POEMAS  LONGOS  REGULARES

 

 

 

DEVERES

 

 

 

 

Quero

 

Quero saber que mereço.

Porém, quanto mais procuro

Mais me escapa quanto peço,

Do que sou sei lá meu preço

E aos mais sei lá que figuro!

 

Ninguém pode validado

Ser, afinal, por ninguém.

Ou creio no meu bocado

De qualidade prendado

Ou não creio e tudo bem.

 

Porém, sempre duvidamos

Daquilo em que acreditamos...

 

 

Alguém

 

Alguém que se preocupa

Por ter magoado alguém,

Que os sentimentos à lupa

Vê doutrem como convém,

Capaz de ajudar, sentido,

O maior desconhecido,

 

Este é que, mesmo sem nada,

Afinal tudo irá ter

Para cobrir a jornada

Que cada dia tiver.

Faz, mesmo estúpido, rir

Todo o caminho que é de ir.

 

 

Criança

 

Quem não gosta de pensar

Nem de falar sobre a morte

É uma criança a jogar

Às escondidas da sorte

 

Numa sala sem mobília.

Tapa os olhos com as mãos,

Crê que da vida a vigília,

Do fundo dos corrimãos,

 

A não vê, ninguém a vê:

“Se para a morte não olho,

Ela não me vê nem lê;

Se a não penso, o que recolho

 

É que ela já não existe.”

Quando nesta ingenuidade

Todo o mundo ali se aliste,

Nem a vida é de verdade.

 

Refugiei-me num nicho

Que é só caixote de lixo.

 

 

Partilha

 

Quem partilha a violência,

Quem preconceitos partilha,

Infeliz dentro, na essência,

A fingir fora que brilha,

Não entende feitos tais:

- Cultiva morte demais.

 

É criança adoecida,

Desnuda a tapar os olhos,

Estranhamente crescida,

Crendo que, com tais antolhos,

De vez devém invisível

- E expõe o seu pior nível.

 

Ausente da própria vida,

Nada garante o improvável,

Sempre embora em vida viável:

Finda, ao fim, arrependida?

É que, sem reconversão,

É vítima do tufão.

 

 

Enquanto

 

Enquanto houver tempo ainda,

Arrepender-nos podemos

Do que quer que já fizemos

E a conversão é benvinda.

Perante a morte, porém,

Já ninguém mais tempo tem.

 

Se então nos arrependemos,

Findaremos condenados?

Ignoramos, esquecemos

Que as escolhas e os cuidados

Antes tomados, decerto

É o que lá damos por certo.

 

Nem sequer daremos conta

De tal erro, lá na ponta.

 

 

Fim

 

Chegar ao fim do caminho,

Em frente ao muro final,

Arrependido, afinal,

De não mostrar o carinho

Por quem já partiu de vez

É a derrota no entremez.

 

Porém, se algum tempo houver

De demonstrar este afecto,

Se o indivíduo o fizer,

Tudo muda então de aspecto:

É um milagre tal vivência,

Presente ali toda a ausência!

 

 

Energia

 

A energia que vem dalgum labor

Mas que me não trouxer sentido à vida

É uma energia má e bem pior

Que energia não ter, mas paz sentida.

 

Se ganho uma fortuna e chego a casa

Igual a um morto-vivo em carro novo,

Algo errado na vida que me apraza

Há-de haver e me impede outra que aprovo.

 

Se a não viver, serei um derrotado

Embora enorme naqueloutro lado.

 

 

Felicidade

 

De felicidade estado,

De alegria e de prazer

Não é apenas o cuidado.

 

Muitas vezes é alcançado

Depois de muito sofrer

E de isto ter superado.

 

Cobertos de cicatrizes,

Contudo sobreviventes,

Melhores, com mais matizes,

 

Mais fortes desde as raízes

Do que antes dos acidentes,

- É ser feliz quanto vises!

 

 

Colocarmos

 

Ao colocarmos a voz

Naquilo em que acreditamos,

A palavra tem de nós

Algo onde nos semeamos.

 

Pode ser palavra boa

Ou pode ser má palavra.

Não pode ser dita à toa,

Que urge preservar a lavra.

 

Se o termo certo não há,

Então há o do silêncio

E o silêncio falará

Mais que o outro: chega e vence-o.

 

Então é um silêncio cheio

De palavras por dizer,

Que a ninguém dizer conveio

Mas todos vão entender.

 

É do incêndio o extintor

Para tal tipo de fogo.

Água à floresta o calor

Apagará desde logo.

 

Se for da electricidade,

Apagá-lo é com espuma.

Se a palavra em fogo invade,

Só o silêncio é que o arruma.

 

 

Saber

 

Saber perder perdoar

Ao outro é como a si mesmo,

Como, em segundo lugar,

Jamais ignorar a esmo

O que de bom foi vivido

Em todo e qualquer sentido.

 

Finalmente, é uma certeza

De que deixámos legado,

Diferença que algo preza

No tempo que há terminado,

A marca que transformou

Algo ou alguém. E findou.

 

Mas continua, discreta,

No mundo em que se projecta.

 

 

Certeza

 

Sem a certeza do fim,

De algo que findou de vez,

Difícil partir é assim

Noutro rumo, outro entremez.

 

É parar de respirar,

Preso, numa expiração,

Sem jamais então lograr

Inspirar a inovação.

 

Meu ar dos pulmões retiro

Mas inda não deixo entrar,

Preso ao último suspiro,

O ar novo a me restaurar.

 

Se termino a relação,

Um trabalho sem regalo,

Mas fico ali preso ao chão,

Algemei-me ao intervalo.

 

Mais fácil suprir a perda

Será, tornando-a efectiva,

Que ficar atado à cerda

Rota da vida afectiva.

 

 

Difícil

 

Mais difícil de lidar

Que com a morte efectiva

É o simbólico finar

Da relação que mal viva,

Dum trabalho que frustrou,

Projecto que perde o voo...

 

A morte morre de vez,

Nestes algo vive ainda,

Ressuscitarão talvez...

No muro esbarro e não finda!

- Ir só poderei adiante

Se o nó desatar no instante.

 

 

Forçar

 

Para não ser esquecido

Vou forçar-me a estar presente?

É de ex-mulher, ex-marido

E perde todo o sentido

O ódio, vingança onde assente.

 

Seria libertador

Se o que fizera lembrar

Não fora de mal um ror

Mas o bem que ali causar.

Só que então nada forçado

Provém do caminho andado.

 

 

Perde

 

Para aprender a perder,

Que se perde é de aceitar

Sem prorrogação haver,

Honesto o fim a encarar.

Será com simplicidade

Apreender a verdade.

 

Finda a raiva ultrapassada,

Olho o fim com bonomia,

Quem me traiu na jornada,

Quem me humilhou algum dia...

- Tenho compaixão por todos

E por mim, mesmo sem bodos.

 

Entender que se tomámos

A atitude que deu mal,

A pedra onde tropeçámos,

Alguém que não é real,

- A escolha, num tal momento,

Era onde eu bebia alento.

 

 

Escolhi

 

Se escolhi ser uma vítima,

Nunca então nem um resquício

De ser minha alma legítima

Obterei do sacrifício:

Se foi só para agradar

Mais valera nem ter par.

 

A guerra pelo poder

É que nosso ego subiu,

Após fracassos viver,

Ao pior do apogeu.

É aquilo, ao virar da esquina,

Que ao abismo nos inclina.

 

 

Sabê-la

 

Aquilo que não sabemos

Poderá fazer-nos mal.

É bom, pois, que escrutinemos.

Mas quanta coisa real

É bom que nós a ignoremos,

Que sabê-la é que faz mal!

 

Aquilo que aí não sei

Nunca, pois, lamentarei.

 

 

Todo

 

Todo o Todo mora em tudo,

Da partícula menor

Ao Infindo mais graúdo,

- Tudo é Um, seja o que for.

 

Se um dia descodifico

A informação infinita

Que em mim há, que sou, que implico,

- Deus verei que em mim palpita.

 

Se eu mudar da forma certa

Do espírito rumo à vida,

Deus no mundo é que desperta.

Qual finito? É sem medida!

 

Tão sem medida desperta

A realidade finita

Que a vida é uma porta aberta,

Mesmo morta ressuscita.

 

 

Capitular

 

Capitular sem lutar

Não é de livre, é de escravo.

Às vezes é de esperar,

A ver onde o ferro cravo.

 

O nosso destino é um barco

Que podemos governar

Ou ao capricho dum arco

Qualquer do acaso vogar.

 

Somos nós que decidir

Teremos de como ir.

 

 

Classe

 

Qualquer classe dominante,

Encurralada à parede,

Protesta que quer pagante

Ser de quenquer que lho pede.

 

Julgam que, sujando as mãos

Lavrando a terra, na essência,

Lavam com estas demãos

Deveras a consciência?!

 

E quando é um país cimeiro

A dominar um terceiro?

 

E um mundo desenvolvido

Do que é atrasado esquecido?

 

 

Íntimo

 

Se o íntimo convencido

For de que a sociedade,

Ídolo de homens erguido,

Pode igual ser abatido

Por igual fraternidade,

 

Pois nada é definitivo

Nem sagrado neste mundo,

Então a jogada ao vivo

As baias rasga do arquivo

E o chão do homem é fecundo.

 

 

Sois

 

Sois numerosos e fortes

Mas não tendes consciência.

Cada qual cuida dos portes

Da própria subsistência,

 

Só problemas pessoais...

- Quando vos unificais?

 

Nada vos resistirá

Se o pé cobre o mundo que há!

 

 

Crê

 

O reformador

Crê que o pormenor

Pode-o alterar,

Mas tudo em geral

É belo, afinal,

Permanece a par.

 

Revolucionário,

Radical, sumário,

É um destruidor:

Após destruir

Pode construir

Um mundo melhor.

 

Encontram-se a meio:

De reformas cheio,

O mundo é podado.

Todo o galho seco

Cai, que virou peco:

Morre o mundo herdado.

 

Se, porém, se extremam,

Connosco de vez

É que nunca atremam

E tudo é um revés.

Nem ao mudar tudo

Ou parar me acudo.

 

 

Rico

 

Ó meu rico Sº. António,

Meu santo casamenteiro,

Não me deixes ser demónio

Mas deixa-me ser brejeiro.

 

Santo António de Lisboa,

Vaso de manjericão,

Trazes festa à vida à toa,

Canto, dança – e tudo é pão!

 

Sº. António, língua de oiro,

Desce lá de teus altares,

Vem partilhar do tesoiro

Dumas festas populares.

 

Sº. António de Lisboa

De língua mui afiada,

Vem afiá-la na broa

Duma boa sardinhada.

 

 

Formidáveis

 

Quando os socialistas são

Formidáveis repartindo

Dinheiros doutrem, então

É questão onde ando eu indo.

 

Imemorial é o consenso:

“Que bem prega Fr. Tomás!

Vê o que diz, não o que faz...”

- A que família pertenço?

 

Melhor é ter sempre alguma

Não pertencendo a nenhuma.

 

Na liberdade adquirida

Afiro o passo à medida.

 

 

Monda

 

Todos oscilamos

Com altos e baixos

De força ou fraqueza.

Tudo o que logramos

Na monda dos sachos

Bem pouco alguém preza:

É nos dominarmos

No que suportarmos.

 

 

Espírito

 

Espírito de justiça

Existe nos que dominam

Leis, decretos e na liça

O campo uns aos outros minam?

 

É por quem muito possua

Que a protecção toda actua?

 

Afinal, não é de ao fraco

Proteger o pobre caco?

 

À lei não é obrigatório

Ter de ética um envoltório?

 

 

Festa

 

A festa apenas encanta

Quando só for altruísmo:

É de alegria que canta,

De rumo de vida a crismo.

 

Fazê-las para se impor,

Para se pôr em destaque,

Ligá-las a um fim tutor,

Contra a alegria é o ataque.

 

Degrada-a, num tal momento,

Num pobre divertimento.

 

É coçar a comichão,

Já não é uma festa então.

 

 

Chuva

 

Como a chuva é requerida

Para uma ervagem crescer,

Uma desgraça sofrida

Conduz a reconhecer

Nossa infinda pequenez

Ante o Cosmos que nos fez.

 

Quaisquer infâncias pequenas

Pertencem ao dia-a-dia

Como as folhas, às centenas,

Às árvores que há na via.

Cair na lama é o pior?!

- Vai lá sentir-te o maior!

 

 

Razões

 

Do modo por que falaste

É que perdeste a razão?!

Não a perdes por contraste

Das razões que lá não vão?

 

Se tem razão o argumento

Que te assistir, afinal,

Não há modo que o cimento

Quebre ao balanço final.

 

Que é que importa um grito lá?

- Ou há razão ou não há!

 

 

Crianças

 

As crianças preguiçosas

Não existem, mas cansadas

Com o insucesso das glosas

Onde as temos amarradas.

 

O insucesso gera mais

Insucesso a cada mão,

Descrente pelos sinais

De aí vir mais frustração.

 

O bom resultado alcança

Aumento à motivação

Donde cresce a confiança,

Êxito a brotar do chão.

 

A criança não acorda

Com intenção de falhar.

Pais e mestres são a corda

Sempre ao pescoço a apertar.

 

Se a vida escolar não traz

Nada que a torne feliz,

Como confiante é capaz

De outra devir de raiz?

 

 

Erijas

 

Que erijas teu edifício

Mesmo com demolição

De castelos no ar herdados!

É o que traz teu benefício:

Arrancas um coração

Mil a semeá-lo em bocados.

 

Que apagues duma penada

A tua história passada,

 

Que apagá-la, a bem querer,

É toda a reescrever!

 

 

Buscas

 

Buscas autenticidade

A marcar teu dia-a-dia

E o que encontras de verdade

É quase só nostalgia.

 

O camponês evocado

É a câmara frigorífica

Que preserva no mercado

Uma verdura magnífica.

 

Quando tudo é apenas isto,

A autenticidade é um quisto.

 

Podes ter toda a razão

Mas não sabes nada então.

 

 

Partir

 

Não mantenhas este impulso

Dos que tentam as paredes

Partir mesmo à cabeçada.

Deves preferir o insulso

Jeito de quando não cedes

Até ter a nova estrada.

 

A muralha que então vedes

Fica atrás já torneada.

 

 

Resto

 

Neles próprios enrolados

Como se o resto do mundo

Nem existira nos prados,

Enquanto no abismo, ao fundo,

Todos morrem afogados,

A dois passos mal contados...

 

- Mas que mundo! Mas que imundo!

Que cola junta os bocados?

 

 

Nada

 

Quando nada muda,

É o tempo que passa.

Ser feliz não gruda

A teia tão lassa,

Contrariedade

Da felicidade.

 

Fomos, pelas eras,

Bem domadas feras.

 

Fizeram-nos crer

Que parar é ser...

 

E a sabedoria

Do povo diria:

 

Em frente, correr!

Parar é morrer...

 

 

Éramos

 

“Nós éramos tão felizes!”

- Faísca a infelicidade.

Mas se é só muda de idade

Com a troca de matrizes,

Cheias de seiva as raízes,

Onde fica a tempestade?

É só gerir bem os rizes,

Que, com o tempo, se alcança

Da tempestade a bonança.

 

 

Tempo

 

O tempo é nosso inimigo.

Quando o amor, uma alegria

Lhe resistem dia a dia,

A rotina por abrigo

Toma então: com tudo bole,

Esmigalha e torna mole...

 

- Só teremos, por resposta,

De refundir nossa aposta.

 

 

Copo

 

O meio copo da vida...

Se não for cheio, só meio,

Não o quero, de seguida.

Um copo só meio cheio

Nem é um copo, é má medida.

 

Para que é que irei beber,

Se apenas bebo o possível?

O possível quem o quer?

Nem deficiente é credível!

 

O possível não é mais

Para os êxtases geniais

 

E eu quero-me arrebatar

Ou não saio do lugar!

 

 

Medo

 

Quem tiver medo de errar,

Já neste medo anda errando.

Não lho logro perdoar,

Pois quem erra anda tentando

E sabe que, por tentar,

Pode sempre, sempre errar.

 

Isto é que é uma maravilha,

Pois serão sempre os melhores

Que, ao saltarem de ilha em ilha,

Mais cometerão errores.

E sempre de quem mais erra

É descobrir nova terra.

 

 

Pobreza

 

Maior pobreza é pensar

Que ter de ganhar a vida

É ter dinheiro a ganhar.

 

O maior pobre é a quem resta

Ter dinheiro sem medida,

De rico para ter festa.

 

E por aí se ficar...

Então e a quem amar?

Que tristeza de riqueza!

Antes a pobreza ilesa...

 

 

Valer

 

Aquilo de que precisas

É dum corpo a respirar

E um mundo para viver.

Pode nem valer as brisas

Nem o carinho dum lar,

Porém é o mundo que houver.

 

Será teu mundo, aproveita

E respira desde então,

Respira o sonho a caminho,

Modela-o com teu vizinho,

Até que, à hora da deita,

Te falte a respiração.

 

 

Custa

 

Por vezes custa estar vivo,

Creio que não há saída,

Que da dor nunca me esquivo,

Não pára a carne moída.

 

Mas tudo irá na corrente.

Sempre. Embora um pedacinho

Nos mantenha, renitente,

Um gesto bom comezinho.

 

O que o bloqueia, porém,

Foi-se turbilhão além.

 

 

Intolerável

 

Na intolerável tortura,

Que é que será ir-se abaixo?

Cair de vez na loucura,

Confessar culpas em cacho

Que nem há nem pode haver,

Ou deixar-se enfim morrer?...

 

E o torturador? Em cima

É dele o lugar e o clima?!

 

Ou será que é tão debaixo

Que à luz do dia o nem acho?

 

 

Deveras

 

Deveras grandeza humana:

Bondade sem condições,

Darmos aos que nada têm,

Não o que das sobras mana,

Antes muitos dos tostões

Do pouco que nos advém.

 

É dar mesmo até que doa

Sem buscar prerrogativas,

Sem impor que nossa é a boa

Acção e as mais, negativas.

Sem procurar gratidão

Dos que o nem pedido hão.

 

É a grandeza no entremez

Desta nossa pequenez.

 

 

Altura

 

A certa altura da vida,

“Que se lixe!” – é de clamar,

Sem mais norma comedida,

De cabeça mergulhar.

 

Apenas há uma maneira

De enfrentar a vida avessa,

Gozar a praia fagueira,

Saltar ao mar: de cabeça!

 

Se alguém te gritar: “pára e cresce!”,

Terás de lhe retorquir:

“Da frente desaparece,

Tu tens é de diminuir!”

 

Há muito pouco na vida

Que podemos controlar.

Ser feliz é uma medida

À mão para continuar.

 

Podemo-nos divertir,

Ocorra lá o que ocorrer

Na vida que nos trair:

Feliz então é quenquer.

 

Podemos ser a criança

Que se alegra enquanto lança

 

Ao vento, quando ele a impele,

Mil estrelas de papel!

 

 

Fácil

 

É fácil, descontraídos,

Falar com desconhecidos.

 

Mais que com irmãos, amigos,

Pais – que todos são-me abrigos...

 

A mãe revirar os olhos,

Mudar de assunto, de antolhos

 

Quando o tema não lhe agrada,

Que fadiga mais cansada!

 

Mas o amigo com saudade

De solteiro alguém persuade?...

 

E mais: juram que jamais

Ocupam casa de pais...

 

Desconhecido, o que arquiva

É sem ter expectativa.

 

Incentiva e é paciente,

Mesmo aborrido, consente.

 

Até, se os olhos revirem,

Que importa? Se os meus não virem...

 

 

Maneira

 

A maneira de tratar

Com fúteis de sociedade

É de os atemorizar

E de em voz alta clamar

Segredos de vacuidade

Que são deles os escândalos:

-Seremos deles os vândalos!

 

 

Prémio

 

O mundo não tem que valha,

Que valha para partilha,

Nem prémio que não a palha

De o burro acolher a cilha.

 

Artes, em contrapartida,

Só têm prémios de sonho

Quando a barriga convida...

Em que lugar é que os ponho?

 

Não há mesmo alternativa:

Ou combino ambos os hortos

Numa trança em chama viva,

Ou findamos todos mortos.

 

 

Impedem

 

Pais que impedem à criança

O prazer da idade dela

Culpabilizam a trança

De tudo quanto ela alcança,

Não é livre na sequela.

 

A angústia deles é trela

E o ciúme a toda a hora

É esmagadora tutela,

Vigia a vida à janela,

Filho é escravo, não demora.

 

O que restar, doravante,

É amor infantilizante.

 

 

Trai

 

Toda a culpabilidade

De insubmissão, desrespeito,

Se trai do íntimo a verdade,

Não é espiritualidade,

É humano apenas despeito.

 

E quem deveras quer ser

Ultrapassa tal viver,

 

Seja lá quem for que afaste

E a fúria com que o agaste.

 

Por mais sagrado que seja,

Trai este o que diz que almeja:

 

-Não é porta-voz de Deus,

É porta fechada aos céus.

 

 

Crente

 

Crente que for verdadeiro

Não poderá ser malvado

Nem contra um malvado inteiro

E o outro mundo há fechado.

 

E não pode ser injusto

Com os injustos que houver,

Nem cruel, embora a custo,

Com os cruéis que sofrer.

 

Mas deve tentar o bem

Com o tratante do mal:

Inaugura ali também

Dum outro mundo o sinal.

 

 

Germinámos

 

A dificuldade-mor

É que todos a caminho

Andamos de sermos Deus.

Então vamo-lo supor

No menor campo maninho

Onde germinámos céus.

 

Logo a soberba enche o peito,

Rasga o orgulho trilho a eito.

 

E, em vez de deus, nos tornámos

No diabo que rejeitámos.

 

 

Segue

 

O mal segue normativos

Que viram o bem do invés:

Não sejas veraz de vez

Mas parece-o nos motivos;

Se és veraz, contam contigo

Mas dos mais não és abrigo;

 

Não respeites propriedade

Mas afirma que é sagrada;

Colhe-a toda dominada,

Que, ao ter a totalidade,

Sem contestação ali,

Tudo depende de ti;

 

Da moralidade alheia

Serve-te como instrumento

Para teus fins de mão cheia

Sem hesitar um momento;

Cada um leva ao pecado

Mas diz que o hás condenado;

 

Não ames ninguém e faz

Infeliz a quem não queira

Depender de ti na jeira

De cada dia falaz;

Sê coerente, nisto atento,

E sem arrependimento.

 

- Na igualdade deste agir

Aparentas o homem justo,

Modo hábil e sem custo

De os mais de escravos fruir

Antes de que nem sinal

Eles possam ter de tal.

 

 

Nunca

 

Aquilo por que se esforçam

Para serem mais felizes

- Os salários que a mais orçam,

Casas com bem mais matizes... –

Nunca dá mais alegria

À vida, nem por um dia.

 

Porém novas experiências

- Umas férias, uns concertos... –

Sem materiais exigências

- Carro novo, robôs certos... –

Tornam comprovadamente

Bem mais feliz toda a gente.

 

Como o físico exercício,

Como a socialização,

Dormir melhor desde o início,

Tempo livre à frente e à mão

(E não só ganhar dinheiro),

Alegram-nos por inteiro.

 

A felicidade é um pneu

A que é preciso dar ar

Ou esvazia o que encheu

Sem sequer eu reparar.

É um trabalho permanente

Que fará que eu me acalente.

 

 

Encontro

 

Encontrar-me com o amigo

Ou o encontro inesperado

Com o estranho que lobrigo...

- É bem-estar aumentado.

 

Como as cascas da cebola,

Imenso tenho a aprender

Enquanto se desenrola

Da vida a casca que houver.

 

Com outrem gentil agir

Melhora a felicidade

Mais do que por mim sentir

Que outrem busca o que me agrade.

 

Três gestos gentis por dia

Mais felicidade aumentam

Que um só que repetiria

Por três dias que arrefentam.

 

Sinto-me boa pessoa,

Ao ser sem obrigação.

Se esta tudo me atordoa,

Logo infeliz tombo ao chão.

 

Se variar a simpatia,

Monótono evito o gesto.

De contrário não diria

Nada o repetido apresto.

 

Basta um muito simples acto,

Algo agradável dizer,

Elogiar o pacato

Servente à mesa que houver...

 

Para nós mínimo esforço,

Para quem o recebeu

É doutra vida um escorço,

Abrimos na terra o céu.

 

 

Mudança

 

Muitos findam resignados

Crendo a mudança impossível,

De vida embora dotados

Bem longa, sem fim credível.

Contudo, em qualquer idade,

Se melhora a qualidade.

 

É como árvore podar

Demasiado ramalhuda:

Ao novo emprego aceitar,

Da casa ao tratar da muda,

Cresce a ramaria mais

E mais frutos são reais.

 

Acrescente à própria vida

Alguma coisa de novo.

Actividades elida

Que detesta, gorado ovo.

Procure o que fundo quis,

Verá como é mais feliz.

 

Transforme limitações

Em nova oportunidade.

Obstáculos e senões

Mude em festa que lhe agrade.

Nunca deixe que a impotência

Lhe vá definir a essência.

 

 

Irrita

 

É o que normalmente

Nos irrita em gente

 

Com inesgotável

Energia usável:

 

Fazem, muitas vezes,

Que os demais, em cacos,

Se sintam soezes,

Uns inúteis fracos.

 

 

Perdão

 

O perdão é uma montanha

De cumeeira mui alta.

Ladeira que o topo ganha

É escura e toda tacanha

E a escalá-la, quanta falta!

 

Uma vez logrado o cume,

A montanha do outro lado

A beleza é o que a resume,

Tudo flores e perfume,

Rouxinóis e um sol lavado...

 

Do cume vemos os dois

Pendores desta montanha.

Quem irá descer depois

O pendor sem arrebóis

E não o que o sol apanha?