos... –
Sem materiais exigências
- Carro novo, robôs certos... –
Tornam comprovadamente
Bem mais feliz toda a gente.
Como o físico exercício,
Como a socialização,
Dormir melhor desde o início,
Tempo livre à frente e à mão
(E não só ganhar dinheiro),
Alegram-nos por inteiro.
A felicidade é um pneu
A que é preciso dar ar
Ou esvazia o que encheu
Sem sequer eu reparar.
É um trabalho permanente
Que fará que eu me acalente.
Encontro
Encontrar-me com o amigo
Ou o encontro inesperado
Com o estranho que lobrigo...
- É bem-estar aumentado.
Como as cascas da cebola,
Imenso tenho a aprender
Enquanto se desenrola
Da vida a casca que houver.
Com outrem gentil agir
Melhora a felicidade
Mais do que por mim sentir
Que outrem busca o que me agrade.
Três gestos gentis por dia
Mais felicidade aumentam
Que um só que repetiria
Por três dias que arrefentam.
Sinto-me boa pessoa,
Ao ser sem obrigação.
Se esta tudo me atordoa,
Logo infeliz tombo ao chão.
Se variar a simpatia,
Monótono evito o gesto.
De contrário não diria
Nada o repetido apresto.
Basta um muito simples acto,
Algo agradável dizer,
Elogiar o pacato
Servente à mesa que houver...
Para nós mínimo esforço,
Para quem o recebeu
É doutra vida um escorço,
Abrimos na terra o céu.
Mudança
Muitos findam resignados
Crendo a mudança impossível,
De vida embora dotados
Bem longa, sem fim credível.
Contudo, em qualquer idade,
Se melhora a qualidade.
É como árvore podar
Demasiado ramalhuda:
Ao novo emprego aceitar,
Da casa ao tratar da muda,
Cresce a ramaria mais
E mais frutos são reais.
Acrescente à própria vida
Alguma coisa de novo.
Actividades elida
Que detesta, gorado ovo.
Procure o que fundo quis,
Verá como é mais feliz.
Transforme limitações
Em nova oportunidade.
Obstáculos e senões
Mude em festa que lhe agrade.
Nunca deixe que a impotência
Lhe vá definir a essência.
Irrita
É o que normalmente
Nos irrita em gente
Com inesgotável
Energia usável:
Fazem, muitas vezes,
Que os demais, em cacos,
Se sintam soezes,
Uns inúteis fracos.
Perdão
O perdão é uma montanha
De cumeeira mui alta.
Ladeira que o topo ganha
É escura e toda tacanha
E a escalá-la, quanta falta!
Uma vez logrado o cume,
A montanha do outro lado
A beleza é o que a resume,
Tudo flores e perfume,
Rouxinóis e um sol lavado...
Do cume vemos os dois
Pendores desta montanha.
Quem irá descer depois
O pendor sem arrebóis
E não o que o sol apanha?