A LONGA APRENDIZAGEM
BARTOLOMEU VALENTE
AROEIRA, 2019
QUADRAS REGULARES
AFECTOS
Partir
Um amor só é completo
Quando é capaz de deixar
Partir do abrigo do tecto
Quando é preciso voar.
Metade
Metade da dor do mundo
Será de alguém não ser quisto.
É do amor onde me fundo:
Faltando ele, não existo.
Aposta
Amor sem perda não há,
Cara e coroa da vida.
Pagando a aposta, então já
Meu prémio ganho à partida.
Caos
Num caos põe tudo o amor
E, se escrevemos romances,
É que ordem ao caos pôr
Algo vem tentar que alcances.
Troque
Há quem troque o coração
Por algum lugar de topo.
É a casa vazia então
E alguém vazio no escopo.
Somente
Nunca troques o que amares
Pelo que só se vislumbra,
Pese embora o que sonhares:
Sonho a sós somente alumbra.
Melhora-o
Conversar com um doente,
Dar-lhe um pouco de atenção
Melhora-o rapidamente:
Se puder, ficará são.
Curar
Eu por outrem me esfalfei
Numa corrida sem fim?
A outrem só curarei
Se antes me curar a mim.
Procuramos
Procuramos ser alguém,
Ser alguém na nossa vida,
Alguém na vida de alguém...
- Que fazer, pois, de seguida?
Ajuda
Quem ajuda porque quer
Segurança de afeições
Sozinho ao fim vai-se ver:
Não construiu relações.
Ninguém
Privei outrem da partilha
De meus vulcões de mudança?
Chego ao fim feito uma ilha:
Ninguém minha praia alcança.
Talvez
Talvez alguém tenha a chave
Da porta fechada em mim
Que o segredo me desgrave
De ser eu até ao fim.
Confronto
O confronto pode ser
Fonte de transformação:
É impulso do que tiver
Bem potente o coração.
Vem
É quando o amor existir
Que vem a morte. Porém,
Não mata o amor que ali vir:
O amor não morre, sustém.
Quero
Doutrem quero a percepção
Para construir meu mundo
E ser quem me quererão,
Ser quem me quero, no fundo.
Escultor
Eu tenho o rosto esculpido
Doutrem pela percepção.
Meu escultor, se há morrido,
Quem irei ser eu então?
Pleno
Um amor que for genuíno,
Puro e pleno de verdade,
Deixa ir, livre, o menino,
Solta as águias pela herdade.
Sofrem
Sofrem por me ver sofrer?
É não saber ser presente:
Qualquer jeito só valer
Vai se tira dor da frente.
Criar
As vivências comunais
Intensas de que te doiras
É que irão criar reais
Amizades duradoiras.
Apelidam
Apelidam de inimigos?
Melhor fora que acordaram
Em que serão mesmo amigos,
Amigos que discordaram.
Sempre
Todo e qualquer protegido
E quão mais amor detém
É sempre, nalgum sentido,
Por isso mesmo, um refém.
Bom
Como é bom ter um amigo
Quando o mundo nos odeia,
Se nem da morte o perigo
O amor trava que o permeia!
Solidão
Como é bom ter companheiros,
Mesmo um par no sofrimento!
A solidão nos terreiros
Dói mais que o maior tormento.
Carta
É cada carta um ser vivo,
Faz rir, alegra, entristece...
Como é que tem tal arquivo
Senão vivendo o que tece?
Primeira
A nossa primeira morte
É perder a pátria-mãe.
As outras, na pouca sorte,
Pesam pouco ao que a não tem.
Pátria
Não há cultura ou requinte
Que nos possa separar
Da pátria, seja o acinte
Qual for que então nos picar.
Companhia
Quando alguém está sozinho,
Companhia de quenquer,
Do mais inútil vizinho,
É sempre então um prazer.
Dançar
É tão bom dançar contigo!
Não só por contigo estar:
Tudo em redor é um postigo
Para a maravilha olhar.
Acordo
Muita coisa a gente aprende
No acordo com os demais.
A discórdia nunca rende,
Findo preso em meus sinais.
Gaiola
É na gaiola doirada
Que vives com toda a renda?
Só não tens ninguém, à entrada
Nem saída, que te entenda...
Sós
Quando nós mais precisamos
Que escutem, nos acarinhem,
É quando mais sós findamos,
Nem vislumbro os que adivinhem.
Dará
Quem dá o beijo
- Diz o povo –
No renovo
Dará o queijo.
Laço
O dinheiro é tão ligeiro
Que atrás dele tudo foi
E por questões de dinheiro
Qualquer laço se destrói.
Lonjura
A lonjura é singular,
Contraditória a adivinho:
Estar longe e perto estar
O mal é de ser vizinho.
Passo
A ciência progride
Em passo de corrida.
Amor que aí convide
Marca passo sem ida.
Deseja
Um homem deseja mais
A mulher que o trate bem
Do que a ricaça que tem
Mil compras só nos bornais.
Jovens
Os jovens apenas gostam
De um pé pôr do outro à frente
Quando com moças apostam
Dançar íntegro o presente.
Mais
Muito mais decepcionante
Do que ódio inteligente
É o amor a todo o instante,
A todo o instante exigente.
Enquanto
Enquanto as bocas falarem
Para nada, enfim, dizer,
Vão-se os olhos entender
Sem nada entre si ditarem.
Ferirão
Quantas vezes os que se amam
Se ferirão mutuamente!
Daí que tantos se tramam
Sós na vida, um fim que mente.
Preciso
É preciso trabalhar
Para saber o que é o ócio,
Como se sozinho andar
Vai crer de amar no negócio.
Traição
Quando uma traição imole
Toda a sua identidade,
Não se isole, não se isole,
Urge ter comunidade.
Café
Um café onde um convívio
Conta mais que os comilões
É bom motivo de alívio:
- É que cura os corações.
Valer
O amor é que faz a vida
Valer a pena de vez.
O dinheiro, não. Convida
A destruir-lhe o entremez.
Deixar
Não há mesmo mal nenhum
Em deixar que alguém te ajude.
Tornas feliz cada um:
Quem dá goza a plenitude.
Sela
Quando um coração magoado
For, sela a porta de entrar.
Um coração que é selado
A mágoas não dá lugar.
Desculpa
É desculpa ser mulher,
Que em muitos casos, além
De ser mulher, o que quer
A mulher é devir mãe.
Dei-lhe
Dei-lhe a mão e acontecer
Fiz a súbita explosão.
Tanto se pode fazer
Apenas por dar a mão!
Valeu
A vida valeu a pena
Ao amar e ser amado
E doutrem ao ter cuidado
No lar vivo que me acena.
Palavra
A palavra de incentivo
Ou outra de esmigalhar
Marcam a criança ao vivo,
A curar ou a matar.
Segredo
O segredo do Natal
É amor de homem e mulher
Povoando de céu meu vale
Sempre que o amor quiser.
Paixão
Há quem aposte em limão,
Numa chávena de malva?...
- A paixão, não a razão,
É que nos redime e salva.
Cuido
Cuido doutrem e, ao cuidar,
Tudo é sólido demais:
A obrigação de cuidar
Doutrem torna-nos reais.
Arde
O amor enquanto paixão,
Quanto mais arde com fome,
Como arde qualquer tição,
Mais cedo então se consome.
Queremos
Bem queremos nós ser filhos
Do amor, sem nada conexo.
Mas, se ignorar os cadilhos,
Somos só filhos do sexo.
Palavra
A palavra desolada
Dum amor desencantado:
- Tu já não me dizes nada,
Quem me dera haver finado!
Marcas
Podes ter marcas de guerra,
Ter marcas de temporais,
Marca alguma tanto aterra
Como o desprezo dos mais.
Ninguém
Ninguém vive de sono nem batatas,
Porém, primariamente de presença:
Não é com a pobreza que alguém matas,
Mata-lo de abandono por sentença.
Livre
O que livre se disser,
Sem laços de espécie alguma,
Não é livre o que o resuma,
É sozinho entre quenquer.
Precisa
Quem não precisa de amor?
Sem ele, a gente se afunda:
Alguém salvaste de horror
Se alguém teu amor inunda.
Resigno-me
Resigno-me? Não ao mal
Do que doutrem o mal for
Nem ao mal do que, afinal,
A si faz se falta amor.
Sexo
Quando alguém estiver só,
Sexo apenas é o que resta
Para apenas grão de pó
Não ser mais nalguma fresta.
Apatia
Há quem diga que o amor
É por ódio contradito,
Mas a apatia é que opor
Do amor se irá sempre ao fito.
Melhor
Sempre a melhor rapariga
É aquela que nunca temos,
Sempre o logro que mais briga
É o de que nem suspeitemos.
Seguirás
Seguirás o teu caminho
Como eu seguirei o meu,
De mãos dadas, de mansinho...
Quem chega primeiro ao céu?
Amigos
Os amigos de Verão
Vão derreter com a neve.
Os de Inverno é que serão
De sempre, na vida breve.
Solidão
Solidão, a mais atroz,
Não é faltar gente em volta,
É faltarmos nós a nós,
Que de mim sou eu a escolta.
Tomo-o
Único ou nenhum,
Todo o amor é assim:
Tomo-o em mãos em mim
Ou fico em jejum.
Sabes
Não te minto, não te minto,
Sabes bem por onde vou
E, se sabes o que sinto,
Então sabes bem quem sou.
Soprando
A mulher inteligente
A vida inteira me aquece.
Outra nem soprando a gente
Aquece nem arrefece.
Falta
Se um abraço ocupa espaço,
É bem pouco, é bem miúdo,
Mas se te falta um abraço
Desde então falta-te tudo.
Prolongar
Prolongar a relação
Além do limite extremo
Pode o fim de tudo então
Ser no inferno onde só gemo.
Chamo
Chamo amor ao que te sinto
Na contradição de abismos,
É fundura e alto plinto...
Equilíbrios? Bem, eu cismo-os!
Toque
Imagens, com mil sinais,
Rasgam dentro em nós as lavras
Mas um toque vale mais,
Vale mais que mil palavras.
Preciso
Antes que a tristeza venha
Preciso mesmo de ti,
Quer convenha ou não convenha,
Que em ti só tudo sorri.
Falta
Sei que irei morrer de ti.
Sem ti, porém, ao me ver,
Só me falta mesmo aqui,
Só falta mesmo morrer.
Agi
Nada agi contigo ainda
E já o erro ao calcanhar!
És a maneira mais linda,
A mais linda que há de errar.
Toma
Toma a minha vida toda
E faz dela bom proveito
E de mim também: que a boda
Fique de nós sempre a jeito!
Quero-te
Eu quero-te pelo que és
Mas quero-te mais ainda
Pelo que ser, a teus pés,
Me fazes, na vida advinda.
Ignora
Ignora o relógio, anda!
Um abraço que demoras,
Quando chega à minha banda,
Chega sempre, sempre a horas.
Demora
Dá trabalho seduzir,
Há quem prefira raptar,
Mas demorou a atingir
A simetria de amar.
Corpo
Ama-me com alma inteira
Mas por favor não esqueças
O corpo que pede meças,
De alma cão deitado à beira.
Procurava
Eu não procurava nada.
Todavia, foi destarte
Que, numa curva da estrada,
Consegui mesmo encontrar-te.
Data
A data do nascimento
Não é a de quando eu nasci
Mas a daquele momento
Em que enfim te conheci.
Sabes-me
Não é dum jogo fortuito
Nem de acaso eu ser um louco:
- Lamento deveras muito
Mas sabes-me sempre a pouco.
Vício
Um vício danado
Terei de supor:
Eu sou viciado,
Viciado em amor.
Ama
Só quem ama corre o risco
De morrer, mortos os hortos.
Os mais correm, feitos cisco,
Risco de continuar mortos.
Preciso
Eu não te preciso, não,
Nunca para respirar.
Preciso para ficar,
Ficar sem respiração.
Ombro
A mulher com a cabeça
Em teu ombro pode ser
O bastante, que começa
A vida a pena a valer.
Risco
Corre o risco de perder
Somente aquele que amar
E os mais, o de continuar
Perdidos sem o saber.
Sério
“Quando a sério grande fores,
Que quererás, por teu lado?”
“Trepar aos altos pendores:
- Quero ser apaixonado!”
Preciso
O teu sorriso
É o que me impele.
De que preciso?
- Preciso dele!
Irresistível
Tem o amor uma fronteira
Irresistível que liga
O que a decência requeira
E a excitação persiga.
Sem
Era um homem sem amor.
Ora, sem tal, qualquer um,
Mesmo sem de tal supor,
Nem é mesmo homem nenhum.
Demais
A vida, muito pequena,
É demais para perdermos
Tempo numa qualquer cena
Sem de amor a envolvermos.
Maluco
Quem nunca chorou,
Maluco de dor,
É que nunca amou.
Sabe lá de amor!
Amar
Amar é metade
Do que vale a pena.
A outra é quanto há de
Amado na arena.
Abre
O amor é cego, tão cego
Que não vê nunca os abrolhos.
Todavia, em cada pego,
Abre-nos lá tanto os olhos!
Gostava
Como eu gostava de ser
Quem te sacia! Jamais
Terias de então querer
Seja lá o que for mais.
Maneira
Maneira de ser feliz,
A melhor e sem tabu,
Desde a aparência à raiz,
A melhor maneira - és tu!
Maior
Quem maior for o infeliz
Olha para dentro bem,
Não encontra, de raiz,
Não encontra ali ninguém.
Corpo
“O teu corpo? Odeio!”
“Porquê, Deus do céu?!”
“Porque há um entremeio:
- É longe do meu!”
Apetece
Será que posso abraçar-te,
Pela vida além ao ir,
Quando para qualquer parte
Só me apetecer fugir?
Quererás
Quererás fazer justiça
Pela tua própria mão?
Então, se nada te enguiça,
- Abraça-me e faz-me irmão!
Exterminar
Exterminar terrorismo
É abrir escolas e, além,
De afecto cobrir o abismo
E dar tecto ao que o não tem.
Nunca
Não cumprirei o tal rito
Em que no fim eu declare
Isto em que não acredito:
Que nos a morte separe.
Larga
Larga as palavras e vem!
É curto o tempo que temos
Para estar juntos também
Para sempre, que o queremos.
Lágrimas
Por mais lágrimas que chore,
Há sempre uma, ao apurar,
Demore quanto demore,
Que me fará levantar.
Liberto
Quando a mãe foi mãe-galinha
E depois se foi embora,
Mal o liberto adivinha:
Tudo é vazio na hora.
Assustar
Chega a assustar o domínio
Que quem ama passa a ter
Sobre mim, com o fascínio,
Sem por isso dar sequer.
Solidão
Solidão, só em companhia
Duma mulher ou de Deus,
De paixão, de fantasia...
- Nunca só perante os céus!
Trás
Solidão em companhia
É tudo no amor humano,
Dando as mãos a quanto guia
Cada qual por trás do pano.
Chamar
Um amor eterno,
Bem mais do que a brasa,
É o que chamar, terno,
Sempre, sempre a casa.
Aprendendo
Toda e qualquer geração
Pode beneficiar
Aprendendo, mão na mão,
Com a que antes lhe calhar.
Lembre
Quando eu estou assustado,
Minha mãe sempre me diz
Que me lembre que a meu lado
Sempre andará de raiz.
Volto
Volto para casa
Mas reparo já:
Nunca, enfim, a asa
Me saiu de lá.
Pais
Os pais, o terreiro certo
Onde me refugiar,
Por muito que estejam perto,
Sempre longe hão-de findar.
Casa
Aquilo que foi o lar,
Por mais que seja uma choça,
Nunca, afinal, vai ter par,
Não há casa como a nossa!
Adora
Qualquer mulher ociosa
Adora sempre um tirano
Que atenda à vida que goza
Mesmo à pancada e com dano.
Finalmente
A infância de abandonar
Tem tudo o que receber
De seus pais, de todo o lar,
Para finalmente Ser.
Busca
Qualquer criança é vazia
Se vazia do desejo
Que nos dá força na via
Da busca de quanto almejo.
Sente
A mulher se reconhece
E se sente feminina
Num homem a que apetece,
Na fé nela que o domina.
Amor
Um amor pela pessoa
E não por ela a caminho,
Que é o que a leva aonde voa,
Não é amor, prende-a no ninho.
Diabo
O diabo é tentador
Como o é todo o amor humano
Enquanto ama o que se for,
Não a nau, ao vento o pano.
Missão
Quenquer falta à missão dele
Se se compraz num amor
Que apenas afaga a pele,
De amanhãs sem outro alvor.
Dívida
Uma dívida de amor
Não se pagará senão
Igual amor ao propor
Aos mais que se encontrarão.
Age
Não permaneças atado
A quem já te socorreu
Mas age, pelo teu lado,
Como ele contigo agiu.
Verdadeiro
Verdadeiro amor não cria
Dependência, obrigação:
Livre é quando se anuncia
E é livre quando em função.
Eu
Se eu dum outro não viera,
Pai, mãe e mais companheiros,
Saberia lá quem era,
Nem sou eu nos atoleiros.
Multiplica
Multiplica os teus contactos
E descobre o que em comum
Com outrem terás e os factos
Enfeixa, que então sois um.
Repara
Muita gente há que se encontra
Com muitos todos os dias
Mas nem repara na montra,
Ninguém vê... Que meios-dias!
Partilha
Numa aldeia ou na cidade,
Partilha da rotineira
Vida da comunidade:
- Muito amigo se te abeira!
Problema
Se o problema é solidão,
Terás de multiplicar.
Se é frenética lesão,
É de subtrair, a par.
Inviável
É inviável acreditar
Que nós não somos amados
Por quem nós cremos amar
Por dom gratuito dos fados.
Ordens
Dar ordens ao coração?
Quem as der não fugiria,
Ao cair no saguão,
De noite fazer do dia.
Dono
Amar quem nos abandona,
Fragilidade imperdoável,
É ter dono que se abona
Sem ter nada de abonável.
Fácil
É fácil ser enganado
Por quem a pessoa amar
E o amor-próprio, a par,
Mais me engana, por meu lado.
Mérito
Não é o mérito, jamais,
Que desencadeia o amor
E ninguém descobre quais
Raios lhe irão lume pôr.
Saudade
A saudade, que enganosa
No exagero do perdido,
Na lonjura que da prosa
Talha o poema mais sentido!
Lindo
Tão lindo é o azul do céu
Com a nuvem caminhante
Como és lindo dia meu
Tu com teu amor constante.