A CAMINHO DO AMANHÃ



BARTOLOMEU VALENTE




Lisboa, 1985









Introdução



O diálogo filosofia-ciência anda gravemente viciado desde há três séculos, a partir do momento em que a primeira, para eterna vergonha dela, condenou abusivamente a segunda, em Galileu, pela boca e manigância da Inquisição. De algum modo, poderemos afirmar que o actual descrédito do saber extracientífico, cujo maior expoente tradicional (acolá servo da teologia) era o do filosofar, é um ajuste de contas da vítima perante o algoz, obrigando-o a arrastar-se moribundo desde o termo do séc.XVIII, sem mais ter logrado obra de vulto que lhe restaure o crédito perdido ante o movimento geral da cultura e respectivas forças colectivas mentoras da história. Isto não traria problema de maior, não fora o facto de nos acarretar ameaças que doravante se perfilam como de genocídio à escala planetária, seja por via duma terceira conflagração mundial, da poluição generalizada ou do esgotamento, sem alternativas, dos recursos naturais. Chegámos a tal possibilidade pelo descomunal aumento de poder que, em ritmo acelerado, a ciência e a tecnologia nos colocaram ao dispor. A probabilidade dum apocalipse como ponto de chegada deste itinerário deriva da inexistência de valores nem sentidos consensuais bastante fortes para ordenarem o rumo da humanidade actualmente, para nos criarem um porvir. Numa palavra, o risco provém, em linha recta, da inexistência de filosofia convincente, capaz de nos congregar neste planeta doravante muito pequeno, onde todos podemos ver tudo em todo o lado, a qualquer momento. Como exorcisar tal pesadelo?


Urge recolocar em termos precisos as bases dum diálogo fecundo entre ambas estas matrizes da cultura e da vida de cada um e cada povo, de modo a mutuamente se equilibrarem e relativizarem, por um lado, eliminando qualquer pretensão hegemónica (hoje configurada no cientismo, positivismo, tecnocracia, até no economicismo), trocando-a por um empenhamento em promover uma salutar tensão dialéctica permanente entre os dois polos, e, por outro, lutando por que na prática individual, política, das forças sociais, dos povos e das culturas se promovam as vias mais prometedoras que resultem daquele diálogo de fontes, em vez da actual cegueira do progresso pelo progresso, sem finalidades nem sentidos, que nos anda encaminhando para um abismo sem recuo viável, se não for reorientado a tempo. Um colapso mundial se perfila no horizonte: temos meios para provocá-lo ou evitá-lo. Que é que escolheremos? E porquê?


Tentamos aqui explicitar algumas pedras angulares para reabrir o caminho da esperança, colocando-nos o porvir nas mãos, para o bem ou para o mal, à inteira discrição das liberdades solicitadas a conjugarem-se para obterem aquilo por que no íntimo mais anseiem. Nestes termos, este trabalho endereça-se primeiramente a todos quantos, institucionalmente ou de facto, operam como fermento na comunidade, são chefes naturais ou por função, detêm poder de qualquer tipo, desde o económico ao político, ao do saber e da tradição, ao administrativo e lúdico. Mas, por via deles, a mensagem aqui lançada de mão em mão é para todos os indivíduos, do mais altaneiro ao mais humilde, do sábio ao ignorante. É que de todos nos está pendente o destino e, se amanhã deflagrar o planeta, isto pode bem ter sido por hoje o mais ignaro varredor de ruas ter guerreado no patamar com o mais anónimo dos ardinas. Somos definitivamente solidários para a vida e para a morte e ninguém consegue medir doravante os ecos que o mais insignificante gesto pode desencadear na transparência e encadeamento orgânico do mundo presente. Quem será o responsável do derradeiro milímetro de desvio que nos precipitará no abismo?


A todos dizendo respeito, não há dúvida de que particular responsabilidade recai sobre os quadros técnicos e científicos e sobre os intelectuais e artistas em geral, dado que estas franjas culturais é que dão o tom e definem rumo aos sentidos e atitudes da comunidade inteira, da humanidade, finalmente. É a eles que antes de mais dirigimos o nosso alerta e propomos as vias de reconversão que se nos antolham inadiáveis para redimensionar a vida e a história, em nome dum porvir que valha a pena.


Para além deste sector, porém, e dentro dele, é fundamental a posição dos educadores (progenitores, familiares e professores). Neste estrato se joga decisivamente o amanhã, conformadores como são das novas gerações e padrões, mormente quando institucionalmente ratificados, como ocorre no sistema escolar, para as restantes franjas e organismos societários. É imprescindível que este pequeno fermento decisivo tome consciência de tudo quanto pode estar pendente duma leitura outra da função, potencialidades e riscos de cada componente da cultura, bem como da atitude que tome perante a ciência e a filosofia. A sobrevivência ou a morte da humanidade doravante podem depender directamente disto. Reside neste grupo social o maior poder de intervir, com efeitos a prazo e duradoiros, seja ratificando pelo silêncio e alheamento o rumo suicida que ainda predomina à escala planetária na civilização actual, seja alertando para os perigos e redefinindo valores e comportamentos que permitam desviar-nos do colapso e encetar um itinerário cultural e histórico gratificante para a humanidade inteira e com potencialidades de realização até uma eventual infinitude.

Porque amanhã pode já ser tarde demais, é urgente passar o testemunho, para que a maré das liberdades lúcidas e positivamente empenhadas cresça a ponto de poder barrar o caminho ao apocalipse onde a inconsciência e a tropeada do rebanho amorfo nos ameaça mergulhar a breve trecho. Quanto mais nos apressarmos, menores serão as perdas que entretanto continuarão inelutavelmente a ocorrer. Darmo-nos as mãos é hoje a condição sem a qual nos afundaremos no abismo. Quem pode, sem estremecer, carregar tal responsabilidade?






EXPERIMENTAÇÃO E VIVÊNCIA



a) Objecto do filosofar e objecto da ciência



Um dos aspectos mais divertidos da história da filosofia (e nisto o ocidente e o oriente andam a par) é que ao fim de mais de três milhares de anos de trabalho os peritos ainda não lograram determinar sobre que andam laborando nem de que modo. No fundo, o filósofo nunca soube o que anda a fazer nem, obviamente, como. Mais grave, porém, que tal situação é o facto de nunca ter faltado, no decorrer dos séculos, uma grande quantidade de obras que justamente atacam este enigma e tentam desvendá-lo. Ora, se hoje continuamos com a incógnita por revelar é que tudo redundou em nada (ou quase). Efectivamente, múltiplas aproximações do objecto e método do filosofar foram propostas, prenhes de sentido e fecundas de efeitos.


Desde o socrático “conhece-te e ti próprio” servido pelo método da maiêutica (a técnica da parteira de extrair a vida de dentro de quem a traz, tanto tempo ignorando-a; no caso dele transformada num questionamento constante, graduado e orientado a demolir as crendices, preconceitos e lugares-comuns que usam mascarar-se de verdade); passando pela aristotélica ciência dos primeiros princípios, fundamentos ou causas, servida por uma lógica dedutiva tão rigorosa que se manteve como absoluta e sem alternativa durante dois milénios e ainda hoje, reduzida a um domínio particular, se mantém aí imbatível; até ao vulgarismo que entende a filosofia como um saber de todas as coisas, muito próximo da cultura geral ou então do enciclopedismo, que ora derivou exigentemente para a sabedoria do universal, parente próximo do conhecimento das essências, do eterno (muito caro aos medievais da filosofia serva da teologia), ora pendeu para a clarificação dos princípios gerais da ciência em sentido experimental (caro a sectores contemporâneos adeptos da filosofia serva do experimentalismo, reduzindo-a à epistemologia), ora se tenta reencontrar num saber contraposto ao conhecer ou no englobante de todos os Jaspers que pressentem o mundo a esboroar-se-lhes debaixo dos pés e não conseguem iludir a angústia sem recurso nem saídas em que nos debatemos à escala da humanidade e da história, como na privacidade cinzenta do dia a dia; finalmente, em contrapolo, há os que, em desespero de causa, no dilúvio universal, muito cartesianamente se agarram à única tábua de salvação que lhes resta, teimosamente insubmergível: o Eu, quer no retorno à consciência do cogito, quer no mergulho nas pulsões vitais do inconsciente (sejam elas os fantasmas que amedrontam a inteligência, sejam o húmus primevo da afectividade), quer ainda o Eu como instaurador lógico-linguístico do mundo-ordem-palavra, quer, em último termo, como o sujeito que fala de si na primeira pessoa, que se afirma Eu, princípio e fim de todas as coisas (num qualquer sentido mais ou menos nebuloso). Enfim, tudo redunda no saber do não saber, o “sei que nada sei” socrático, e voltamos ao princípio, vazios e desarmados.


Não é estranho a este quadro multicolorido o descrédito contemporâneo do filosofar, reduzido a inutilidade decorativa da cultura que nem os respectivos profissionais conseguem propugnar com convicção. É uma velharia inofensiva, óptima para entreter ócios, como aliás já o velho Aristóteles confessava há dois milénios e meio, no ripanço de aristocrata à custa de sangue escravo. A desorientação generalizou-se desde o séc. XVIII, no Ocidente, após o fracasso do Idealismo Alemão na tentativa de convencer toda a gente de que atingira finalmente e verdade e a sistematizara. Da morte de Hegel parece que a filosofia até agora nunca mais recuperou, ele arrastou-a para a tumba. Daí para diante ou apareceram fogos-fátuos desvitalizados (vitalismo, existencialismo, personalismo, positivismo...) ou tentativas de arregimentação pelo poder da coacção ou da organização (marxismo, leninismo, maoismo, vários orientalismos quase seitas, quase igrejas...). É evidente que este estado de coisas se foi transformando a pouco e pouco num certo complexo de inferioridade, hoje em dia generalizado entre os que se dedicam à filosofia (filósofos e professores). Foi, antes de mais, resultante da consciência da impotência para descortinar uma verdade fugidia, mascarada da cor de cada pensador, definitivamente avessa a deixar aprisionar-se. A descoberta disto é tão insuportável que gerou filosofias suicidas (tanto do filosofar, tal qual ocorre no positivismo, como, mais grave ainda, da própria vida, como em existencialismos à Sartre e à Camus).


Relativamente às grandes massas a inferioridade do filósofo decorre dum confronto de que ele tem saído inelutavelmente vencido de há meio milénio para cá: a vacuidade dos resultados do filosofar comparada com a eficácia em crescendo imparável da ciência e da tecnologia. Este ramo da cultura impôs-se com tal espectacularidade desde Galileu que nenhuma força, nenhuma criação, nenhuma linha de opção em qualquer país, tradição ou tempo até hoje conseguiu pôr-se-lhe a par, quanto mais contrapor-se-lhe. Perante a ciência e a técnica deixou de haver fronteiras, distâncias, épocas históricas de desenvolvimento, continentes ou povos, todas as barreiras são sucessivamente submersas pelo impacto dos resultados daquele par, tanto no domínio cognitivo como no prático. Não há paralelo, em toda a história de antanho, a este fenómeno pacífico, benemérito e convincente, a ponto de muitos génios proporem que o ideal humano definitivamente se talhe pelo padrão da objectividade, isenção e gratuitidade do cientista e respectiva atitude ao caminhar para a verdade e ao ordenar a acção. O cientismo é um ídolo contemporâneo e, em grande parte, a actual religião universal (uma vez que as anteriores também foram destronadas pelo mesmo fenómeno). A Igreja condenou Galileu mas este, apelando à história, condenou-a a um aborto multissecular gradual sem recurso à vista. A religião, como a filosofia, vive há séculos de balões de oxigénio, num estiolamento imparável.


Depois de tudo, temos ainda de espantar-nos pelo facto de os cientistas e técnicos se não valerem mais deste pecado original dos filósofos. Efectivamente, para o experimentador não há problema de objecto a investigar, quando muito levanta-se-lhe o do método, mas mesmo assim apenas em termos práticos. Logo que inventa uma técnica qualquer de pesquisa na área que pretende, limita-se a utilizá-la com rigor e em ordem às hipóteses em causa e não se preocupa com mais nada. Resulta simples e claro o campo de incidência, a metodologia de o desbravar e o objectivo visado por esta tarefa, seja ele de mero conhecimento ou de utilização. É mesmo a simplicidade estrutural deste procedimento que, no fundo, tem impedido o cientista e o técnico de esmagarem directamente o filósofo, enredando-o logo à soleira do domínio dele. Efectivamente, se já apenas com o prestígio a ciência ocultou o filosofar, que não seria se os mentores daquela o desmascarassem na sua nudez indefesa? É evidente que só o poderiam lograr entrando-lhe no campo e, portanto, ratificando-o como área de saber independente. Seria, porém, a destruição por dentro. O cientista, contudo, tem mantido uma certa galhardia, limitando-se a perguntar “para que é que isto serve?” ou então “mas, afinal, o que é isto?”, obtendo sempre respostas desconexas que o deixam tão perplexo como à partida. Curiosamente, ele tem mesmo cada vez mais vindo em socorro dos filósofos, esses comediantes que se enredam nas próprias palavras, tolhendo os passos a eles mesmos, como palhaços de circo com o ar mais trágico do mundo. Verdade seja que a ajuda inesperada mais não tem feito do que aumentar os atilhos e emaranhar a meada. Alguns, afinal, terminam mesmo angustiados deveras. Deve-se-lhes, aliás, a pretensão de substituir o ideal humano do filósofo pelo do cientista, com a correspondente extensão de legitimar apenas como digno de ser conhecido aquilo que puder comprovar-se objectivamente, pois só isto poderá garantir que pacificamente todos alguma vez nos ponhamos de acordo e será então a harmonia universal sempre sonhada e jamais atingida. Para estes, a história duraria apenas o intervalo que nos demorar a levar o projecto do conhecimento experimental até ao termo; uma vez aqui, tudo estaria desvendado e todos seríamos concordes no saber, pelo que seria a plenitude. E nesta boa-fé se vai tentando reduzir o homem a um feixe de determinismos a desvelar pela pesquisa até que tudo seja luz. Que isto redunde em robotizar-nos, em mergulhar-nos outra vez na matriz físico-química, vegetal ou animal donde a espécie esforçadamente emergiu há milhão e meio de anos, é um efeito a que não se mostram permeáveis, de tal modo os ofusca o esplendor da utopia final. E com eles corremos, impotentes, para a consumação derradeira, em apocalipse sem retorno, não de plenitude mas de morte, hoje do pó levantados e amanhã no pó caídos. E, contudo, a sugestão inicial destes incómodos companheiros de viagem tem potencialidades inesperadas desde que retomada noutro sentido.


Se no alvor da Idade Moderna a crise cultural do mundo ocidental requeria urgentemente um pensamento seguro a que agarrar-se, uma verdade apodíctica que restaurasse as seguranças ameaçadas através duma lógica dedutiva incontestável, em função da qual os grandes quadros de referência de cada vida recuperassem o sentido e validade, e tal foi conseguido por Descartes através da explicitação da primeira evidência logicamente incontestável, o “penso, logo existo”, no qual tudo poderia assentar e donde tudo derivaria, hoje em dia tal não basta já. É mesmo supérfluo, senão até perigoso. Com efeito, não só nos habituámos à instabilidade do conhecimento e insegurança da vida como até reconhecemos como normativo o princípio da relatividade universal, não apenas no universo científico mas também no cultural, histórico e individual. Hoje o relativo aparece-nos como um bem e já não o absoluto que por natureza reputamos de inatingível e, portanto, fora do âmbito da existência, campo único onde o real nos pode ser acessível. Daí o ultrapassamento do cartesianismo em nossa cultura, na sua pretensão de saber de validade absoluta; daí a inutilidade da pretensão sistémica do filosofar e do conhecimento em geral, abandonados sem saudades por uma valoração de sinal contrário em que a plenitude é apenas um ideal ético aproximável e jamais atingível ou dominável em qualquer que seja o sentido.


O que doravante é urgente não é tentar anular o mito de Sísifo, sempre a tentar carrear a pedra pela montanha acima e sempre por ela abaixo rebolando, que tal é a história humana enquanto humanos formos. O irremediável por si próprio está remediado, não importa perder tempo com ele: é aceitá-lo e extrair daí as consequências, para depois dele retirar os proveitos possíveis, dominando as leis que o governam e fazendo-as funcionar em nosso benefício, como em tudo o mais (se é que isto não é de facto tudo desde já). Hoje a premência recai num problema mais recuado, o da legitimidade do próprio filosofar. Para ele não ser um mero palavreado sem sentido ou com sentido e sem interesse, um som vazio que nos distrai e teremos de anular para nos assumirmos, urge conseguir pelo menos isto: precisar-lhe o objecto e método de investigação, de tal modo que se possa, frente a eles, ponderar se afinal é relevante ou não e, caso o seja, se é viável qualquer abordagem dele minimamente eficaz em termos de conhecimento e de permeabilidade à prática. Se não lograrmos chegar ali, então doravante o filosofar estará condenado, mesmo que com isto a humanidade se condene a ela própria ao genocídio. E nada nos permite à partida garantir que assim não será, pois obviamente pode ocorrer (e parece ter sido o caso até hoje) que apesar de estarem em causa questões de vida ou morte, a nossa inteligência seja tão frágil, impotente, que não consiga dar conta da situação nem sequer para caracterizá-la, quanto mais para lhe imprimir um rumo que não seja o do cataclismo mundial. É claro que também podemos concluir por que, afinal, não há mesmo nada a estudar nem a fazer neste domínio e, depois, tal conclusão ser completamente errónea frente aos problemas que defrontamos. Mas tal leitura pode hipoteticamente mesmo corresponder aos factos da experiência e então não resta ao filósofo senão ser o arauto da própria morte para consumar definitivamente o projecto dele num último gesto libertador: o de eliminar um ídolo que milenarmente aprisionou a humanidade. Depois seria o silêncio para a eternidade.


Qual das hipóteses se confirmará? Curiosamente será a ciência que nos trará o fio que jamais alguém encontrou para sair do labirinto. E por ele veremos que tudo se reencontra, ganha sentido e concilia. Não tem é nada a ver com nenhum rumo até hoje seguido.




b) A objectividade e a subjectividade


A área do objecto da ciência está delimitada pelas exigências do método experimental. Com efeito, só são experimentáveis os objectos sensíveis, isto é, os que podem ser captados através de órgãos dos sentidos do investigador. Para tal, têm de ser exteriores ao aparelho sensorial do receptor e, em virtude desta localização, são observáveis por um número ilimitado de pessoas, de facto todas as que pretenderem confirmar por si as provas experimentais das descobertas, reproduzindo a situação experimental. Fora deste área, a ciência torna-se impossível, uma vez que não é viável o processo de prova, observável pela percepção de fenómenos sensíveis mensuráveis. É por isto que os cientistas atacam todas as conclusões pretensamente científicas da área das ciências humanas, mormente da Psicologia e da Pedagogia, sempre que são formuladas em termos mentalistas: o que remete para a mente, para a interioridade do sujeito que investiga, não pode jamais ser confirmado experimentalmente. Não passa dum testemunho, um depoimento pessoal em que se pode ou não acreditar mas que, enquanto faz parte do domínio da intimidade de alguém só de tal podemos ter notícia se ele no-lo quiser narrar. Por outro lado, escapa a qualquer prova, uma vez que não é observável por terceiros mas apenas sentido pelo próprio que o vive.


A dificuldade maior decorre, nesta área da investigação, do facto de não existir um fenómeno de interioridade pura, uma vez que a pessoa tem um corpo perfeitamente perceptível e tudo tem manifestações, por mais ténues e subtis que sejam, ao nível dele. Ora é uma insignificante alteração da tensão eléctrica numa área do sistema nervoso, ora uma mudança do equilíbrio hormonal, do tónus muscular... Não se conhece nenhuma situação vivida por alguém que não lhe atinja em paralelo a vida interior e o corpo, como uma unidade incindível que é de facto a pessoa. Ora, sendo assim, a permanente tentação do investigador em ciências humanas é saltar permanentemente dum domínio para o outro, uma vez que o objecto que lhe importa tem constantemente uma face observável e outra que é o eco íntimo dela que ele pode sentir dentro de si mas já não no universo exterior percepcionável. Mas a verdade é que a prova experimental do conhecimento que ele descobrir não é válida senão para a manifestação sensível, corporificada, dos fenómenos em causa e jamais para a face oculta na intimidade dos sujeitos envolvidos, por mais próximas e correlacionadas que andem ambas.


Desta situação têm decorrido desentendimentos por vezes quase insuperáveis. Assim, tem-se confundido quase sistematicamente a ilegitimidade de extrapolar as descobertas do mundo sensível para o da intimidade com a pretensa ilegitimidade de investigar este domínio da experiência pessoal. Ora, como em ciências humanas, mormente nas que tocam profundamente na vida individual (psicologia, pedagogia, sociologia, antropologia cultural...), o mais relevante é mesmo o que ocorre na face oculta do domínio da investigação, o que decorre por dentro das pessoas, com cada eu na sua complexidade interior, quando se pretende excluir ou, pior ainda, condenar a abordagem desta dimensão, a reacção dos cientistas aqui empenhados é de repúdio de tais posições e de avançarem em simultâneo em ambos os pendores do domínio em análise. E assim se têm gerado escolas e correntes nestes sectores de investigação, por vezes tão antagonistas e aguerridos como as antigas filosofias e teologias. É evidente que tal ocorre apenas porque as provas dum lado e do outro não são concludentes. Só que neste contexto o sentido delas é diferente. Enquanto uns provam experimentalmente as descobertas que fazem e tal não oferece dúvidas, são factos observáveis por qualquer investigador, mas são contestados porque aquilo que investigam não é o que mais importa ou então, mesmo que importe muito, não dá conta da totalidade das dimensões da área de pesquisa, deixando escapar e levando a ignorar o fundamental (ou, pior ainda, pretendendo que este não existe ou, se existe, é um epifenómeno irrelevante), quando o fundamental é justamente a perspectiva da interioridade vivida, o eu de cada um e toda a vivência em que radica, se expande e organiza; enquanto para uns é isto, para outros o experimentável é fundamental apenas como acesso a esta dimensão decisiva da existência de cada pessoa, devendo complementar-se permanentemente ambas as abordagens para nos aproximarmos gradualmente da totalidade do campo de observação, atitude que gera constantes transposições ilegítimas do domínio dos fenómenos constatáveis para o das vivências, bem como interferências desta faceta na significação daqueles, o que vai desencadear pretensas leituras científicas, experimentais contraditórias e tal paradoxo vai reforçar as posições dos da primeira opção. Desta ambivalência parece não haver maneira de sair-se, há mais dum século.


E, contudo, a solução é simples. Basta legitimar, como é de direito, a investigação da interioridade: para evitar confusões tem é de ficar claro que não é abordável experimentalmente, pois não tem, enquanto tal, dimensões perceptíveis, é apenas vivida pelo próprio sujeito que a sente. Nada, porém, o impede de estudar-se e de comunicar o resultado das investigações a quem estiver interessado. Nada pode proibir que isto seja também empreendido pelo cientista, desde que ele distinga os dois processos de abordagem para impedir as transposições dum aspecto para o outro, bem como as ilações ilegítimas, feitas por ele ou por outrem, que pretendam garantir a segurança do conhecimento provado de dados sensíveis a leituras de fenómenos não perceptíveis e, conseguintemente, insusceptíveis de comprovação experimental. É este, aliás, o caminho em geral seguido pela investigação europeia no âmbito da psicologia, contraposto à preferência mais comum dos norte-americanos em geral pela outra linha referida. Apenas se não explicitou que se trata de dois objectos de estudo complementares, abordáveis por metodologias incompatíveis, dada a estrutura sensível dum deles e a vivencial do outro. A incompatibilidade, portanto, não está nos objectos investigados e respectivos conhecimentos, mas apenas nos métodos: num caso a extrospecção, através da experimentação; no outro a introspecção, através da vivência. Apenas utilizando ambas as vias de acesso se pode atingir as duas dimensões da pessoa. O investigador pode, contudo, limitar-se a qualquer delas, como a um sector de cada uma. O que não pode é negar a realidade de ambas nem ilegitimar a escolha por uma ou outra (ou qualquer dos seus aspectos) por parte de todo o pesquisador. Bem como não pode confundir o tipo de conhecimento final que resulta dum ou do outro método: a experimentação conduz à objectividade, a descobertas comprováveis de validade temporariamente universal; a introspecção conduz à subjectividade, a testemunhos de validade pessoal, tendencialmente universalizáveis pelo livre assentimento dos outros.


Onde a batalha é mais acesa é quanto ao estatuto a conferir à psicanálise. Aqui, com efeito, o cruzamento de ambos os campos é permanente, dos dados observáveis salta-se para a estruturação interior inconsciente e desta para aqueles, numa trama inextricável que ora leva uns a considerar que já nada aqui temos de ciência enquanto outros, os psicanalistas, não conseguem ver nisto senão justamente ciência porque tudo estaria experimentalmente comprovado ou em vias de sê-lo. É o caso mais exemplar a que se chega por se pretender ilegitimar a existência de dois objectos de estudo e um trabalho interdisciplinar sobre eles. Com efeito, o que aqui há é claramente uma abordagem dos dois domínios na sua mútua imbricação, o que é perfeitamente legítimo e comprovadamente salutar. Ilegítimo é pretender que é só um deles (seja de ambos qual for) e depois tentar meter tudo o que a psicanálise vai descobrindo dentro do saco que se elegeu. Ilegítimo é ainda, optando por um dos lados, denegrir e menosprezar o outro, como sendo-lhe inferior em validade e dignidade, confundindo a diferença estrutural dos conhecimentos atingíveis por cada via de investigação com diferenças de valor. Ora, nenhum juízo de valor é experimentalmente demonstrável (é uma vivência do íntimo). Ocorre, entretanto, que são justamente cientistas (e argumentando na base da pretensão da validade científica) que caem em permanentes juízos de valor pejorativos da área psicanalítica, sem se darem conta de que, ajuizando assim, estão justamente a incorrer na mesma invalidade que condenam nos outros e, portanto, a ratificar-lhes a validade, pelo comportamento que adoptam. Este contrasenso é o mais hilariante da querela sobre a validação da psicanálise, tanto mais quanto são figuras altamente convencidas e convincentes que nesta armadilha permanentemente se estatelam, de ambos os lados do conflito. Dito isto, é óbvio que constantemente topamos com confusões e extrapolações entre as duas áreas de estudo da pessoa nas obras de psicanálise, uma vez que, sujeitos ao fogo cerrado dos cientistas e do preconceito do cientismo generalizado na cultura contemporânea, os psicanalistas tentam persistentemente acobertar tudo debaixo de factos observáveis, tanto o que por eles se comprova, como o que neles da interioridade transparece e a ela remete (e aqui estamos de facto no domínio da ciência experimental) como aquilo que em seu íntimo reconhecem e interpretam a partir da solicitação ou desafio dos problemas que defrontam. Ora, aqui já estão num domínio de conhecimento não comprovável experimentalmente, muito embora se situe a paredes meias dos aspectos anteriores e normalmente em linha lógica de continuidade com eles, numa relação até de determinismo em nada divergente dos nexos causais do universo sensível da experimentação, mas que é insusceptível dela pelo facto de não dispormos aqui já de nenhum dado perceptível – tudo agora apenas pode ser confirmado através duma viragem para o que sinto passar-se dentro de mim, no meu íntimo e na consciência que dele vou conseguindo tomar.


Tudo isto é tão evidente, simples e linear que espanta a dificuldade de descobri-lo e aceitá-lo. Tão grave é o novo dogma da religião do cientismo que afirma que só o conhecimento experimentalmente comprovável é legítimo. Excomungando quem se lhe não submeta e condenando quanto saber se lhe afaste dos parâmetros, a si próprio se anda, afinal, condenando à confusão e inoperância. Pior ainda, é contraditório como pretensão porque esta não se pode comprovar experimentalmente a ela própria: toda esta disputa já é tema de filosofia e nunca de ciência, é uma questão de opção íntima, não de factos percepcionáveis. Mais, é um anacronismo que estatui, porque implica uma violência e uma agressão a quem se lhe não submeta (não são apenas os psicanalistas que persistentemente são desautorizados, expulsos até por colegas, denegridos, perseguidos, sempre em nome da verdade absoluta do dogma); para uma verdade que se pretende objectiva e de validade universal por si própria, este paradoxo da prática do cientismo não deixa de ser revelador de quanta estupidez e obscurantismo reinam no campo da ciência. Finalmente, o pressuposto do dogma cientista é uma falsidade experimentalmente comprovada: a verdade científica é sempre provisória, a respectiva universalidade reporta-se a um nível de precisão do conhecimento, numa época determinada, estando indefectivelmente condenada a caducar na fase seguinte; quer dizer, a ciência demonstra com factos que tudo nela é provisório, relativo, como o mais ao nível da existência humana. Como fundamentar a partir daqui o dogma do cientismo e a sua pretensa validade exclusiva, definitiva e triunfalista? É um ídolo com pés de barro que nos bloqueia o porvir tanto quanto nos impede qualquer perspectiva (incluindo a verdadeiramente científica) de abordagem da realidade em que vivemos e que somos. Como de todos os ídolos, é urgente libertarmo-nos também deste para a humanidade poder ser menos escrava, encontrando-se um pouco mais a si própria em autenticidade.


O objecto potencial da ciência é, portanto, o universo sensível das coisas, uma vez que, sendo perceptível, é susceptível de experimentação. A partir daqui é evidente a linha divisória entre a ciência e a filosofia. Com efeito, o objecto potencial da filosofia é o universo íntimo dos sujeitos, jamais passível enquanto tal de experimentação, mas permanentemente abordável pela vivência que cada qual pode ter de si próprio, na infinita complexidade da interioridade dele mesmo. Se, pela extrospecção, a reflexão constroi e questiona a experimentação elaborando através desta a ciência, pela introspecção a mesma reflexão constroi e questiona a vivência, elaborando por esta via a filosofia. Assim como a ciência organiza a experimentação a partir da experiência a nível empírico, assim a filosofia organiza a vivência a partir da experiência a nível existencial. Estamos sempre inelutavelmente perante duas faces do dado a estudar, uma apreensível pelo próprio e por terceiros, a outra apenas pelo próprio, uma exterior a si, a outra íntima, uma sendo outra coisa que si mesmo, a outra sendo ele próprio enquanto sujeito. Em ambos os casos a linha divisória é estabelecida pelos métodos de investigação: onde um chega o outro não é capaz de ir e vice-versa. A extensão dos dois domínios é perfeitamente correlativa bem como a respectiva complexidade.


É o que teremos, porém, de clarificar em pormenor.



    c) O cientismo-tecnocracia e o pequeno resto do Eu


Levantam-se a partir daqui vários problemas. O primeiro é o de saber se não estamos perante a mesma realidade, no fundo, de tal modo que com apenas uma das abordagens fique esclarecida a totalidade do objecto por cada um dos aspectos ser meramente o espelho ou reflexo do outro. Se tal fora a estrutura do dado a investigar não teria novamente premência diversificar as abordagens senão no sentido de se optar por aquela que em cada caso mais fácil e economicamente nos levasse ao conhecimento e eficácia de acção pretendidos. Deixar-se-ia a outra via por inútil. No caso, dada a eficácia científico-tecnológica, daqui resultaria de novo na prática a abolição da filosofia, tornada inútil de facto em qualquer domínio em que tal escolha tivesse de colocar-se. Uma outra questão que se ergue é a de saber se a delimitação do filosofar ao objecto do respectivo método não redunda num reducionismo que nos obrigue a encarar como metáfora a pretensa complexidade da interioridade, a infinitude do universo íntimo. É que se pode perguntar se tal latitude não é apenas a mesma que a mais insignificante coisa perceptível revela à experimentação: jamais se esgotam os conhecimentos que se podem dela ter nem as perspectivas científicas de abordagem possível. Neste caso nós teríamos apenas um único exemplar do objecto de estudo na filosofia enquanto na ciência deparamos com a infinidade do Cosmos e suas inúmeráveis componentes, cada uma delas tão inesgotável e rica como o dado único sobre que se debruçaria o filosofar. E também disto resultaria, se não a aniquilação do filósofo, pelo menos a redução dele à insignificância do quase nada de que poderia dar conta.


Por outro lado, a situação da civilização e cultura mundiais actuais parecem levantar mais dúvidas e problemas, agora tinentes às realidades de facto e já não às teorias. Com efeito, quem é que hoje se lembraria de recorrer a um filósofo para resolver a crise energética ou o esgotamento de recursos do planeta? Platão, se agora viesse propor a cidade dos filósofos como ideal da política mundial ouviria a colossal gargalhada dos cinco continentes. E não é pelo complexo de inferioridade dos filósofos ou por terem caído em descrédito: é que tal proposição seria completamente descabida, abstrusa. Não é tarefa da filosofia enfrentar nem solucionar nada daquilo, nem pretender governar o mundo alçada a pelouros de poder. O cientista e o técnico é que estão vocacionados e têm instrumentos capazes de resolver questões daquele jaez e efectivamente é a eles que em todo o mundo se recorre para talhar saídas nos impasses. Ora, isto agrava o sentido da questão jamais satisfatoriamente respondida: para que serve, afinal, a filosofia? No fundo, não é mesmo para nada? Então porquê manter tal coisa?


O pendor tecnocrático da linha de rumo da civilização actual é tão brilhante, tão rico de novidades admiráveis, tão inesgotável de recursos e surpresas, tão eficaz no encaminhamento de quanto se propõe alterar e reordenar que indubitavelmente nada nem ninguém pode contestar-lhe o lugar e a função, a não ser para piorar tudo. Pergunta-se que legitimidade então pode ter a pretensão de contrapor-lhe outro conhecimento e outro modo de intervenção tão universal quanto aquele como seria o caso da filosofia. Não seremos vítimas de megalomania? Não andará por aqui uma vontade de poder escondida numa frustração inconfessada, a precisar de psiquiatria e não de legitimação?


Hoje em dia são os cientistas e técnicos que saem a terreiro contra o cientismo e a tecnocracia reinantes na cultura, a requererem urgentemente que alguém perito na matéria os ajude a alterar o rumo da história, os valores porque a humanidade se vem regendo, o perfil humano de ser e situar-se perante o planeta, o Cosmos e a sociedade. Basta recordar os sucessivos relatórios-apelos do Clube de Roma. São aqueles, aliás, que dada a demissão, impotência e alheamento generalizado dos filósofos em todo o mundo, e porque os problemas lhes estoiram ameaçadores e inelutáveis nas mãos (e não é apenas o nuclear, nos múltiplos pendores que hoje reveste) tentam desajeitadamente entrar neste domínio e clarificar alguma coisa na nebulosidade reinante acerca do destino da humanidade, do porvir e das modalidades convenientes de convivermos e nos repartirmos o mundo e as responsabilidades. Curiosamente, cada vez mais, nomes insignes, Prémios Nobéis e quejandos, apelam explicitamente para que os filósofos acordem e corram em socorro do homem antes que seja tarde demais e os cataclismos se tornem inevitáveis. Significativo também que Linus Pauling, Szenty-Giorgii, Konrad Lorenz e tantos outros sejam hoje muito mais ouvidos e divulgados (e eles próprios insistam) nas intervenções acerca do sentido da vida e rumo da humanidade do que no respeitante às investigações científico-tecnológicas que mundialmente os celebrizaram. Não é, aliás, alheio a isto o facto de obras filosóficas como as de Roger Garaudy ou de Julián Marías se venderem em múltiplos países tanto ou mais que os romances de grande pregão.


Começam a generalizar-se à escala mundial aspirações a outras mensagens que não já as espectacularidades da ciência e técnica, tanto mais quanto se vai alargando a consciência do infantilismo de se ficar boquiaberto perante um mero efeito de luzes que a descoberta pura e simples é desde que se não questiona da vantagem ou desvantagem humana daquilo nem, menos ainda, de que modo poderá favorecer ou destruir a felicidade de cada um e de todos. Pior ainda, é doravante iniludível que as mais graves ameaças à sobrevivência e qualidade da vida humana hoje em dia decorrem directamente da obra do cientista e do técnico, bem como da irracionalidade de os termos há séculos entronizado como deuses inquestionáveis e infalíveis, senhores absolutos do nosso destino, como se foram automaticamente beneméritos da humanidade. Eles e não o filósofo é que deflagraram a bomba atómica, a de hidrogénio e a de neutrões; eles e não o filósofo é que armaram o genocídio de duas Guerras Mundiais e têm agora o braço pronto para o apocalipse definitivo da terceira; não é o filósofo mas eles que vêm poluindo os mares, os rios e o ar que respiramos, que andam desertificando todos os continentes com deflorestações maciças e imparáveis; não é ao filósofo mas a eles que urge imputar o esgotamento energético do planeta bem como o esbanjamento insensato dos recursos naturais, todos em vias de findarem no prazo de menos dum século; não é responsabilidade do filósofo mas deles que a população mundial exceda em breve em termos absolutos a capacidade alimentar total do planeta e dia a dia aumente em milhões o número dos mortos de fome endémica e respectivas sequelas, no que não pode deixar de considerar-se o maior desastre da história da humanidade, pior ainda que as mortandades das conflagrações mundiais (quando, até agora, o alimento produzido no mundo basta e sobeja para alimentar toda a gente, desde que repartido com equidade); não é culpa do filósofo mas do cientista-técnico que a economia mundial sofra desequilíbrios e crises devastadoras e cada dia mais perigosas e insolúveis, uma vez que os sistemaas de exploração, produção e consumo à escala internacional decorrem de revoluções industriais sucessivas directamente dependentes de descobertas científico-tecnológicas e respectiva implementação automática, irracional, sem qualquer análise dos efeitos delas a curto, médio e longo prazo nas relações entre povos e culturas bem como nas possibilidades de realização das pessoas, comunidades e regiões sobre que se repercutem. A lista, porém, poderia continuar indefinidamente. Em tudo e por todo o lado constatamos a miséria humana dos produtos da ciência e tecnologia e a ameaça fatídica que hora a hora mais constituem.


Os primeiros gritos de alarme, aliás, por virem daquela área mesmo e por derivarem dos mais ilustres mentores dela são ainda mais iniludíveis e inequívocos. Estamos mesmo encurralados enquanto civilização, enquanto humanidade e enquanto história. Não há futuro para nós no rumo em que estamos indo e enormes cataclismos se perfilam no horizonte de que cada dia menos se antolham desvios que nos não afundem noutros piores ainda. É urgente mudar de caminho.


A primeira tarefa do novo itinerário é destronar a ciência e a técnica da função condutora da história que insensatamente lhes foi deixada há séculos. Isto implica o fim do dogma da sua pretensa indiscutibilidade: o facto de atingir verdades (relativamente) objectivas não implica que seja disto que precisamos para darmos um sentido à humanidade. Pelo contrário. O trajecto humano e seus valores definem-se noutro domínio do saber; nada têm a ver com a área dos objectos sensíveis da ciência-tecnologia senão depois de definidos (ou então antes de o irem ser, ao anotarmos os problemas que do mundo sensível nos atingem enquanto pessoas).


Feito isto, lado a lado poderemos então complementar-nos, com achegas de ambos os pendores da experiência humana total. A partir daqui, o objectivo inadiável é o de conseguirmos definir opções tão motivantes que reencaminhem a humanidade, nas quais se encarnem e reconheçam os valores mais significativos para o homem de hoje, nas respectivas culturas, povos e continentes, até solicitarmos, suscitarmos e atingirmos o empenhamento livre de cada pessoa, como ideal final a aproximar. Evidencia-se então o projecto actual do filosofar que em tal contexto genérico é rigorosamente, no conteúdo, o de sempre. Trata-se de abordar a interioridade de tal modo que, primeiro, se consiga precisar aquilo em que ela consiste, nas faculdades, potencialidades, limitações, funcionamentos, distorções, debilitações e desenvolvimentos que, por aquilo que representarem em cada aspecto e caso, mais determinantes se revelem para fundamentar, numa segunda linha de intervenção, propostas de orientação e posicionamento frente à conjuntura histórica actual (pessoal, colectiva e mundial). Relativamente à investigação filosófica da tradição, neste primeiro patamar de trabalho, apenas uma novidadde: não é indiferente estudar um ou outro aspecto da vida interior, como até hoje ocorreu, como decorria dum filosofar destinado a ratificar a ordem estabelecida e a perenizá-la (filosofia do poder, da classe dominante, da sacralização da tradição); doravante a selecção e prioridades não decorrem daquela função conservadora inconsciente que o filósofo milenarmente exerceu, a oriente e a ocidente, mas antes do desafio do porvir e dos inesperados que nele havemos de erigir, se queremos ter um amanhã; também não é da revolução, de fanatismos ideológicos, políticos ou religiosos ou quaisquer outros apriorismos que o filósofo pode extrair qualquer critério de prioridades ou premências, uma vez que todos estes são ainda e sempre conservadorismos fechados à novidade, ao inesperado, ao inovamento, à revisibilidade permanente e indefinida e, pior ainda, não descobriram que a única possibilidade de universalizar a proposta da filosofia é o alargamento gradual da área do consenso livre das pessoas, comunidades e povos, tendendo à universalidade planetária (utópica mas sempre aproximável).


Esta primeira zona de investigação é, todavia, propedêutica à mais decisiva: a descoberta de valores e respectivas hierarquias e consequentes propostas no domínio das éticas para todo o âmbito da acção – pessoal, familiar, comunitário, político, económico, artístico, religioso e assim por diante, em todas as dimensões em que cada pessoa, grupo ou organização se projectem. A multiplicidade de campos de investigação e o seu desdobramento nos dois níveis referidos abarcam, de facto, tantas realidades quantas as do universo perceptível da ciência-tecnologia e mais ainda todas as faculdades e respectivas facetas da intimidade do sujeito, bem como toda a região de pronúncia duma delas, a vontade, com que se inaugura a liberdade e a criatividade que lhe corresponde e cuja projecção de novo abarca toda a região anterior bem como todo o objecto sensível, quer dizer, envolve por inteiro a área de investigação do cientista e do técnico.


Não podemos senão afirmar que o filósofo, no seu pretenso pequeno resto, afinal, reencontra e tem de retomar, para além disto que já não é nada diminuto em si, a realidade inteira sob a forma da vivência de tudo pelo sujeito em análise. O filósofo tem de estudar a subjectividade enquanto tal mais quanto nela encontra: ora, o que afinal ali detecta, sob o modo subjectivo, é rigorosamente tudo, tanto as dimensões da interioridade como a interiorização da exterioridade. Tudo mora, afinal, dentro de nós. Doutro modo nem sequer da nada haveria notícia, nem para o filósofo nem para ninguém: e o cientista também não teria objecto. Onde este o encontra como realidade externa, o filósofo também com ele depara interiorizado no sujeito.


Temos agora de concretizar como isto decorre e as modaliades que reveste em cada domínio da interioridade para que o trajecto e o programa do filosofar comecem a vislumbrar-se em concreto.




A VIVÊNCIA COMO UNIVERSO



a) O íntimo e o corpóreo


A interioridade tem profundidades diferentes, relativamente ao Eu que a vive e é a única instância capaz de a constatar (através da consciência aonde a vivência a faz aparecer). Desde logo pode haver dimensões da vida interior inconstatáveis em virtude de o Eu não estar constituído ou apenas se afirmar de modo insuficiente, débil. É o que ocorre na criança durante a primeira infância. A psicologia animal apenas pode ser experimental em virtude da mesma incapacidade: nenhum irracional conseguiu até hoje afirmar-se como um Eu e falar dele próprio como intimidade. Entretanto, o que ocorre no desenvolvimento contínuo, sem cortes, na criança, leva-nos a presumir a existência da realidade interior em experiência existencial anterior ainda inapreensível porque o Eu se não constituiu e, portanto, a consciência explícita de si é impossível. De algum modo, esta situação de partida mantém-se insuperável em termos radicais durante toda a vida da pessoa, uma vez que a vivência ( enquanto apreensão consciente da interioridade de si próprio) jamais consegue esgotar o seu objecto de pesquisa tanto em extensão como em profundidade. É por isso que a psicanálise, a psicologia analítica se revelam decisivas como ajuda ao doente emocional para ele ser capaz, com a ajuda exterior, de fazer luz na obscuridade fugidia do que lhe ocorre no íntimo e respectivas contradições, a fim de lhe refazer a unidade afectada. Mesmo, porém, nestas circunstâncias, há uma infinidade de enigmas por solucionar, uma mole de realidades por detectar e clarificar neste pendor da experiência não sensível, para cada sujeito como para toda a humanidade: o dado também aqui (como na área perceptível) revela-se inesgotável tanto mais quanto mais se desvenda.


Sob este aspecto, a consciência do sujeito encontra-se perante um objecto de conhecimento que lhe aparece no âmbito da experiência da existência, que o atinge não pela via dos sentidos mas pela da vivência, o saborear da intimidade pessoal. Para a consciência que recebe as informações a este nível, porém, o problema é o mesmo: dar conta da realidade que lhe é comunicada, independentemente do canal por que lhe chega, seja o do exterior ou o do interior. Os dados precisam rigorosamente do mesmo tratamento: identificá-los, classificá-los, descrevê-los, registá-los, compará-los e, quando for caso disso, interligá-los para entre eles descortinar eventuais nexos de causalidade. Apenas divergem os recursos para conseguir isto: tudo tem de processar-se numa análise dentro do sujeito, uma vez que o investigador não dispõe de acesso a outro campo de realidade interior senão o seu próprio, jamais conseguirá ser o Eu doutrem mas apenas o de si mesmo. Isto impede não apenas a experimentação repetível pelos demais mas também a escolha doutros locais mais propícios ao labor. A interioridade não ocupa espaço, não tem lugar, vive onde a pessoa está sem ser nenhum aspecto desta localização (embora se viva no corpo que cada um tem e é).


A primeira tarefa do conhecimento filosófico é a de dar conta do domínio da interioridade através de juízos de realidade: trata-se de constatar o que é, como funciona, para que serve, que limitações estruturais e conjunturais revela, que aptidões de desenvolvimento manifesta e que conexões entre si se conseguem constatar e de que tipo são (determinismo, sincronismo, associação, contradição...). Isto terá de ser feito relativamente a cada dado do mundo interior e a qualquer dos seus inúmeros aspectos: a razão e respectivos níveis, o conhecimento e respectivos processos, os conteúdos cognitivos e respectivas áreas, a egoidade e as funções e articulações dela, a vontade, com os componentes, antecedentes e consequentes, os valores e correspondentes hierarquias, a liberdade enquanto faculdade e os tipos de opção, a actividade enquanto dimensão íntima, a afectividade com as raízes e desenvolvimentos que manifesta, e assim por diante. O trabalho reflexivo aqui em nada se distingue do da ciência senão pelo que as características do objecto lhe impõem: uma diferença de métodos - aqui a vivência (reflexão crítica da consciência sobre os dados vividos, seleccionados e reordenados na experiência existencial), acolá a experimentação (reflexão crítica sobre os dados perceptíveis seleccionados e reordenados no mundo exterior). Os resultados finais também se não distinguem quanto ao tipo dos conhecimentos a este nível alcançados: são sempre juízos de realidade que identificam, descrevem, comparam, classificam os dados em estudo e explicitam as conexões causais que entre eles se descobrirem. Em qualquer caso, também aqui estamos num universo de factos consumados, é ainda o reino do determinismo, tal qual o da ciência. Neste primeiro campo de abordagem, com efeito, mesmo a vontade, a liberdade bem como a egoidade (o facto da existência dum eu na pessoa, como dado real a conhecer) fazem parte das incógnitas que se têm de desvendar ainda apenas enquanto realidades que se apresentam como tais à consciência, autónomas frente ao conteúdo que nela se configura. A própria consciência, enquanto faculdade a ser desvelada por ela mesma, se desdobra e ante si aparece como um facto independente do auto-analisar-se e como tal tem de ser estudada e conhecida.


Aqui, portanto, ainda não interferem juízos de valor nem actividades decorrentes deles: estamos perante dados determinados que urge compreender como tais, mais nada. Como já tudo está feito, são o que são e é isto que o filosofar pretende apreender. O cientista não se propõe outra coisa perante os respectivos dados da experiência empírica. Os pressupostos lógicos, num caso e no outro, são os mesmos: o que é, é e não pode ser e não ser simultaneamente no mesmo sentido (lógica formal) e, por outro lado, tudo tem uma razão suficiente para ser o que é, a respectiva causa, o que implica que o Universo é determinado, em qualquer que seja o sentido (lógica material) e tudo se processa num jogo indefinido de tensões de contrários com sucessivas reequilibrações geradoras de novos conflitos e recomposições interminavelmente (lógica dialéctica). Todos estes pressupostos subjazem tanto à tarefa do cientista como do filósofo, nesta primeira área de abordagem do domínio deste (constituindo simultaneamente a tomada de consciência das leis da razão, como dado fundamental e fundante do filosofar, tanto quanto funda a ciência). E em ambas as pesquisas têm exactamente o mesmo sentido quanto ao estatuto atribuído ao dado de investigação.


Diremos o mesmo, obviamente, quanto aos trabalhos interdisciplinares das ciências humanas em que se trate de clarificar as correspondências e discrepâncias e o mútuo condicionamento e determinação duma pela outra: uma vez que ambas assentam nesta plataforma, o encontro de ambas não lhe muda o sentido e alcance enquanto se não introduzirem outros planos de abordagem e referência.


Com efeito, o domínio existencial não fica esgotado com aquele levantamento: à dispersão dos objectos que ali se encontra, contrapõe-se a descoberta e efectivação da tarefa do Eu – a interminável tentativa e reformulação da unidade do universo interior, tanto do ponto de vista cognitivo como prático. Não se trata já de desvendar a egoidade como facto mas de realizá-la enquanto projecto que é e vocação de totalização de todas as componentes da pessoa (íntimas e corpóreas). Ao penetrarmos neste nível já nos não bastam juízos de realidade, um novo parâmetro tem de ser ponderado: o da adequação de cada dado (interior ou exterior) ao intuito unificador do Eu. Entramos no domínio dos juízos de valor, sem paralelo na área da ciência. Trata-se dum posicionamento da egoidade perante si própria e perante tudo, desde as restantes dimensões da interioridade a todo o universo exterior, a começar no próprio corpo que dele participa e nele exerce a função de charneira entre os dois pendores da experiência completa. O Eu situa-se como polo de referência de tudo e tudo pretende ordenar em função de si próprio, reconstruindo o universo inteiro em dialéctica permanente de projecto e realização. A este nível, portanto, já o âmbito do filosofar excede o da ciência-tecnologia, por natureza e de modo absoluto, uma vez que a valoração enquanto acto ocorre exclusivamente a nível da vivência, é uma opção do eu no segredo da própria intimidade. Deste acto resultam efeitos perceptíveis (comportamentos, atitudes, motivações, regras, costumes, organizações...) que vão dando corpo aos valores propugnados, afirmando-os. Neste contexto, enquanto fenómenos perceptíveis, são abordáveis experimentalmente. Entretanto também aqui a ciência mais não pode fazer que dar conta dos factos, isto é, elaborar juízos de realidade, constatar os dados e respectivos determinismos. Quando sai fora deste âmbito e se abalança a pronunciar juízos de valor, então uma vez mais violou a fronteira do domínio dela e anda, em nome da ciência, a fazer filosofia (a não ser que proceda a trabalho interdisciplinar, o que requer que se não confundam os processos de validação – experimental ou vivencial – de cada tipo de análise).


Finalmente, decorrente de tudo isto, vem o derradeiro plano do filosofar, abordagem última da interioridade, de que tudo o mais é preparatório: o uso da liberdade. Neste domínio, cada Eu vai posicionar-se frente a si, à interioridade, à exterioridade, ao universo da egoidade como ao da corporeidade ( e através deste a todo o mundo sensível), assumindo-se como criador de todos os valores e respectivas prioridades, em projectos e nas execuções, como demiurgo potencialmente universal. A pessoa tenta reconstruir-se, reconstruindo no mesmo trajecto a humanidade inteira, recuperando a temporalidade e a história, projectando no espaço-tempo o sonho que a anima e, por intermédio do corpo próprio, retomando as rédeas do universo sensível para lhe introduzir a ordem e função que dele pretende. Aqui, o filósofo persegue a interioridade já não como facto, da ordem do determinismo tal qual o dos objectos perceptíveis, mas antes surpreende o íntimo, a derradeira fronteira da área vivencial em que por via do Eu, usando com discernimento a liberdade e a criatividade, através da vontade pessoal, o agir incarna os valores e as opções éticas que no imo se vão tomando e, por esta via, se inaugura um outro universo cuja instância determinista fundamental se não encontra no pendor sensível da realidade, mas antes no vivencial. Noutros termos, aqui o filósofo, levando a investigação dos valores como criações do eu até ao fim, restabelece a ponte com a área do cientista, desvelando em tudo quanto é perceptível a marca dum sujeito enquanto reordenação do universo sensível em função do projecto dele. No mesmo passo, o filosofar reencontra a mesma recriação na interioridade enquanto gradual reconversão do interior em íntimo, do alheio ao eu (mas tão vivencial quanto ele) no que o realiza, lhe é submisso e cada vez mais pura transparência dele.


No termo, o que o filosofar constata é que ao nível dos juízos de valor o pano de fundo é que a egoidade intenta reunificar exterioridade e interioridade de modo a que, idealmente, ambas as faces da experiência lhe espelhem o projecto de universal harmonia na universal manifestação-fusão de todas as coisas e potencialidades. Em frase-limite: que tudo seja um. E esse um, o eu em tudo e com tudo nele – não apenas em conceito mas em realidade total, corpórea e íntima. Seria a absoluta comunhão de todos através de tudo com todos, na transparência-vivência de Eu com Eu, o Nós tornado realidade concreta e abarcando o Universo inteiro em ambas as dimensões. A utopia última que nos empurra no derradeiro plano de cada Eu, jamais atingível, jamais eliminável: nunca superada, portanto, como também nunca consumada. É por isto que somos história e não mera evolução anónima; somos cultura e não apenas um mero feixe de instintos. Criamos o tempo e determinamos-lhe as malhas; não somos meros joguetes ao sabor da correnteza. Filosofia e ciência-tecnologia são duas armas decisivas com que laboriosamente nos temos multissecularmente entregue à tarefa: duas amigas irreconciliáveis, duas inimigas inseparáveis. O projecto da pessoa fica à partida ameaçado de raiz quando uma delas desaparece da arena – tal é a situação hoje em dia, em virtude da marginalização e descrédito do filosofar desde o fim do séc. XVIII.


Depois de tudo, porém, não teremos de afirmar que urge restaurar a missão do filósofo apenas para recuperar a liberdade humana? Não é, afinal, desta que decorre a criatividade, os valores, as decisões éticas com os respectivos ideais incarnando projectos, abrindo as portas ao porvir? Tudo o mais não estará, senão deslocado no filosofar, pelo menos impertinentemente hoje em dia, dadas as urgências inadiáveis que o iminente colapso do planeta nos impõe?



b) O determinismo e a liberdade na empiria e na existência


Um dos erros mais constantes dos filósofos, perante a indefinição nunca até hoje superada do respectivo objecto e método de trabalho, foi o de se refugiarem na área cujo tipo de saber é inabordável pela experimentação, a da liberdade. Isto, porém, vai-se revelando incrivelmente ambíguo, pois a liberdade pura não existe à escala humana, como referimos, tudo o que experimentamos é um gradual e doloroso processo de libertação pessoal e colectivo, pejado de anfibologias em que permanentemente o que à primeira vista simulara ser libertador afinal se demonstra escravizante, em que as manifestações livres se revelam ao fim como determinadas. O cientista, aliás, encarregou-se de estudar as sucessivas pretensas zonas de liberdade e descobriu determinismos de que se entretecem, condicionamentos em que se resolvem. Obviamente que, a partir daqui, mais os filósofos descreram de si próprios e respectiva função e o cientismo, com o respectivo exclusivismo triunfalista conquistou novas camadas de adeptos.


O equívoco decorre sempre de que o sujeito não pode assumir jamais a liberdade fora do próprio corpo e respectivo contexto sócio-cultural e cósmico, todos eles feixes de determinismos, como toda a área do mundo perceptível é. Mesmo quando nela falamos de indeterminismo, no âmbito da microfísica: também aqui usamos necessariamente a matematização dos dados, o determinismo absoluto que a matemática é ainda quando sob a forma de cálculo de probabilidades. A interferência do sujeito e da construção que ele faz da experimentação neste domínio, mudando com isto os dados em causa, é apenas a introdução duma outra instância de determinismo (do ponto de vista do cientista), a da intervenção da vontade livre do investigador (a interioridade do ponto de vista do filósofo), como atrás já referimos. O que ocorre é estarmos de novo perante uma área interdisciplinar a requerer (e a suscitar de facto já) os dois tipos de abordagem, correspondentes aos dois vectores da experiência que aqui se cruzam: a experimentação e a vivência, o cientista e o filósofo, porventura reunidos na mesma pessoa (como cada dia mais tende a ocorrer). Apenas é urgente que se clarifiquem e distingam os dois títulos sob que avançam as pesquisas de modo a atribuir e aguardar de cada qual o que lhe compete e evitar dar como comprovável o que é insusceptível de prova experimental, bem como a não ter como inexperimentável o que afinal o é. Tais são os dois vícios até hoje permanentemente a corroer o labor e as obras dos peritos que tentam clarificar esta região, hoje tão decisiva do saber.


Algo idêntico ocorre, aliás, no domínio das matemáticas puras, a ponto de já nem sabermos se a lógica matemática é filosofia ou ciência e, portanto, tal disciplina acabar por constar de ambos os currículos. Diríamos que tal ramo do conhecimento dá o golpe de misericórdia na pretensão da autonomia do labor filosófico. Com efeito, a lógica foi desde Aristóteles a disciplina filosófica onde todos os que se sentiam inseguros e ameaçados iam ancorar. Foi durante milénios a pedra angualr do edifício da filosofia, a única inamovível, indiscutível, de algum modo acabada em cada fase do respectivo desenvolvimento. Agora vem a matemática e redu-la a um jogo de fórmulas com a precisão de qualquer outro ramo desta área. Quer dizer, recuperou-a para a ciência; a filosofia fica reduzida, afinal, a nada que não sejam vaguidades, discursos desconexos e vários acerca de coisa nenhuma e, ao fim e ao cabo, para nada. É onde vieram acabar muitos émulos do filosofar, perdido o rumo e o norte.


Ora, o que ocorre na matemática (e mormente na disciplina referida) é rigorosamente o que acima reportámos para a microfísica, apenas em contexto diferente. Como ciência que é, a matemática situa-se no domínio dos objectos perceptíveis, no caso o das quantidades, tomadas em si próprias independentemente de qualquer outra faceta da realidade em que sejam eventualmente apreendidas. Como as quantidades são aqui abordadas enquanto puras, para serem comprovadas experimentalmente por terceiros têm de estar representadas em símbolos convencionais (definições, axiomas, postulados) cujo alcance quantitativo é dado à partida por escolha e organização livre e arbitrária em grande parte do investigador (como qualquer outro objecto de pesquisa em toda a ciência). Aqui apenas funciona o limite dos fins visados pelo cientista, como em todas as demais opções dos peritos. Estabelecido o objecto com a forma perceptível convencionada bem como os pressupostos com que pretendemos abordá-lo (as condições da experimentação são aqui o conjunto de primeiros princípios sob que pretendemos desenvolver a dedução) o que o matemático faz é submeter à prova hipóteses de interpretação da quantidade em causa e respectivas propriedades mediante os princípios a que a sujeita e verificar se se confirmam ou infirmam através da reflexão, como em qualquer outro domínio experimental. A demonstração matemática é exactamente o mesmo, para a reflexão crítica, que a comprovação factual em laboratório ou em campo: segue acolá como aqui o fenómeno perceptível nas sucessivas mutações que nele decorrem mediante os condicionamentos observáveis a que a experimentação o submete. Não há mais lógica num caso que no outro, não se investe mais razão no primeiro que no segundo, é rigorosamente a mesma operação da mesma faculdade que está em causa. A diferença situa-se, não a este nível, mas a outro: o do grau de abstracção a que o fenómeno perceptível foi sujeito. As demais ciências criam na experimentação condições de abstracção que não requerem a ausência das coisas em que determinados e precisos aspectos estão sujeitos à prova experimental; na matemática o grau atingido, o da pesquisa da quantidade pura, não é compatível com a presença de nenhum dado eventualmente portador do tipo de quantidade sob análise, pelo que temos de figurá-la, torná-la perceptível, num sinal convencional (figurativo e linguístico). Tudo o mais, a partir daqui, é idêntico, até o resultado final: com efeito, se a dedução matemática é absoluta, tal decorre do grau de abstracção do objecto sobre que opera e por isso mesmo aquilo é relativo aos pressupostos de que parte. Neste sentido é identicamente objectivo e universal o conhecimento de qualquer outro ramo da ciência: apenas não conseguimos aqui esquecer que o dado investigado tem inúmeros mais aspectos que aqueles que investigámos pelo que podemos caminhar indefinidamente mais longe, deixando de abstrair deles; na matemática esquecemo-lo facilmente, uma vez que, por definição, o dado não tem mais aspectos que os que decidirmos significar pelo símbolo adoptado (apesar de tudo as potencialidades de criação dedutiva mesmo neste contexto, nunca com segurança podemos afirmar que se esgotaram).


Numa palavra, há apenas muito mais interferência do sujeito na matemática que nas restantes ciências no que toca à construção do objecto a investigar (se quisermos: no isolamento dele) bem como na definição das condições a que o vai submeter (descoberta duma metodologia experimental). Neste sentido é evidente que o investimento da interioridade antes e durante a criação e operação matemática é maior que noutra área científica: e nisto há muito mais empenhamento do vector apenas analisável filosoficamente do que o que podemos constatar noutra área de pesquisa experimental qualquer. Mas nada de confusões: não é a matemática construída ou a construir que têm a ver com a filosofia – isto é ciência sem mais, perfeita e rigorosamente perceptível e comprovável por quenquer; é objecto do filosofar apenas a operação vivida do abstrair (independentemente do produto-fórmula a que chegar ou não), o intuito íntimo do cientista que o leva a buscar a criação matemática, o acto criador na faceta interiormente saboreada, tantas vezes incrivelmente exaltante (e não nas exteriorizações em que eventualmente incarnar, todas experimentalmente abordáveis). Donde decorre que a lógica matemática é ciência e nunca filosofia, enquanto a lógica (que se pode matematizar) é filosofia e nunca ciência, sempre que seja a razão agindo-se naquilo que é e que dela podemos ir conhecendo através da vivência que cada um de nós dela tem no interior vivido de si próprio.


De tudo o que acabamos de explicitar decorre que o determinismo (assente no princípio de identidade segundo o qual tudo o que é, é, e aquilo que é não pode ser o nada nem outro ao mesmo tempo e no mesmo sentido; e, se é o que é, só o pode ser por uma razão suficiente para o obrigar a ser o que é, quer dizer, uma causa, o que significa que tudo é forçado a ser necessariamente como é, está determinado em última instância, doutro modo nem existiria, seria outro ou então nada), o determinismo, pressuposto da ciência, está afinal presente tanto no objecto perceptível como no vivencial pelo que o filosofar não pode prescindir de o constatar quando pretende conhecer a realidade da interioridade (ela também é o que é e é-o por qualquer motivo – a começar por estes mesmos princípios com que se estrutura a razão). Por outro lado, apenas a egoidade pode afirmar a liberdade. Quer dizer: há uma faculdade, na área do objecto filosófico, que, sendo em si o que é e estando, portanto, determinada como todos os demais objectos do conhecimento (sejam da ciência ou da filosofia), tem em si o poder de parcialmente se afastar dos determinismos e de alterá-los, gerando novos sentidos, linhas de rumo inéditas neles. A liberdade desvia-se do determinado, não lhe obedece cegamente, à excepção da sua própria constituição (que se lhe impõe de modo absoluto: estamos condenados inelutavelmente à liberdade) para afinal mergulhar nele de novo, apenas com uma novidade – a de o reordenar, orientando-o em função de projectos, ideais que o Eu assume e protagoniza. A liberdade origina um sobredeterminismo. Ora, uma vez isto em curso, ocorre a reorganização da interioridade que, por sua vez, se corporifica (tudo o que decorre no íntimo tem uma qualquer manifestação perceptível no próprio corpo) e, através da corporeidade, penetra em todo o universo sensível, qualquer que seja o aspecto. Uma vez transposto o umbral, reencontramos também assim a liberdade através de expressões perfeitamente experimentáveis e a ciência pode investigá-la e dar conta da especificidade deste aspecto da sua prossecuçãpo: a tendencialidade das leis em ciências humanas é uma manifestação dos desvios introduzidos pela liberdade e não uma insuficiência experimental, por exemplo. Apenas ocorre que aqui a libertação aparece mergulhada na corrente dos determinismos como rumo que eles tomam ou inflexão a que tendem – é um outro determinismo ainda.


É erróneo, portanto, afirmar que a ciência estuda o determinismo e a filosofia a liberdade: ambas têm de dar conta dos dois princípios, cada qual no respectivo domínio com o método que apenas a ele é adequado, sob as modalidades em que em cada um tais princípios se revelam.



            c) Projecto filosófico e projecto científico enquanto abrangendo o todo


No meio da crise de identidade da filosofia, vulgarizou-se, tendendo à banalização, defini-la como o saber do geral. Não é alheia a isto a proposta suicida do positivismo que lhe atribuía a função de definir os princípios gerais da ciência. Tarefa obviamente estranha a qualquer filosofar, a não ser que se interprete como escolha e delimitação dum objecto e método de investigar, uma vez que (e tanto quanto) são um acto interior e livre do sujeito, antes e ao mesmo tempo que se manifesta no universo perceptível – pois na forma em que aqui aparece é da área científica e o filósofo não tem nada que analisá-lo sob tal aspecto. Se entenderem como princípios gerais os sistemas e as teorias científicas, impossíveis de experimentação directa em virtude de abarcarem uma incomensurável vastidão de fenómenos ou a totalidade deles (como na teoria da relatividade, por exemplo) é óbvio que isto nada tem a ver com o universo de dados do filosofar, mas com o da ciência. E se revela a impotência do cientista e as limitações do experimentalismo no seu próprio campo, nem por isso muda de domínio: continuamos aqui a tentar dar conta do mundo sensível, muito embora de modo mais precário mas apesar de tudo, em virtude das descobertas experimentais de base que permitem confirmações indirectas, ainda assim muito mais seguro e crítico que o da experiência empírica. Aliás, a atribuição de tal área à filosofia decorreu mesmo da intenção de preservar a ciência de qualquer falibilidade e insegurança, atirando-a para o caixote do lixo do filósofo: a imagem e função deste aparecem assim completamente degradadas, em nada mais dignas que o mero senso comum, uma vez que a este se faz acrescer uma vaga análise crítica inconcludente, aleatória.


No sentido mais vulgarizado, porém, o saber do geral engloba duas componentes que, apesar de imprecisas e quase irreconhecíveis, afinal são profundamente significativas e identificadoras do filosofar. A primeira é a de que o filósofo é uma pessoa cuja cultura geral abarca tudo: sabe sempre algo acerca do que quer que seja. É claro que, num sentido imediato, isto é mero enciclopedismo: quem conhece tudo não abarca nada a sério, em profundidade, precisão e eficácia. É um linguajar aparentemente brilhante, para plateias que deliram com ouropéis e fantasias, porque no momento em que se pretenda pô-lo à prova revelará a sua vacuidade. É o filósofo de salão e que apenas aqui pode brilhar; se vier à rua fica gripado, não tem resistências que aguentem a contraprova dura da vida em terreiro.


Uma segunda componente englobada na filosofia como saber do geral é a de que neste domínio se desvendam os grandes princípios unificadores do conhecimento e da inumerável dispersão dos objectos a que este se reporta. De algum modo, a intuição persegue através disto o fio condutor da vida e da humanidade que tanta segurança dá a cada um e aguarda-lhe a revelação da área da filosofia. É evidente que não há discriminação bastante no vulgo para distinguir que o rumo indicado pelos princípios gerais tanto se encontra na filosofia como na ciência: naquela reportado à interioridade do sujeito, nesta referido à exterioridade do Universo, sob a forma, em ambos os domínios, de sistemas e teorias integradores de subconjuntos de conhecimentos parcelares anteriores. A visão panorâmica permite-nos dominar sobranceiramente os dados em cada área particular e integrá-los harmonicamente entre si e connosco. É nítido, entretanto, na definição vulgarizada, a confusão da abordagem científica e da filosófica e a atribuição do todo à filosofia, o que nos remete à tese atrás já criticada do positivismo.


Para além da imprecisão, porém, neste contexto de sentido aponta-se para um aspecto decisivo da filosofia e respectiva função: de facto filosofar tem a ver com tudo, sob a modalidade da interioridade do sujeito. Como também a ciência se reporta a tudo, sob a forma da exterioridade perceptível que tudo inelutavelmente comporta. Agora, porém, o alcance totalizador tem uma conotação diferente: é que nenhuma área da experiência (empírica ou existencial) escapa ao método de abordagem de qualquer das duas perspectivas de investigação, de tal modo que, onde há um objecto de experimentação ali há também um de vivência e onde topamos com um aspecto da interioridade aqui igualmente lhe podemos indigitar uma exteriorização perceptível qualquer. Noutros termos, não há na realidade nenhum objecto puro da ciência nem da filosofia: o objecto puro apenas existe no conceito tal como o explicitámos. Na experiência, o que sempre encontramos, sem qualquer possibilidade de excepção, são dados com um perfil perceptível e outro vivencial, não há um único caso em que façamos a experiência apenas dum dos lados. Muitas confusões decorrem de não se compreender esta estrutura do universo cognoscível, em virtude de serem fáceis certas abstracções nalgumas áreas de pesquisa, tanto científicas como filosóficas, nas quais prescindimos por sistema de abordagens por um dos métodos, bastando-nos com o conhecimento atingido pelo outro. Mas nem por isso o objecto de ambos deixa de estar fatalmente presente sempre, embora desprezado pela pesquisa.


Concretizemos, começando pelo que normalmente mais difícil é de apreender pelo senso comum. Trata-se de identificar a dimensão interior dos fenómenos da área físico-química e astronómica. É um erro de perspectiva o que impede de descobrir o evidente: quando falamos aqui em interioridade, a tendência vulgar é imaginar que dentro de cada pedra, rio, astro e assim por diante existirá uma misteriosa realidade interna que nos escaparia absolutamente e que o filósofo perseguiria magicamente. Apontando para aqui, evidentemente que o resultado ou é a poesia ou o ridículo. Filosofia é que é inviável elaborar em tal caminho, por ausência completa de qualquer objecto para investigar.


Entretanto, é fácil detectar a dimensão interna do Universo físico e cósmico (como, aliás, de todas as demais componentes do mundo sensível). Efectivamente, o que logo ressalta é que só conseguimos ter notícia do rosto perceptível da realidade quando, pela percepção, a interiorizamos e dela tomamos consciência. Ela só é algo para nós porque entrou no nosso mundo interior, porque a vivemos dentro de nós em determinao momento do fluir existencial. Isto é, a exterioridade só entra na nossa experiência a partir do instante em que adquire uma dimensão interior num sujeito qualquer, que mais não seja a mera constatação da percepção. Se nem sequer lhe apareceu na consciência, em qualquer que seja a representação e se a ninguém tal ocorreu, tal realidade para a humanidade não existe de forma absolutamente nenhuma (por muito que possa, obviamente, existir em si mesma, só que não encontrou forma nenhuma de acesso ao nosso horizonte de experiência). Nestes termos, todo o universo físico, químico, corporal e cósmico está necessariamente dentro da nossa consciência sob a forma de representação que não comporta aspectos perceptíveis mas vivenciais. Tal é a primeira dimensão de interioridade do universo da ciência. Reveste, porém, outras componentes no interior do sujeito. Desde logo, solicita a afectividade: não há percepção que se não faça acompanhar dum qualquer tónus emocional, desde a indiferença até ao entusiasmo e que, a partir daqui, não mergulhe raízes nas camadas mais fundas do afecto, do sentimento à opção valorativa até aos ideais mais inefáveis. É a segunda dimensão da interioridade do mundo sensível. Finalmente, a irrupção desta na vida do Eu, afectando-lhe e alterando-lhe a consciência (como faculdade em desenvolvimento e como conteúdo cognitivo nela disponível), atingindo-lhe as pulsões e motivos, mobilizando-os, ameaçando-os ou bloqueando-os, vai repercutir-se na egoidade enquanto estrutura e função integradora, unificadora, alargando-lhe o âmbito de intervenção e estimulando-a a crescer em si e a aumentar o respectivo poder sobre a totalidade da experiência empírico-existencial. Tal é a terceira dimensão da interioridade que o mundo perceptível reveste no sujeito. Por fim, para levar a bom termo a tarefa de construção da pessoa como unidade complexa potencial da universalidade do real, o Eu reformula os respectivos valores, as prioridades entre eles, a ética daqui decorrente, retraçando em conformidade o respectivo projecto de ser e realizar-se, estabelecendo um estatuto, função e interligação qualquer para os dados perceptíveis em causa. Isto é, implanta um protocolo de relações mútuas entre a interioridade e a exterioridade, em termos de viabilizar cada vez mais e melhor o ideal do Eu que impõe a tudo a sua vocação demiúrgica. Tal é a última dimensão da interioridade que o objecto da ciência reveste, desafiando a pesquisa do filósofo.


Em conclusão, não há dado perceptível nenhum que, ao entrar no horizonte de qualquer pessoa, não revista, por esse mesmo facto, inelutavelmente, a faceta da interioridade. Se a não reveste é porque não é perceptível e, portanto, não é objecto de estudo nem para a ciência nem para a filosofia. Se o é para aquela, então necessariamente o é também para esta. Pode é não ter qualquer interesse investigá-lo numa ou noutra das perspectivas, mas isso é outra questão. Potencialmente tem de estar fatalmente disponível para ambas as abordagens ou então não o está em absoluto para nenhuma delas.


Pode perguntar-se agora, não havendo dado experimental que não seja simultaneamente e por isso mesmo vivencial, se a inversa será verdadeira. Quer dizer, não haverá nenhum fenómeno interior que escape a toda e qualquer manifestação perceptível?


Teremos também de afirmar que não. Nunca foi possível encontrar tal dado. O que ocorre é haver operações e faculdades da experiência existencial cuja componente perceptível é tão insignificante ou subtil que é despiciendo ou difícil preocuparmo-nos com ela. Uma meditação profunda deixa o corpo em repouso mas, embora à primeira vista possa identificar-se ao sono, um electroencefalograma denuncia diferenças, um electrocardiograma também, do mesmo modo a endocrinologia e assim por diante. Uma reflexão acerca dum problema intrincado implica enorme actividade interior e, entretanto, corresponde-lhe vulgarmente uma concentração e abandono passivo do corpo que parece situar-se nos antípodas daquilo: uma pesquisa mais atenta constata, todavia, que a actividade do sistema nervoso e o equilíbrio hormonal sofrem com as vicissitudes do que acolá ocorrer, a par e passo. Poderíamos alargar indefinidamente os exemplos que sempre depararíamos com o mesmo: toda a realidade tem uma face interior e outra exterior, uma perceptível e outra vivencial. Não há em domínio algum um único dado cognoscível que escape à lei e pertença apenas a um dos lados do Universo. Isso aboli-lo-ia automaticamente do horizonte humano. É que, assim como o perceptível que ainda por ninguém foi percepcionado ainda não entrou na fronteira da experiência humana, nem para a ciência nem para a filosofia, assim o existencial que jamais foi vivenciado também nunca entrou no horizonte apreensível da humanidade, é como se não revestisse realidade de tipo nenhum, é um nada para nós, por muito que por si possa subsistir e aí ande aguardando a irrupção em nosso mundo. Quando, porém, tal ocorrer, dar-se-á num sujeito com um corpo e necessariamente se repercutirá neste e, através dele, em todo o universo sensível. Mesmo que um Eu mantenha uma vida interior sem corpo (após a morte e não só: alguns fenómenos psi e percepção extra-sensorial), ainda aí ou recupera um suporte corpóreo onde tal de qualquer maneira se apoia e transparece necessariamente ou então sai definitivamente de nosso horizonte cognoscível e uma vez mais para nós não conta, é um nada mesmo no âmbito da experiência existencial, em rigor.


Com isto chegámos à fronteira duma nova problemática: é que ciência e filosofia (e respectivos objectos e métodos) apenas contam enquanto são criados por nós e para nós. Fora disto não podem ocorrer, ter justificação nem sentido. Tudo é, afinal, projecto humano, quer dizer, itinerários para a plenitude do Eu em todos e cada um. Fora desta matriz nada subsiste em domínio algum. É o que teremos de analisar.






O EU E O ELE – DISCURSO DO SUJEITO E DISCURSO DO OBJECTO



a) O lado subjectivo do objecto perceptível


Filosofar é necessariamente criar linguagem. Como estamos no reino do discurso, após séculos de crise de identidade, compreende-se que o vulgo tenha deixado de encarar a sério este labor e que os peritos de qualquer domínio quando muito o tolerem como entretenimento inócuo para horas livres e descontracção de lazer. Sempre estes, com efeito, deixaram à filosofia o papel de ginasticar a imaginação e desafiar o intelecto como qualquer outro quebra-cabeças, com a vantagem de aqui se colocarem problemas quase inimagináveis, dum preciosismo inultrapassável. Em todo o caso, nada de sério estaria em causa, e se prescindirmos da filosofia em nada ficamos a perder. É claro que esta atitude generalizada, com o correspondente não tomar a sério o filósofo (como profissional e até como pessoa – é tido por um lunático inofensivo!) se deve não apenas à imprecisão até agora reinante acerca do objecto e método do filosofar, mas mais ainda à impertinência, até ao anedótico, dos problemas que tradicionalmente coloca e em que vive emaranhado. Hoje em dia o cientista ri-se quando alguém lhe pergunta se aquilo que está submetendo a experimentação existirá ou não; ou se o conhecimento lhe vem por iluminação divina, por imposição dos dados, por criação do intelecto ou é uma segregação dos neurónios. O descrédito de tais tipos de questões, a alienação delas frente ao que nos importa e urge compreender e ordenar é de tal ordem que há disciplinas inteiras da filosofia hoje caídas em desuso por já ninguém ter sequer paciência para aturar-lhes o dispautério: a teodiceia e a ontologia são as mais desacreditadas e a lógica acompanha-as de perto.


Relativamente a tal estado de coisas temos de clarificar dois aspectos. Antes de mais, a caducidade de algumas temáticas não quer dizer que os respectivos problemas tenham perdido o sentido. O que perderam foi actualidade. Deixaram de ser sentidos como importantes hoje em dia, tornaram-se mais ou menos indiferentes para a generalidade das pessoas e, em particular, para os estratos de que mais depende a dinâmica da civilização, da cultura e da história presentes: os cientistas, os técnicos, os quadros da indústria das comunicações, do comércio, os dirigentes políticos, os artistas de maior relevo e projecção mundial... Quando desta área nos vêm apelos ao filosofar as temáticas são doutra ordem: estatuto e função da ciência e da técnica e respectivos limites e riscos; opções ético-políticas e sociais que rasguem caminhos ao porvir; prioridades a implantar no domínio dos empenhamentos na investigação e respectivas aplicações, em termos de aproximar e estreitar laços no mundo; novos relacionamentos a estabelecer com a natureza, o Cosmos e a História que nos evitem cataclismos sem retorno; e assim por diante...


Um segundo aspecto que convém clarificar para entender a alienação do filosofar contemporâneo é o facto de até agora o grande recurso do investigador e do professor desta disciplina ter sido a história da filosofia. Ora, com mais de dois milénios de tradição, este manancial tem extensão e peso bastante para obnubilar o único objecto possível de análise: a interioridade do sujeito, nas riquezas, conflitos, sonhos e frustrações individuais e colectivos, à escala dum povo ou do mundo inteiro, na actualidade e em função de todos os tempos. A verdade, porém, é que os filósofos a pouco e pouco se esqueceram e transformaram o que poderia e deveria ser um precioso auxiliar para levar a tarefa a bom termo (o fruto do trabalho dos outros) no território a desbravar. A partir daqui, mais não têm feito do que glosar-se mutuamente, ensarilhando-se uns nos outros, perpetuamente à roda deles próprios, cada vez mais alheios a si mesmos em genuína autenticidade, à vida ambiente, às angústias humanas de que afinal partilham impotentes. E o esforço dos que os precederam na tentativa de abrir clareiras na noite interior, em vez de os beneficiar, permitindo-lhes pontos de referência que melhor e mais longe lhes viabilizassem o desbravar de caminhos, porque se deixaram aprisionar por eles, distorce-lhes a visão e a sensibilidade, encurralando-os num reduto em que tendem a funcionar em circuito fechado, em perda gradual de energia e interesse por inércia e desvitalização multissecular. No fundo, o erro consiste em não constatar que o problema de antanho, por não perder legitimidade, não garante com isto a continuidade da premência que obrigou a enfrentá-lo em determinado momento histórico. Este erro acumulado milenarmente resulta em que os filósofos continuam a discutir hoje o mesmo que há três milénios e isto, obviamente, já saturou toda a gente, é um disco definitivamente gasto, que urge atirar para a lixeira da história. Como, por outro lado, só se tendem a considerar legítimos os temas ancestralmente consagrados, tanto mais quanto lhes tenham emprestado vigor nomes famosos, marcos miliários da cultura e da humanidade, temos a alienação consumada e sem recurso: nenhum humilde sujeito, ignoto e ignaro, se acha à altura de com aqueles poder ombrear, já é mesmo uma grande auto-promoção ter voz para repeti-los e reverentemente lhes queimar o incenso da vida própria e da razão que nem se atreve a encará-la, tão banal, corriqueira e frustrante lhe vai sendo.


Eis como, nesta trajectória, a filosofia veio tendendo a tornar-se anti-filosófica e o filósofo, de libertador (salvador o pretendia Sócrates), num alienado. Nada disto é exagerado quando olhamos o que ocorre em nossas escolas e nos programas de filosofia do mundo inteiro: é a normalização, a imposição geral do mesmo discurso e conteúdo em função de referenciais históricos imediatamente identificáveis. Jamais, em caso algum, deparamos com a solicitação à irrupção do Eu em discurso autónomo e pessoal, mesmo quando tal explicitamente ainda se diz pretender como meta derradeira. O instrumental é tão pesado, tão determinado; os mentores tão escravos, tão impotentes para dar um passo pelos próprios pés, sem se agarrarem à mão segura duma grande autoridade; a descrença geral de que outra experiência possa neste domínio brotar anda tanto no ar que respiramos que é tolice imaginar sequer que a alienação não vai tão longe. De facto e em rigor, ela é praticamente tudo o que hoje ocorre no âmbito da filosofia: tanto nos filósofos que pretendem filosofar como nos educadores que intentam iniciar nela as novas gerações.

O peso da história asfixia-nos de tal maneira que não há lugar para ouvirmos o gemido que estrangulamos no íntimo nem o coro de terrores que abala o mundo. Daí que as filosofias contemporâneas sejam anémicas, dessoradas, carregadas de ingenuidades e infantilismos sem horizontes, refugiadas em místicas e poéticas envergonhadas e, em todos os casos, mais ou menos estranhas às questões que vitalmente nos importa resolver e encaminhar. É que os próprios filósofos continuam com a atenção desviada do que é mais relevante hoje em dia e, quando vão conseguindo dar conta de algo que com isto se aparenta, ainda aí as teias de aranha dos avós lhes empecem a agilidade mental: anda tudo trôpego. Ou só há reflexões sobre a ciência que terminam em academismos divertidos mas inconsequentes em termos práticos. Ou então apenas dissecam o interior da individualidade isolada e resultam hinos maravilhosos que nos deleitam mas, tudo espremido, não alteram nada nem ninguém e assim por diante. A caquexia dos avós tolhe-nos os pulmões, empesta o ar, não há fôlego em nada do que nos brota das mãos, andamos a pedir desculpa por existirmos.


Não se trata, porém, de abolir a históriaa da filosofia, mas antes de a reduzir à função ancilar que em todo o lado pode prestar: ajudar a explicar o que somos, onde estamos e porquê, o que nos permitirá ficar prevenidos quanto ao que melhor convirá para os rumos do porvir. Isto é muito, mas só isto não é o fundamental e decisivo. É da auscultação da interioridade e dos ecos que aí toda a vida individual, comunitária e a conjuntura mundial fazem ribombar que deve resultar o programa a levar a cabo pelo filosofar. Foi assim, aliás, que sempre procederam os maiores: e só atingiram os altos cumes, ao contrário do que temos andado a incutir uns aos outros, porque tiveram a coragem de assumir-se o mais autentica e profundamente que foram capazes, assumindo com isto a história própria que é a do tempo, cultura e civilização de que partilhavam. A inteligência, por ela apenas, jamais os teria sequer tornado audíveis, quanto mais luminares. Quando as transformações da humanidade levaram a que o luzeiro deles deixasse de alumiar, urge retomar-lhes o caminho e não a filosofia. Esta fica disponível para o que der e vier e apenas deverá haver recurso a ela tanto quanto possa vir a ajudar a clarificar algo no contexto da problemática de aqui e agora, na vida real enfrentada. Outra função seria alienatória.


A maior dificuldade para cumprir isto deriva dum equívoco generalizado na nossa cultura: a dicotomia sujeito-objecto. Ora, como atrás referimos, não existe dicotomia mas unidade necessária de ambos os aspectos. Trata-se, não de duas realidades, mas das duas faces de qualquer realidade. Não há dado nenhum para o conhecimento, afecto, vontade ou acção que não seja simultaneamente subjectivo-objectivo, vivencial-perceptível, como não há pessoa humana alguma que não seja fatalmente eu-corpo. Isto não quer dizer que se afirme a impossibilidade hipotética de haver uma realidade com apenas um dos rostos, mas que, se tal existir, estará por isso mesmo necessariamente fora do horizonte captável da existência humana e, portanto, para nós, é rigorosamente o mesmo que se não existir de todo: nada tem a ver connosco nem nós com ela. Não nos atinge de forma nenhuma nem nós a alcançamos de nenhuma maneira, como já vimos: é um zero e, como tal, em nada nos pode importar, senão para divertimento do imaginário, inocente e inconclusivo.


O discurso do Eu, o sujeito falando de si próprio na primeira pessoa (como tem sempre de ser o do filosofar) toda a gente o entende e legitima como tal (mesmo que lhe não encontre interesse) quando incide na vida interior da pessoa, ainda mais quando se reporta ao íntimo do Eu único e insubstituível de quem fala, e crê-se mesmo erroneamente como via exclusiva para penetrar no imo da liberdade, com respectivos valores, opções e ideais (já vimos que a ciência também o faz). Onde tudo se complica é quando se trata de legitimar a abordagem subjectiva (filosófica) do objecto perceptível do cientista-técnico. Persistentemente, a visão dicotómica da experiência, transposta como dicotomia da realidade, torna incompreensível a interioridade do universo perceptível. Julgam uma intromissão ilegítima do filósofo qualquer leitura que ele pretenda avançar relativamente àquele domínio. Consequentemente, é requerido ao cientista-técnico que autonomamente dê conta da respectiva coutada sem intromissões alheias que pretensamente lhe desvirtuariam a tarefa e a solidez do conhecimento e das aplicações que constroi. O resultado é dia a dia mais evidente: o desastre. Efectivamente, a ciência e a técnica, sem rei nem roque, funcionando inconscientes e acríticas face aos resultados humanos, culturais e históricos (na dimensão das interioridades atingidas, esmagadas, afectadas ou ameaçadas), impotentes para analisar fora do âmbito das dimensões sensíveis dos fenómenos, quando muito suspeitando que a experiência comporta outra perspectiva que por natureza lhes escapa ao método de pesquisa, arrastaram-nos hoje em dia à beira do holocausto. Os mais perspicazes dos seus émulos tentam mudar de campo e metodologia e são os filósofos ingénuos e hesitantes de que já falámos, com os olhos espantados ante a novidade do universo que, quando saltam a fronteira, se lhes desdobra adiante, mas inermes para desbravá-lo por impreparação, inexperiência e manifesta imperícia. Vale-lhes a boa vontade e honestidade. Engrandece-os a coragem de calcar aos pés o tabu e violar o dogma dualista. O erro da nossa cultura é o mesmo em ambas as partes do discurso filosófico: nem o objecto da primeira, a área do Eu, pacificamente acolhida em todo o mundo, é afinal exclusivamente interior (e portanto não é só abordável pela vivência), nem o da segunda é apenas exterior (e portanto não é apenas atingível experimentalmente). Os dois aspectos estão inelutavelmente presentes em todo o dado. Nós é que damos prioridade a uma ou outra das abordagens, de acordo com os ideais e projectos que a humanidade resolve protagonizar em cada momento da história.


A ilusão da dicotomia decorre, afinal, duma projecção: atribuímos ao objecto o que afinal não passa duma estrutura do sujeito. O objecto é uno, nós é que temos duas vias diferenciadas de o apreendermos e não conseguimos apenas por uma delas dar conta da totalidade dos aspectos a que podemos aceder. Ora, assim como não afirmamos que o que vemos constitui um universo da realidade diverso do que ouvimos e este do que palpamos e assim por diante, também igualmente não podemos sem idêntico erro de transposição pretender que a realidade que percepcionamos é uma e a que vivenciamos é outra. Interioridade e exterioridade são duas categorias para identificar os nossos sistemas de recepção (e o que eles podem captar) e não dois universos do real. A mesma ilusão nos tem levado a dividir a pessoa que cada um de nós é, manifestamente uma só e a mesma durante a existência inteira, em dicotomias de corpo e espírito, pensamento e extensão e quejandas, quando afinal o que ocorre é que somos uma unidade incindível, apenas não conseguimos abordar-nos por inteiro, no que nos for acessível, com o mesmo tipo de receptores, mas somente através de duas perspectivações complementares da mesma e únivca realidade que somos (e que, até no mais insignificante dos respectivos elementos constituintes, as comporta necessariamente a ambas, como tudo o mais em qualquer domínio da experiência).




b) O lado objectivo do sujeito vivencial


A leitura dicotómica da realidade não dificulta apenas o encontro filosofia-ciência na área do objecto dominantemente abordado pela experimentação. Com efeito, o facto de ser aqui desprezada a análise da interioridade, se resulta duma acumulação de preconceitos, dum deslocado triunfalismo positivsta e duma cegueira relativa ao aspcto não perceptível do objecto em causa, quando nos reportamos à região complementar e às pesquisas filosóficas nela predominantes deparamos com idênticos exclusivismos. Os riscos que deles derivam não são menos ameaçadores que os do outro pendor.


O primeiro preconceito decorre da leitura restritiva segundo a qual a interioridade pessoal é eminentemente individual e de tal modo privada que nada tem a ver com outrem nem com qualquer realidade doutro tipo. É daqui que decorrem os discursos filosóficos que pretendem isolar a vida pessoal numa redoma antitética ao mundo, sociedade e demais dimensões da experiência. Processos de reencontro consigo que requerem a abolição da corporeidade e universo perceptível como instâncias de perdição. Então a ética resultante é de fuga e isolamento, um solipsismo pretendendo o contacto directo, íntimo dos espíritos sem mediação de qualquer tipo. No limite, tais leituras andam paredes meias com algumas experiências místicas (ocidentais ou orientais) do despojamento total, da morte para a comunhão consigo, os outros e Deus. Nesta via, a matriz do mal situa-se no corpo-matéria-cosmos (é um platonismo filosófico e um maniqueísmo-masdeísmo religioso). As leituras apocalípticas da purificação final pelo fogo são variantes do mesmo campo.


As limitações de tal perspectiva são várias e todas elas suicidas. Desde logo, o isolamento do sujeito dentro de si próprio e a correspondente leitura de que toda a cedência às manifestações corporizadas seria por natureza irremediavelmente alienatória. É óbvio que tal interpretação, para além de completamente arbitrária (nada justifica que a interioridade seja mais nobre e digna que a exterioridade), ignora a transposição que está fazendo dos aparelhos receptores para os dados, atribuindo a estes o que, afinal, é próprio daqueles e nada tem a ver com os objectos a pesquisar (a vivência e a experimentação são do sujeito, não do dado, este apenas se revela abordável pelos dois ângulos, mantendo-se um só e o mesmo sob qualquer das análises), mas ainda cai inelutavelmente no pessimismo: com efeito, não há pessoa sem corpo, assim como não há subjectividade que se não corporifique, por mais subtis que sejam as tentativas de isolar um só dos lados da experiência. Condenadas ao fracasso, tais tentativas, confrontadas com o juízo de valor apriorístico de que tudo o que é perceptível é matriz de perdição, é indignidade, só lhes resta um caminho – a libertação pela morte (na pretensão da crença religiosa de que aí possa sobreviver-se ao corpo ou então de que se aniquile de vez a irremediável condenação de sermos necessariamente, em todos os domínios e sob todos os ângulos, vivência perceptível e percepção vivenciável). A aniquilação dum aspecto é aniquilação de ambos, no horizonte da experiência humana não podemos matar o corpo mantendo-nos em convívio com o Eu que nele vive, que ele também é quando apreendido do outro ângulo.


Mas se o isolamento solipsista desta leitura se quebra (doutro modo nem teríamos notícia de tal filosofia, uma vez que os autores nem a comunicariam para não caírem em contradição a nível dos factos, porque isto já é corporizá-la), as propostas admitem então apenas a corporificação bastante para não sossobrarem vítimas do próprio pressuposto em que assentam. Admitem então comunicar perceptivelmente (palavra, escrita, acção corpórea) mas a suspeita sobre esta cedência não a retiram: o ideal continua a ser a vida interior, tudo o mais seria um condicionamento insuperável mas sempre negativo. Desejar-se-ia ter outra natureza, outra estrutura de ser que pudesse tornear o obstáculo fatal. Daí as fugas místicas, as meditações de vários tipos, a frugalidade miserabilista, o jejum e o castigo das paixões, o sofrimento físico e moral como ideais purificadores, o comunitarismo monástico, meio termo entre a recusa e o acatamento: tudo isto tem por pano de fundo dominante a busca do espírito puro, a absoluta interioridade, ser-se Deus na pureza do conceito. Apenas aqui já se não cai na ilusão da respectiva possibilidade à escala humana, muito embora a leitura dicotómica da pessoa continue a ser o pano de fundo de tais tentativas de reordenar a vida. Aqui o suicídio fica adiado mas a morte é ainda uma libertação, a vida um vale de lágrimas, a existência não tem qualquer interesse senão enquanto pode um dia ser morta. Tudo é orientado em função de bem morrer: bem viver não significa, neste contexto, nada diverso e muito menos contraditório daquilo. Quem por aqui segue não é mais, ao fim e ao cabo, que um cadáver adiado. É um defunto ambulante: perante ele tudo perdeu realidade, valor e sentido. Não há nada a fazer senão esperar à beira da campa uma vida inteira. Esta, de facto, é apenas um erro, irremediável, um desperdício que muito melhor seria se nem sequer tivesse de modo nenhum ocorrido. É uma inutilidade e um ludíbrio, mas inevitável: uma estupidez da natureza, numa palavra.


Além do erro dicotomista da leitura da experiência, há nestas propostas um pressuposto de valoração a condicionar uma ética que, uma vez corrigida a dicotomia do real, não tem mais qualquer base de apoio. Com efeito, a desvalorização do mundo perceptível desvaloriza por si, sem mais, a interioridade, dado que não há dois universos mas apenas um que nós apreendemos por duas vias diferentes. Ou se valoriza inteiro ou se desvaloriza, não é possível cindir as duas faces da medalha sem a aniquilar, nenhuma delas subsiste por si como sendo um princípio independente do outro. Nós nem sequer podemos, aliás, jamais descortinar se o dado é bifronte ou não em si mesmo. Não podemos rigorosamente dele apreender nada independentemente do nosso acto de o captar; fora deste (na experiência empírica ou na existencial) nada há para nós, entramos no domínio do imaginário, do sonho, do delírio a que corresponde um completo vazio de ser e realidade; apreendendo o dado, recebemo-lo sob a forma em que os nossos canais de captação dele conseguem dar conta e não noutra qualquer. É impossível, evidentemente, evitar este condicionalismo de partida e a limitação que impõe ao nosso conhecimento de tudo (conhecemos fenómenos, aquilo que transpõe o limiar da consciência e jamais as coisas em si como forem fora das modelações da nossa captação).


A maior ameaça, porém, decorre doutro efeito de desvio. É que se não aceita com facilidade que o sujeito tenha as dimensões do infinito e, conseguintemente, não é admitido que se projecte em todo o mundo perceptível, social, planetário, cósmico, histórico, abarcando inclusive o tempo passado, presente e futuro. Ora, após o que atrás já precisámos, é óbvio que cada indivíduo pode potencialmente desencadear os ideais de reorientação de tudo (que constituem o seu projecto de afirmar-se livre como um Eu) sem qualquer espécie de limitação. E o que é válido para cada um é-o para cada grupo e para a humanidade inteira. Normalmente, a dificuldade é correlativa da que pretende preservar a coutada do cientista e do técnico, ignorando contraditoriamente que para fazerem o que fizerem eles têm de assumir-se interiormente em tais funções e com tais projectos, movidos por valores e sonhos que lhes garantem a qualidade ética do que preconizarem. Ora, tudo isto é filosófico e não científico. Dá é frutos na área científica, é o fio condutor destes. Nem por se pretender ignorá-lo deixa de lá estar impreterivelmente.


Muitos, contudo, compreendem que tudo tem de estar interiorizado no sujeito sob pena de nem se ter notícia de tal, mas ficam por aqui. Como representação mental na consciência é fácil de constatar que todos os dados têm de estar; também tal forma não levanta dúvidas de que é de características vivenciais: a consciência não tem em si dimensões perceptíveis (não tem tamanho, cor, cheiro, contextura, som, temperatura...). O infinito sob esta forma (seja o do espaço ou o do tempo ou qualquer outro), cabe inteiro em cada um e não ocupa espaço nem tem dimensões. Como a vivência disto todos a temos e é facílima de reproduzir-se arbitrariamente, até admitir isto ainda é fácil muitos irem. Já não ocorre o mesmo quando pretendemos que onde está a consciência do Eu está este inteiro, como unidade perenemente buscada de tudo com tudo e todos. Já é difícil fazer compreender que o afecto, a liberdade, a vontade e o agir se envolvem por inteiro nesta interiorização de tudo no sujeito, movimentando-se, alterando os respectivos equilíbrios, projecções e funções, reposicionando o sujeito frente a qualquer dado novo, atribuindo a este funções, valor e sentido inéditos e levando-os a mútuas interferências. O mais fácil de admitir neste contexto é a atitude individual solitária, sem se tomar consciência da contradição que está presente nesta pretensa solidão: com efeito, tudo está em tudo e com tudo tem a ver (por diminuto que seja o alcance), como cada um está interiormente em todos e tudo, assim como todos e tudo estão em cada um. E isto é tanto assim que nem sequer conseguimos que possa ser doutra maneira. Não somos livres para evitar tal modo de sermos: o de nos relacionarmos sem fronteiras. Queiramo-lo ou não, estamos condenados a ter em nós, sob o modo da interioridade, a infinidade incomensurável do universo perceptível e toda a respectiva temporalidade; bem como o mundo perceptível (humano, planetário e cósmico sem qualquer limite) não consegue evitar que, desde que um único Eu nele irrompa, sobre todo ele se expanda e o abarque e domine irremediavelmente no seu projecto de comunhão infinita.


O desvio mais estranho a esta leitura ocorre com quantos, eventualmente arrebatados por tal estrutura de si próprios e de todo o universo sensível, acabam por interpretá-la em termos poéticos como uma metáfora. Sugestivo, extasiante, mas mera figura de retórica. Incapazes de compreender (ou suportar) o que implica isto de a temporalidade inteira ser afinal uma dimensão de cada sujeito, dada a potencial perpetuidade e incomensurável profundidade rumo ao passado e ao futuro, sentem vertigem e refugiam-se num desvio que lhes esvazie de sentido o que afinal descortinaram, tornando-o comportável à respectiva pequenez e frustração.


Ora, o que acontece é que cada um de nós contém de facto tudo e todos em si, sem qualquer trucagem. O que não é fixo nem seguro é o peso, função e evolução de cada parte no conjunto, para tudo isto ir ficando conforme ao projecto unificador do Eu. O que é difícil de aceitarmos é que traímos necessariamente o mais profundo de nós próprios, por impotência cronicamente insuperável, covardia e erro. Para nos tornar esta sina tolerável inventamos poesia: mas mesmo esta nos empurra para a comunhão, fusão harmónica universal de todos com todos e tudo, tendendo no fim a sermos um só – meta jamais consumada e jamais esquecida. Impossível de afastar do horizonte porque é impossível não ter horizonte: nós somo-lo. E outro não temos: este impõe-se-nos, queiramo-lo ou não. Não há fuga possível, portanto.


Podemos apenas fechar os olhos ou fazer negaças: no fim, sobranceiro, o Eu ergue-se-nos diante, irremediavelmente. E ele é este projecto.


c) A dialéctica de ambas as abordagens como palavra-acto criador do projecto humano


A filosofia é sempre um discurso na primeira pessoa, o Eu que fala e que fala de si em todas as dimensões em que interfere, quer dizer, tudo, na perspectiva da interioridade em que o apreendemos. Se, tomada em si própria, a egoidade (o facto constatável de se ser um Eu) é apenas uma estrutura entre muitas outras de que podemos dar conta na área da experiência existencial, a verdade é que, quando através da vivência a estudamos acuradamente logo descortinamos que esta estrutura é unificante, quer dizer, organiza por referência a si tudo o mais, no íntimo e no exterior concomitantemente. A filosofia torna-se, assim, parte do projecto do Eu: uma vez que a interioridade apenas é vivida pelo próprio e somente lhe tem acesso consciente, através da pesquisa da vivência, o sujeito que a vive, se não houver comunicação, esta área cognitiva fica irremediavelmente selada na privacidade pessoal, irremediavelmente inacessível a outrem. Ora, é a filosofia que rompe o cerco, transgride a fronteira. Como discurso oral ou escrito, de forma espontânea ou crítica, ela dá conta da realidade e da ordem interna vislumbradas em si próprio por alguém e endereça-se a quem pretenda conferir tal tipo de dados pelos mesmos juízos de realidade e valor. O leitor ou ouvinte é solicitado a voltar-se para dentro de si, por sua vez, a tentar confirmar ou infirmar a justeza do que lhe é proposto como constatação do que é e do que deverá vir a ser no interior dele próprio. E apenas a obtenção do consenso destes é aqui correspondente ao acatamento universal da descoberta científica, quer dizer, trata-se aqui do acordo de subjectividades e não de objectividade. Não é um mal ou uma limitação, pelo contrário. Se nesta área houvesse objectividade então é que os sujeitos estariam abolidos, os Eus teriam sido esmagados, as pessoas seriam máquinas com uma dimensão exclusivamente exterior: já não haveria humanidade. É o suicídio pela ciência, hoje em curso.


Ora, se o Eu é o demiurgo universal que mora dentro de nós e que, queiramo-lo ou não, seremos sempre, realizando-lhe o projecto em maior ou menor grau, então o primeiro valor, ordenador estrutural de toda a axiologia e pedra angular da ética, terá de ser o de abrircaminho à egoidade em cada um e todos, de modo a viabilizar-lhe o itinerário. Nestes termos, jamais o ideal fundamental do conhecimento poderá ser a objectividade mas antes o consenso: é que mesmo aquela só é justificada por este, porque lhe aceitamos consensualmente a pertinência e utilidade. No dia em que isto se desfizer (e para quem até hoje nunca lhe aderiu), por muito objectivos que sejam os conhecimentos científicos não terão nenhum interesse e serão votados ao desprezo e porventura condenados, não por inválidos mas por ameaçadores ou inadequados às pessoas e ao que pretenderem.


Por aqui se constata já que a leitura da interioridade sem fronteiras vai mexer mesmo com tudo e obrigar a reordenar, forçosamente, não apenas cada um frente à vida imediata e circundante, mas a civilização e cultura em que embarcámos, a história que fazemos (ou deixamos que nos façam), o rumo do tempo que vivemos (ou em que nos deixamos ir gradualmente asfixiando). Tal é a tarefa do filosofar hoje em dia (como sempre), agravada pelos séculos de alheamento frente à experiência histórica da humanidade. Isto redunda aqui e agora em desvios colossais e erros colectivos de tal ordem que doravante sobrevivemos à beira do abismo, com uma constelação de bombas a voar-nos sobre a cabeça, o planeta na iminência de esgotamento, a humanidade condenada ao colapso dentro de duas ou três gerações, a não ser que até lá se consiga força para implantar outros caminhos: novas escalas de valores, outra ética pessoal e colectiva nos rumos da economia, da política, das relações com a natureza e o Cosmos, bem como no conteúdo e função do amor e da vida e sua propagação.


As marcas da filosofia, leitura da interioridade no que é e no que deve vir a ser, com a correspondente prática transformadora a partir do íntimo que se organiza, ordena, unifica e polariza todo rumo à consumação em plenitude do projecto que o mobiliza e por inteiro promete realizar-lhe as potencialidades e anseios, tais marcas, se se tornam aqui notórias, não o são menos no âmbito perceptível da experiência empírica. Com efeito, desde logo o comportamento manifesta corporalmente a revolução em curso, para além de múltiplas reequilibrações fisiológicas ( tónus muscular e emocional, teor endócrino, tensão arterial, ritmo cardíaco...). Mas pelo corpo o sujeito domina tudo no universo sensível. Ocorrem então reestruturações de relações familiares e humanas, reformulações do trabalho (na relação com os bens e serviços e respectivas tarefas de produção, troca e consumo, bem como no encontro com o labor dos outros, qualquer que seja o estatuto), mudanças de atitude frente à cidade, ao País e ao mundo (a nível cívico, cultural, sindical, político...). Em resultado disto o rosto do mundo empírico começa a transformar-se: alterações na natureza (com explorações de recursos naturais em pedreiras, minas, cursos de água, florestas, bem como com construções de fábricas, moradias, vias de comunicação, ordenação de culturas, criação de gados...), alterações na sociedade (com reordenamentos de agregados, redes de serviços, mecanismos legais e funcionais, padrões de relacionamento e comunicação, transformações de tradições e costumes...), e alterações na pessoa (modas, civilidade, aptidões e destrezas psico-motoras, níveis de educação e cultura...). E ainda, em consequência, novas mudanças no íntimo de cada um: alargamento de conhecimentos, novos afectos, novas subtilezas valorativas, voos inesperados da criatividade e apostas inéditas da liberdade, outros quereres e consequentes reajustamentos do agir. E, a partir deste ponto, retoma-se o ciclo doravante novamente de modo predominante na perspectiva empírica da realidade. E assim indefinidamente, rumo ao infinito que será a consumação em plenitude do projecto mais radical da humanidade: um homem novo em novos céus e numa terra nova. É nisto que andamos envolvidos, tenhamos ou não consciência de tal; e nem conseguimos ser doutro modo porque é isto que por estrutura somos inelutavelmente. Podemos assumi-lo ou não, podemosm traí-lo ou pervertê-lo, até podemos bloqueá-lo (suicídio individual ou genocídio até à destruição da vida); em todos os casos estamos ainda a funcionar com a mesma estrutura e na sua dinâmica, para bem ou para mal.


No diálogo ciência-filosofia há, entretanto, duas ambiguidades que convém clarificar e que resultam do modo de encarar as zonas de fronteira. Em primeiro lugar, o discurso filosófico, por ser uma explicitação no mundo perceptível duma leitura da interioridade, pode ser correctamente assumido, por parte do leitor, tanto na perspectiva interior (e será um diálogo entre filósofos) como na da exterioridade manifestada e constatável por quenquer (e teremos uma abordagem no plano empírico, do pendor da ciência). Neste caso estão estudos linguísticos das obras filosóficas, pesquisas sociológicas, psicológicas e psicanalíticas, bem como análises históricas, de antropologia cultural... Com efeito, a expressão filosófica é tão perceptível como qualquer objecto do mundo sensível e, como tal, perfeitamente abordável pelo método experimental. O conhecimento daqui derivado reporta-se a aspectos perceptíveis do discurso filosófico e não à vivência de que partiu e que solicita no leitor enquanto busca o assentimento universal dos sujeitos. De qualquer modo é preciso não confundir as duas perspectivas de leitura: numa, a filosófica, eu vou conferir na minha interioridade os factos reportados, os valores e os projectos para verificar se me sinto identificado com o filósofo nas suas leituras e propostas a partir do íntimo; na outra, a científica, eu vou conferir os dados perceptíveis do discurso (os livros, as palavras...) para verificar se estão de acordo com as hipóteses de análise, como em qualquer outra experimentação (aqui nunca me ponho a mim próprio, enquanto me vivo a mim mesmo intimamente, sob inquirição).


Correspondentemente, o discurso científico igualmente é susceptível de ser encarado sob os mesmos dois ângulos. Acolhido enquanto interpretação de dados perceptíveis é confirmável experimentalmente e redunda no domínio cognitivo dos aspectos em causa, prolongando-se pelo domínio tecnológico deles com maior ou menor eficácia. É óbvio que este lado da leitura é de tal modo dominante e tão prestigiado que quase não se consegue dar conta de que o leitor pode fazer uma leitura totalmente distinta. É o que ocorre quando se pretende encontrar na mensagem científico-tecnológica o sujeito que a produz, clarificando os pressupostos e aspectos do intelecto com que operou, os valores a que deu prioridade, as opções éticas que ali pretende corporificar, a coerência ou não da actividade efectivada com isto e se tudo pode ou não justificar-se pela vivência que temos de nossa interioridade. Esta perspectivação é tão desconcertante para o cientista enfronhado na pesquisa do perceptível e tão convicto da respectiva exclusividade que, não raro, perde a voz quando é questionado por este ângulo. Ficou famosa a conferência dum físico atómico americano, Prémio Nobel, numa Universidade parisiense, em que os estudantes apenas o interrogaram sobre a sua posição frente ao aproveitamento bélico das descobertas dele, sobre quem é que lhe pagava quanto para quê e se eram estes os valores por que ele se pautava na vida e assim por diante. O ilustre Prémio Nobel abandonou a sessão totalmente desorientado e foi incapaz de fazer a conferência. A exterioridade (as partículas) dominava ele, mas estava por inteiro desarmado perante si próprio e a posição que interiormente andava tomando naquele domínio como em toda a vida profissional. Entretanto, tudo isto decorria do que constava das respectivas obras e consequentes aproveitamentos e aplicações tecnológicas. A leitura é que foi feita pelo ângulo da interioridade, foi uma leitura filosófica daqueles dados, à primeira vista exclusivamente perceptíveis.


Em conclusão, do ponto de vista do autor, filosofar é o Eu falando de si na primeira pessoa; criar ciência-tecnologia é falar do objecto perceptível que é outro que não o sujeito que dele fala e, portanto, é um discurso na terceira pessoa. Do ponto de vista do leitor, qualquer destas expressões pode ser assumida enquanto dado perceptível, independentemente de o autor se reportar ou não a esta perspectivação do objecto, ou então enquanto manifestação duma interioridade, igualmente de modo autónomo relativamente ao ângulo de focagem do autor. Isto confirma a indissolubilidade dos dois pendores de apreensão do real. Vai mais longe, porém. Porque o sujeito está em tudo e tudo está no sujeito, de modo indissociável necessariamente, a realização dos sonhos do Eu, além de passar, como condição prévia, pela respectiva universalização consensual no mundo dos sujeitos, requer também inelutavelmente o envolvimento de quanto é sensível, começando no próprio corpo de cada pessoa e terminando na última fronteira do Cosmos, abarcando nisto todos os tempos. O programa é tão descomunal que, mesmo quando compreendemos que tudo afinal depende da mútua imbricação filosofia-ciência-tecnologia pela história além que vamos tecendo e sendo, ainda assim teremos de confessar que a plenitude se nos antolha uma utopia inexequível, tão incomportável é para a pequenez de cada um e todos nós.


Incrivelmente grandiosa é, de qualquer modo, a nossa vocação; tamanha é a decepção também. Daí a incomensurável e congénita angústia que nos envolve os passos, aguilhão que morde tanto quanto nos obriga a correr, rumo à fronteira interminavelmente distante. Assim nos encontramos estruturados; quanto a isto, nada pode a liberdade, como nada pode quanto ao facto de ela própria existir no âmago de cada um de nós.


Somos um projéctil. Semente de nós próprios, modo como sempre necessariamente nos encontramos, como descobrir que convirá fazer de tal promessa? De que utensilagem dispomos para enfrentar o porvir?






CIÊNCIA E SABEDORIA



a) Filosofia como saber de mim


Um dos sentidos mais comuns para distinguir contemporaneamente a filosofia da ciência é o tentado pela distinção entre conhecimento e saber, donde poderiam resultar dois perfis, o do cientista e o do sábio. A componente primeira da distinção seria que no domínio científico estaríamos perante leituras precisas de objectos rigorosamente delimitados que apenas exigiriam de nós o uso da razão sobre dados que nada de particular requerem para os constatarmos, estão aí perante quem queira apreendê-los; no âmbito filosófico já tal não ocorreria porque o dado seria fugidio, jogando às escondidas connosco, pelo que a mera razão não basta para dar conta dele, será ptecisa uma faculdade de intuir particularmente apurada e uma sensibilidade especial para capturar a subtileza do objecto perseguido, e daí que o resultado de tal pesquisa não seja tanto um conhecimento como antes um saber. O mais significativo desta abordagem, sempre imprecisa, é que introduz uma componente verdadeiramente relevante e inesperada: saber tem, neste contexto, cumulativa e indissoluvelmente os dois sentidos de compreender e saborear. E quando nesta perspectiva se fala em sabedoria, isto é tanto a arte do sabor como a de apreender.


Ora, esta linha de reflexão ganha todo o sentido e alcance quando justamente a prosseguimos para além da vaguidade com que tem sido colocada. O saber é a pesquisa de mim para a qual apenas disponho da sensibilidade interna sob a perspectiva da vivência do que intimamente vou sendo vivendo-me. É por isso que é muito mais complicado e vago captar-me que apreender um dado perceptível. Ali não há aparelho sensorial possível e a perspectiva sob que o dado me aparece à consciência, quando me vivo, não tem rigorosamente nada captável por aquela via nem sequer através da tradução de qualquer aparelhagem, por mais sofisticada, para aumentar o nosso poder de percepção. É que a minha interioridade não tem dimensões de tipo nenhum, não é espacial (nem sequer tem energia física) enquanto experiência existencial apenas por mim vivida; só eu a experimento, é invivível por mais ninguém que não eu próprio. Ninguém sou eu senão eu mesmo. De mim o outro capta tudo excepto eu na qualidade de quem sou enquanto me saboreio intimamente como discorrer de instantes vivos, como temporalidade entretecida de aspirações, afectos, representações, ponderações, opções, decisões de intermináveis referências, sem qualquer elemento apreensível por qualquer que seja a percepção de qualquer que seja o aparelho sensorial de captação, meu ou de outrem. É óbvio que para tão fugaz dado urge algo melhor e mais depurado do que a vista, o ouvido, o tacto que mais não precisam, ao nível da experiência empírica, do que focar-se nos objectos externos para deles darem conta. A vivência, enquanto consciência crítica da experiência existencial espontânea e largamente inconsciente, não é processo fácil, não tanto pelo vector voluntário e orientado (que partilha com a experimentação, aliás) sobre aspectos seleccionados dos dados mas exactamente porque a área de base de que parte é efectivamente vivida na maior parte fora de qualquer apreensão da consciência espontânea que sempre acompanha, em contrapartida, a experiência empírica e facilita por isto a tarefa do cientista. Agravando a dificuldade, a consciência que dá conta dos dados a conhecer sempre os apreende como exteriores a ela (intencionalidade), o que tende a iludir o nosso processo imediato de captação. Se, para o horizonte cognitivo, tudo lhe aparece como vindo de fora e irrompendo no seu domínio, então todo o dado traz consigo a conotação de exterioridade. Não é fácil dar-se conta de que o sentido desta noção neste contexto não tem nada a ver com o que lhe foi atribuído enquanto conceito-chave do universo perceptível: aqui o dado é exterior relativamernte ao aparelho dos sentidos que o apreende, acolá ele é exterior relativamente à consciência que o notifica. Ora, se tudo o que os sentidos captam está fora deles e simultaneamente, por isto mesmo, é perceptível, já o mesmo não ocorre com o que entra na consciência. Nesta, naquilo de que ela dá conta entra tanto a representação dos dados perceptíveis como a dos vivenciais. Com efeito, todos, antes de nela se integrarem, lhe são alheios, desconhecidos: outra coisa que não ela, que se não encontra em nada que lhe conste dos registos. Como tal, podem ser lidos metaforicamente como exteriores; entretanto, não se trata de nenhuma relação espacial, uma vez que o saber não ocupa lugar, como soi dizer-se, a consciência é uma faculdade do sujeito, de natureza estruturalmente não perceptível mas vivencial (pela forma como dela própria podemos dar conta). A confusão, porém, tende a manter-se, pelo paralelismo do processo e pela respectiva continuidade: o dado apreendido pelos sentidos só é percepção quando entra na consciência, não há linha divisória neste trajecto desde a captação sensorial à representação cognitiva – exterioridade e interioridade são incindíveis de modo necessário, em absoluto.


Em resumo, o movimento-para-além-de-si-próprio do agir da consciência combinado com a facilidade de acesso ao dado perceptível conjuram-se para nos distrair da chave do modelo: a interioridade do sujeito que é o suporte de tudo isto (a começar pela própria faculdade de tomar consciência).


Tudo nos remete ao “conhece-te a ti próprio” socrático, tão difícil e tão inesgotável! Já na origem ele tinha dois sentidos: o de compreender e o de saborear, embora este na perspectiva de cada um dar conta da sua insignificância e miséria pessoal, e humildementne (e não humilhadamente, bem ao contrário) começar a caminhar rumo a outras dimensões de ser e conhecer que o salvem do atoleiro. Também aqui a grande dificuldade era discernir o eu próprio em autenticidade no meio da amálgama dos lugares-comuns, preconceitos, dogmas e tradições com que permanentemente tende a confundir-se e o afogam normalmente por inteiro (a condenação à morte de Sócrates é, neste sentido, a confirmação trágica visibilizada do pantanal que toda a vida denunciou e que tanto nos custa a constatar e aceitar). Aqui a dificuldade é dupla: primeiro demora a apercebermo-nos da área da interioridade, a dar conta de que há vivência; depois é ainda mais problemático optar por uma linha de autenticidade no reordenamento dela, à medida que a vamos clarificando. O projecto unificador universal (de toda a intimidade, de todo o mundo perceptível e de ambos num) que o Eu, ao agir-se, pretende protagonizar depara com alienações interiorizadas de toda a ordem, com ambiguidades que enredam os passos e desviam os afectos. Tantas e tais que é uma utopia a universalização da proposta filosófica e mais utópica ainda a respectiva consumação no universo dos sujeitos e no das coisas. Inalcançável, a utopia é entretanto igualmente ineliminável: constitui, de facto, o nosso horizonte de ser e, conseguintemente, o de todas as coisas. O que nos obriga a afirmar, não que o ser é, mas que o ser será. Nós, com efeito, somos não tanto aquilo que somos mas antes aquilo que seremos. É por isso que Sócrates não se importou nada de sacrificar calmamente o que estava sendo: o seu ser real mais autêntico, com as mais significativas dimensões, era outro e não chegou a corporizar-se, mas era o que mais lhe importava. É o movimento paralelo ao que durante as perseguições ocorre nos mártires (qualquer que seja a opção). Em todos a adesão do Eu se projecta para uma dimensão de si por vir e que está em vias de alcançar-se, embora jamais se atinja. É a tensão insuperável e angustiante do tempo que somos enquanto sonhos em busca de realidade e que é o pano de fundo do drama que representamos a vida inteira, na esperança de algum dia capturarmos o esquivo, tornarmo-lo nosso, sermo-lo finalmente. Por isto não conseguimos parar. Por isto às vezes desesperamos e aniquilamos os possíveis: é a guerra, o totalitarismo, o suicídio, o autismo.


É também o objecto vivencial, portanto, nas duas dimensões (a do conhecimento dos dados da vivência e a da valoração e consequente opção ética), o mais antigo e duradoiro de quantos, em dois milénios e meio, tentaram caracterizar a tarefa do filosofar, no respectivo objecto, método e finalidades.




b) Filosofia como saber do universal


Uma perspectiva do filosofar das mais enraizadas na cultura ocidental e oriental é a de que se pesquisa com tal tarefa o universal, por vezes identificado com a essência, por vezes com o englobante de tudo ou então com o que subjaz para além das aparências dos dados. Em certas abordagens, o universal torna-se o perene, pretensamente eterno, contraposto ao precário do perecível e transitório, conotando-se aquilo como o válido e isto como o desprezível ou pouco menos. Por sua vez, o englobante, versão contemporânea de Jaspers, ora é o sentido envolvente de toda a realidade, ora o que nesta identificamos no termo, depois de a ir aprofundando camada a camada, a pedra angular que dá consistência e sentido a tudo.


As múltiplas pistas de aproximação são parentes próximas e em grande parte mutuamente redutíveis. Basta para tanto descortinar que, afinal, o transcendente é o imanente (como os melhores teólogos já compreenderam há muitos séculos) e que a grande dificuldade do conhecimento decorre, em todos os níveis de abordagem, de se esquecer ou ignorar tal identidade, caindo-se num dualismo que, de distinção em distinção, se esboroa cada vez mais, qualquer que seja o problema em análise. Mais uma vez, é a questão de se verificar que o dado é uno e nós é que dispomos de dois tipos de vias para aceder a ele, irredutíveis e complementares, para, consequentemente, não fazermos projecção do que somos naquilo que pretendermos apreender. Quando tal precaução é tomada, verificamos que as várias leituras atrás sumariadas são, afinal, sinónimas, apenas usam metáforas de espacialização diferentes, umas no sentido de ir-mais-além, (transcendência), outras no de ir-mais-fundo (imanência) para ambas referirem um saber que não tem qualquer espacialidade (e daí poder usar livremente linguagem metafórica deste tipo, uma vez que não está tratando de nada perceptível, com dimensões sensíveis).


Curiosamente, porém, esta tentativa de identificar o filosofar queda-se na mesma nebulosidade de todas as demais, aqui tanto mais estranha quanto se trata de clarificar um conceito, o de universalidade, cujo sentido implica a objectividade consumada. Esta contradição levou não poucos a introduzir a distinção entre o que visa e o que atinge o filosofar. Após, isto, porém, a tarefa deixa de distinguir-se da vulgar experiência humana de cotio, também ela projecto e frustração, como tudo na vida. Por este pendor, a filosofia arrisca-se à dissolução no discurso vazio e louco que nem dá conta da própria inépcia. Filósofo, assim, era toda a gente e tudo seria filosofar; ora, se a filosofia é tudo, com qualquer que seja o alcance, então não é nada porque de nada se distingue e nada de específico comporta nem requer. A agravar o descrédito a que hoje tal abordagem está condenada, a pretensão de universalidade, aqui efectivamente ridícula (estamos no reino insuperável da subjectividade), atinge-se convincentemente no domínio científico. E nem sequer se lhe pode contestar a temporalidade da vigência dos conhecimentos, uma vez que a própria superação permanente deles constitui de facto, no mundo perceptível, uma imparável transcendência-aprofundamento dos dados, sempre sob o signo da validade universal do que se atinge em cada etapa da investigação (mesmo quando são contraponíveis modelos conceptuais diversos relativamente aos mesmos dados). Agora, saber do universal tornou-se uma expressão muito ambígua: se for a validade do conhecido que está em causa, então cabe melhor à ciência que à filosofia; se for o objecto potencial de análise, também é mais facilmente confirmável naquela do que nesta e, de qualquer modo, a investigação experimental reporta-se à totalidade do universo sensível e não apenas a dados particulares, ou regiões deles, mas a qualquer dos níveis até à integração (teórica ainda) de tudo; se for o alcance das conclusões no que se reporta à maior ou menor extensão de dados abrangidos, ainda aí a ciência leva a palma, uma vez que contemporaneamente avança teorias (gravitação universal, relatividade, big-bang...) que dão conta do Universo perceptível como um todo. Em qualquer que seja a perspectiva, aquela tentativa de identificar a filosofia sai molestada no confronto, por mais veneranda que seja a tradição dela.


Entretanto, esta aproximação do filosofar está cheia de potencialidades e é susceptível doutra leitura. Com efeito, a universalidade enquanto objecto abrangido pelo filósofo, é tão extensa como a da ciência, por muito que seja mais difícil de atingir. Na verdade, não há domínio nenhum do mundo sensível que não tenha, pelo menos, a dimensão vivencial da respectiva representação na consciência e correspondentes repersussões pela interioridade além. Neste sentido, a universalidade de abrangência é rigorosamente igual em ambos os campos. Num outro alcance, porém, o vector filosófico leva a palma: é que se tudo é determinado para a ciência, já na filosofia há determinismo e liberdade. A apreensão das expressões perceptíveis desta experimentalmente continua a ser, indefectivelmente, seja descrevendo-as, classificando-as ou explicitando nexos causais, uma busca de determinações. Ora, no íntimo, a experiência da liberdade na ponderação, deliberação e decisão é doutra natureza, muito embora mergulhe aparentemente na área determinista logo que franqueia a fronteira do agir. Trata-se, porém, duma sobredeterminação, da inauguração dum princípio causal inédito cuja matriz vivencial é livre e cuja manifestação perceptível é, por isso, complexificada, com a introdução duma maleabilidade e tendencialidade impossíveis de encontrar na área dos objectos físicos e químicos (abandonados a eles próprios) e insuperáveis em ciências humanas. Esta situação implica queo elemento decisivo derradeiro no domínio da causalidade não é o do objecto perceptível enquanto tal mas o do objecto vivencial enquanto está vocacionado para reorientar, refundir, recriar tudo e todos a partir do Eu. Esta dinâmica tem a sua matriz no íntimo do sujeito, na faculdade de ser livre, a qual pode engendrar um mundo novo e um tempo outro. Ora, isto é abordável na filosofia e não na ciência, uma vez que as manifestações perceptíveis deste projecto radicam no ângulo não perceptível da pessoa, no mistério da intimidade apenas a ela acessível por via do filosofar. A exteriorizaçãpo disto que a ciência pode abordar é uma realidade inteiramente diversa, determinista-causalista, que nem deixa adivinhar a revolução que do outro lado está em curso obrigatoriamente (nem que seja para a ruína universal).


Em resumo, a filosofia dá conta duma realidade que é última, definitiva e sem paralelo possível (nesta função) no âmbito da ciência, a saber: a função recriadora da liberdade, em virtude da qual a pessoa e toda a história se inauguram. Se tudo é determinismo, se tudo é escravo, então o sujeito é, por sua vez, o senhor de tudo, a principiar por si próprio. Ora, esta dimensão apenas na vivência se esclarece enquanto tal. Portanto, a filosofia tem a vocação de demiurgo na área dela como na da ciência, ilimitadamente. E, como tal, na forma de conhecer que busca e atinge em tal tarefa, ela é um saber do universal. E neste sentido apenas ela o é.


Noutro alcance igualmente incomportável pela ciência é ainda a filosofia pesquisa de algo que, à falta de melhor, podemos designar por universal: o Eu enquanto unidade da interioridade (realizada e em curso permanentemente). Com efeito, como vimos, tudo, rigorosamente tudo está presente no sujeito, que mais não seja enquanto representação na consciência (e nunca esta se limita a tal) e, por outro lado, o sujeito projecta-se sobre tudo, a tudo se tornando presente sob múltiplas formas (cognitiva, estética, prática, mística...). Se se procura o que reside em tudo e em que, ao invés, tudo mora, encontramos, enquanto realidade, apenas o Eu (nas respectivas criações). Também aqui é a dimensão interior que revela os aspectos decisivos que neste domínio importam e não as manifestações perceptíveis cientificáveis que, aliás, apenas nos remetem novamente para a vivência se queremos compreender o que aqui é relevante.


Numa apreensão mais profunda, a universalidade surge, aliás, ainda mais significativa. Com efeito, o mero facto de o Eu em si conter tudo e sobre tudo se projectar poderia ser entendido como simples situação de realidade sem alcance nem interesse, uma vez constatada. Ora, tal não é possível em virttude do facto de a egoidade ser antes de mais, não a unidade consumada da pessoa, mas o princípio de identificação dela sem o qual qualquer unificação seria impossível: unir a quê, em função de quê, com quê? É a partir da identidade própria que laboriosamente o sujeito vai ter de construir-se enquanto pessoa, isto é, tentar harmonizar impulsos, desejos, emoções, sentimentos com movimentos inatos e aprendidos e compatibilizar isto com as demais pessoas e coisas, no meio ambiente, na comunidade, no país, no mundo, no Universo... Tanto quanto é a unidade já conseguida do sujeito, o Eu é a unidade a inventar e levar a bom termo. Ora, esta, partindo do imo da egoidade, arrasta no seu trajecto a interioridade inteira da pessoa, em permanente reconstrução, projecta-se no corpo próprio, choca e tem de moldar-se e moldar todos os demais corpos, de coisas e de pessoas e daqui vai subir ao questionamento e reformulação de valores que regem tudo isto, de hábitos, tradições, crenças e leis que tem de harmonizar consigo e vice-versa – neste itinerário não há fronteiras, a tarefa é tão interminável quanto o alvo visado é o infinito. O infinito da harmonia, da comunhão, da unidade. Tudo ser um, eis a raiz última e o último passo do Eu: aqui consumaria a lógica, a ontologia, a ética e a estética. Seria o absoluto do maravilhamento, do bem, da verdade, do ser. Só que não o é ainda. A história é a distância entre a insignificante unidade já conseguida e a arrebatadora que nos chama do fim do caminho. Aqui a ciência-tecnologia são o bordão do viandante e jamais o caminheiro. Indispensáveis para acelerar a corrida, para impedir desastres, para alimentar a esperança; não são a corrida nem quem corre, não são a esperança nem quem espera. O caminho do projecto final que eventualmente consumará todos os intermediários e nisto consumará todos em tudo, levando o sujeito à plenitude num mundo interior-exterior que então ao íntimo será finalmente transparente, tal caminho, por ser o do Eu, é o domínio privilegiado do filósofo e escapa necessariamente, pela natureza imperceptível do objecto, à ciência. Ora onde, com mais propriedade, se pode falar de saber do universal?



c) Filosofia como conhecimento dos primeiros princípios, das primeiras causas


Uma aproximação particular da filosofia no período de oiro grego foi a de defini-la como o domínio dos primeiros princípios, das primeiras causas ou primeiros fundamentos. Trata-se duma derivação da pesquisa da natureza ou essência de tudo, grande matriz subjacente a toda a cultura daquela época, na região de influência grega. Este sentido atribuído ao filosofar chegou aos dias de hoje na leitura corrente do indivíduo médio do ocidente. Entretanto, entre os filósofos, nalguns aspectos particulares, entrou em crise pelo menos desde o séc. XVIII.


Antes de mais, o fundamento último de qualquer ser particular ou do Ser como um todo, entendido como primeiro princípio ou causa que o constitui radicalmente como ser, tornou-se muito problemático desde que a ontologia ou metafísica ficou inviabilizada a partir de Kant e da demonstração de que quanto é cognoscível é-o necessariamente sob o modo de representação na consciência. Ora, nesta aparece-nos apenas enquanto síntese dum dado (alheio à representação, autónomo, relativo ao objecto como coisa em si) e uma forma da mente (pertinente ao sujeito, ao tipo de intelecto de que dispomos e não a outro qualquer). Escapando-nos a apreensão do que o ser é em si próprio, uma vez que apenas dele captamos o que nos aparece no horizonte da consciência modelado pelos processos de captação de que dispomos (percepção ou sensibilidade interna) e com eles sintetizado, ainda por cima limitados aos poderes e estrutura que em nós reveste o intelecto, torna-se difícil pretender desvendar o mistério da raiz derradeira do que quer que seja, daquilo que o faz manter-se como ser em vez de nada. Na aflição da falta de caminho nos vamos aguentando há dois séculos. Em alternativa, vão-se propondo, sem grande convicção, várias ontologias do fenómeno, daquilo que nos aparece na consciência: obviamente que, neste sentido, apenas caracterizamos o ser da consciência, na perspectiva dos respectivos conteúdos enquanto manifestações da mesma natureza que ela. Numa palavra, todos sentimos que o importante para qualquer pessoa são outras dimensões da existência e do real e que isto não tem quase nenhum alcance nem interesse. Daí o alheamento generalizado da cultura contemporânea frente aos trabalhos filosóficos e a acusação de que se vão tornando mais e mais alienatórios, tratando de bisantinices quando a humanidade ronda à beira dum colapso planetário.


As dificuldades não terminam aqui. Com efeito, qualquer daquelas expressões revela-se afinal como muito mais significativa na área da ciência-tecnologia do que na da filosofia onde fizeram história.


Desde logo, o conceito de causa tornou-se o pano de fundo de toda a actividade experimental. A continuidade sem ruptura da pesquisa, no intuito de cada vez ir mais longe na cadeia causal apreendendo e dominando determinismos dia a dia mais subtis e precisos, concretiza com eficácia a busca da causalidade mais radical que a filosofia jamais atingiu. O facto de se chamar a isto causas segundas perde todo o alcance, a não ser que se delimite com precisão o âmbito da causa primeira, o que até hoje jamais ocorreru. É que se primeira tem um sentido temporal, tanto a genética, a biologia, a paleontologia, como a geografia física e humana, a astronomia e ciências espaciais conexas, a física das partículas e assim por diante estão em melhores condições, comprovadamente, para reivindicar que perseguem a primeira causa da respectiva cadeia de determinismos. Com a vantagem de aqui não poder haver dúvida de que nos aproximamos dela cada vez mais, à medida que o conhecimento e as técnicas experimentais avançam. Mas se, em lugar de considerarmos a primeira causa em sentido temporal lhe atribuímos o alcance de pedra angular, de fundamento sobre que toda a cadeia de conexões assenta permanentemente, até mesmo a energia originária que impele o processo interminavelmente por dentro dele, imanente e subjacente a tudo, ainda aqui é a ciência-tecnologia que pode garantir que outra não é a respectiva função, em última instância. Com efeito, é em busca disto que andam tanto os físico-químicos subatómicos, bem como os geólogos que questionam a idade, origem e tectónica do planeta, e ainda os astrónomos que pesquisam a origem do sistema solar e do Universo e os processos cósmicos originadores da vida bem como de todo o reino mineral que a precede, para já não referirmos as tentativas de dar conta das leis que regem a incomensurável mole do Cosmos inteiro. É inegável que isto, com as teorias que permite avançar (relatividade, big-bang, expansão universal, pulsão cósmica...) se reporta à causalidade mais radical de que deriva uma infinidade de cadeias secundárias de determinismos.


Isto é tão verdadeiro quando entendemos que o primeiro elo se encontra no infinitamente pequeno (física quântica e posteriores derivações de matematização e conceituação cada vez mais problemática a desafiadora) quer no infinitamente grande (pesquisa astrofísica e astroquímica sobre o Cosmos enquanto todo, até à fronteira das últimas galáxias). Em qualquer dos casos andamos à busca do elo basilar, do impulso primevo de tudo quanto há. Ora, isto é apenas ciência; a filosofia não é aqui precisa para nada.


Ocorre o mesmo quando nos reportamos aos primeiros princípios ou primeiros fundamentos. Com efeito, esta forma de exprimir tem mais a ver com o discurso e pode parecer que estaria mais adequada ao filosofar cujo objecto nos escapa entre os dedos e nos deixa ao fim apenas a palavra como testemunho. É uma ilusão. Já vimos como, em desespero de causa, o positivismo comteano tentou salvar o pão do filósofo pondo-o a dar conta, para além da crítica subjectiva da experiência empírica, dos princípios gerais da ciência. O atropelo é notório: apenas o cientista, e em função do que decorre no labor experimental, está em condições de desempenhar aquela tarefa. Qualquer filósofo, entrando ali, reconverteu-se e não faz mais do que trabalho científico, em pé de igualdade com qualquer outro investigador daquela área. Por outro lado é óbvio que a pesquisa dos primeiros princípios que pretendem dar conta dos primeiros fundamentos é uma tarefa que se propõe qualquer cientista hoje em dia. É daí que derivou toda a onda de teorias englobantes em que a ciência contemporânea é fértil, praticamente em todos os domínios: o evolucionismo e a teoria da relatividade abriram o caminho a uma onda imparável de teorizações enquadradoras de conjuntos cada vez mais vastos no tempo e no espaço, como atrás já referimos. As disputas acerca de leituras teoréticas contrapostas no âmbito da ciência são muito parecidas com as antigas querelas filosóficas, com uma diferença: agora os objectos em disputa são todos observáveis, apenas não é por ora líquido qual a melhor fórmula para dar conta da causalidade geral entrementes já conhecida que os rege (teoria corpuscular contra teoria ondulatória, espaço curvo contra espaço linear contra espaço ondulatório, associacionismo contra teoria da forma, teoria da personalidade contra teoria do comportamento, indeterminismo probabilístico contra determinismo universal...). Ora, nada disto tem a ver com a filosofia, são os cientistas que têm de encontrar os processos experimentais suficientes para ultrapassar os equívocos, como sempre: as disputas nesta área não se resolvem com argumentos mas através de comprovação por factos. Se não for viável operá-la directamente (a escala descomunal dos fenómenos a que as teorias se reportam, no espaço e no tempo, inviabilizam-na sempre), ela é feita indirectamente, através de dados pontuais abarcados pela teoria e que se revelam experimentáveis por qualquer método, caso a caso. Os cientistas não esperaram pelos filósofos para tratar disto e, aliás, qualquer filósofo seria completamente inepto em tais tarefas. Aqui ninguém precisa deles para nada. Seriam intrusos que só poderiam empatar e confundir tudo. Indesejáveis, portanto.


Resta, porém, um sentido em que a filosofia como saber dos primeiros princípios, primeiras causas ou primeiros fundamentos ganha todo o alcance e escapa a qualquer equívoco ou sobreposição com a ciência. É que a causalidade do universo perceptível bem como a do vivencial têm sempre duas matrizes quando se põe a questão do primeiro elo da cadeia em sentido temporal ou a da raiz última enquanto elemento de suporte do todo: uma, a que os antigos chamavam fado ou destino, ocorre ao sabor do acaso, regida pelos efeitos combinados e imprevisíveis de todas as causas do Universo em conjunto (uma vez que tudo tem a ver com tudo, também na perspectiva perceptível); a outra tem a ver com a regência que a vontade humana impõe ao sujeito e ao mundo sensível, a começar pela própria humanidade. Ora, do ponto de vista da pessoa, o fundamento último de tudo encontra-se nesta, tanto para explicar a interioridade como a exterioridade perceptível: com efeito, sem a egoidade que pela vontade tudo tenta destinar e determinar em função do respectivo projecto, nada alcançaria sentido nem interesse. A própria ciência e, mais radicalmente, a experiência empírica e a existencial pré-conscientes jamais teriam ocorrido, não fora a dinâmica do Eu no sujeito, ainda antes mesmo de se tornar consciente sequer dele próprio, empurrar como força de vida cada um de nós a aderir ao facto de existir, à vida, aos outros, ao mundo em todas as dimensões. Se não fora a interioridade, nada nem nenhum problema se poria: tudo era acaso em todo o Universo, ninguém o anotaria sequer e muito menos dele faria projectos. Ocorrendo a interioridade, inaugura-se outra raiz última, mais radical ainda que a primeira (pesquisada na ciência) de tudo vir a acontecer: a vontade que, obedecendo à liberdade, põe em marcha o sonho do Eu acerca de si, envolvendo todos e tudo, até à infinitude do espaço e do tempo. A partir daqui, a primeira causa, absolutamente radical, tanto dos determinismos perceptíveis como dos vivenciais, não é a que experimentalmente descobrimos, uma vez que esta também é para nós instrumental: queremos desvendá-la para a dominarmos e usarmos a nosso contento. A autenticamente primeira, sem mais recuo possível, é a que nós instauramos, dominando e usando aquela, introduzindo no Universo uma inflexão inédita, instaurando de facto e em todas as dimensões do real que podemos experimentar o fermento dum mundo novo. Os novos céus e a nova terra não são uma alegoria: são o que principiámos a criar, desde que o primeiro Eu brotou à flor da terra ou em qualquer outro ponto do Cosmos. O projecto continua em curso: estamo-nos recriando dia a dia, reordenando, desenvolvendo, intercombinando o mundo infinitamente complexo da nossa interioridade; estamos modelando o nosso corpo, já tão diferente do de nossos ancestrais de há milhão e meio de anos, com regimes de trabalho, recreação, convivialidade e repouso, opções alimentares, vestuário, desporto, educação física; erigimos uma humanidade, estreitando laços, aproximando continentes e culturas, circulando estudiosos, turistas, trabalhadores, emigrantes, trocando bens e serviços, cercando-nos e pacificando-nos; transformamos o rosto do planeta implantando-lhe agregados urbanos, vias de comunicação, fábricas e minas, cortando os mares e os ares, domesticando animais e plantas, canalizando energias e reformulando permanentemente opções e linhas de rumo; e principiamos a alterar o Cosmos que dia a dia se nos torna mais familiar, é a nossa grande casa para todas as aventuras, e já são aos milhares os satélites, sondas, viagens tripuladas ou telecomandadas, as mensagens e aparelhos que espalhámos pelo sistema solar e mais além.


É um sonho tão incomensuravelmente grande que a maioria não consegue abarcá-lo, tal é a miopia geral do nosso olhar, ou então fica a tremer de medo. Queiramo-lo ou não, é nele que andamos embarcados, desde o princípio dos tempos. Mesmo recusando-o, mesmo de olhos vendados, mesmo ignorando-o, somos um sonho a caminho duma plenitude infinitamente distante. Um interminável itinerário a percorrer, um pequeno troço dele já coberto.


Ora, o primeiro fundamento, princípio ou causa disto, seja para explicarmos porque é assim, seja para efectivá-lo em concreto, não está no objecto da ciência (mesmo que tudo se perceptibilize todos os dias, como vemos) mas no âmbito da interioridade, o reino do filosofar. Não se refere, porém a toda ela, mas, de modo preciso, à área da liberdade que funda a vontade e através desta põe em curso o projecto ético por que o Eu optar, tendendo a arrastar através dele tudo e todos inelutavelmente, qualquer que seja o sentido em que rume.


Nestes termos, põe-se a questão: o último fundamento é, afinal, uma ética em acto? Será que por aqui encontramos a saída para os impasses da filosofia atrás referidos, sem entrar em colisão com a ciência e o papel que lhe cabe no projecto humano, à escala universal apontada? Será que o Ser, perdido na teoria do conhecimento, se encontra afinal numa teoria da ética que envolva a liberdade e a vontade humanas, corporificando-as gradualmente no espaço-tempo?




A ÉTICA COMO ENCONTRO CIÊNCIA-FILOSOFIA



a) O conhecimento empírico e a moral social


Todo o problema da crise do filosofar contemporâneo que se projecta na cultura em geral resume-se a isto: só se conhece o ser que se cria. Tanto no sentido de que apenas pode conhecer o ser criado aquele que o criou como no de que apenas é cognoscível o ser criado tanto quanto for criado por quem o cria. Como o homem jamais pode entender-se como criador a partir do nada, ficamos num beco sem saída. Conhecemos fatalmente apenas fenómenos que são nossas criações da consciência;o ser a que tais reperesentações se reportam, enquanto independente da construção mental que dele elaboramos, jamais faremos ideia do que seja. Como não criámos isso, escapa-nos inelutavelmente. Só se alguma vez pudéssemos remontar à criação absoluta, do nada tirarmos algo, então é que conheceríamos este algo por nós engendrado e que apenas ao nosso desígnio criador deveria o ser, em todas as dimensões que revestisse, uma vez que sem nós seria nada necessariamente de novo. Como isto nos escapa, estamos condenados: o nosso grau de intervenção jamais é criador (a partir do zero) – mas apenas ordenador, transformador, recriador (a partir de tudo, começando por nós próprios, primeira matéria-prima disponível já criada e posta em nossas mãos). Em instância de análise de conhecimento não há alternativa, o fundamental escapa-nos de modo necessário.


Curiosamente, porém, esta linha de pesquisa apenas se encurrala por parar a meio do caminho. Com efeito, uma vez que apenas o acto criador nos garantitria o conhecimento absoluto (é por esta intuição que todas a s religiões e todos os místicos afirmam Deus como a Sabedoria em plenitude), o que daqui decorre é que o conhecimento que gostaríamos de atingir não se encontra na linha da investigação cognitiva de objectos com que deparamos, mas na que se poderia encetar ao consumar-se o acto criador num objecto criado. Quer dizer, só conhecemos a sério o objecto da nossa actividade livre, voluntária, criativa. Já Kant, na “Crítica da Razão Prática” se dera conta disto, mas não explorou a via que afinal lhe teria resolvido o impasse e a angústia em que o deixara a inacessibilidade intransponível da coisa em si. É óbvio que o valor que atribuo a um projecto por que opto bem como os sentidos que a partir da execução dele vão inflectindo as minhas atitudes e as dos outros, o tecido social, a cultura e a natureza ambiente, tudo isto, porque sai de mim, porque sou eu que o delineio, pondero, decido e executo, tudo, enquanto produto de mim que acresce e altera quanto lhe pré-existe, tudo eu conheço naquilo que é e não tem mais dimensões nem sentidos nem alcances que os que eu lá pus no exercício da minha vontade livre. O que nisto me escapa é justamente quanto em tudo serve de suporte ao projecto e, portanto, não brotou de mim, e por isso o altera, lhe resiste, o desvirtua, o destrói (seja do mundo perceptível, seja do vivencial). Quando me assumo eticamente, em qualquer que seja a dimensão, este acto cria um objecto de conhecimento, nos estritos limites da intervenção da vontade a agir livremente sobre quanto se situa para além dela, o qual não tem outro ser que o que eu lhe entender dar: aqui apreendo necessariamente o ser, uma vez que o crio. Não pode tal objecto ter outra essência senão a que lhe atribuo ao decidir e agir: ela é o conteúdo da decisão e acção e simultaneamente o que de meu acto de decidir e agir consigo apreender na consciência. É assim porque tudo quanto exceda isto já necessariamente não se situa no âmbito da minha intervenção ética mas no do que lhe pré-existe, me escapa e ma trai (seja do domínio da exterioridade ou da interioridade) e é, portanto, o que justamente pretendo ir dominando, domesticando à medida que eticamente for conseguindo ir mais longe na unificação de mim comigo e o Universo inteiro. Em resumo: o que, na vida prática, é de minha responsabilidade consciente e livremente assumida, é apenas o que consciente e livremente assumi (muito embora se resuma apenas num sentido a dar à minha vida, num itinerário implícito para a humanidade e o mundo); como isto não tem outra realidade além da que eu lhe consiga atribuir e sou eu que assim o crio em absoluto, ao menos isto conheço-o em tudo o que é. Não pode em definitivo ser mais que o que eu pretender que seja e que efectivamente lhe conferir em liberdade.


Teoricamente isto não levanta dúvidas, elas surgem é na prática. É que a nossa liberdade é condicionada. A dificuldade é discriminar em concreto o que se deve à liberdade e o que decorre do condicionamento dela. Um sujeito pode cair na ilusão de que está a agir em plena assunção livre de todos os factores possíveis e, ao fim e ao cabo, é conduzido por condicionalismos inconscientes ignotos ou por mecanismos sociais até conscientemente manipulados por outrem para o induzirem num erro em completa boa-fé. Parece que ficaremos, então, no mesmo ponto: a porta que promete entreabrir-se não permite, afinal, a passagem. Tal é a situação, de facto, na estrutura actual da história e condição humana. Nada prova, porém, que tal tenha de ser assim para sempre nem necessariamente. É que esta abertura para a conquista do ser, tanto cognitiva como ontológica, é da mesma natureza do ser que entremostra. Quer dizer, assim como o ser só me será revelado no acto de mim e, portanto, no limite, ser é agir-me, também a respectiva possibilidade de apreensão terá de ser criadora: nós é que teremos de abrir a passagem para atingi-lo. Teremos tanto de criá-lo em concreto como de criar-lhe os contornos com que o representamos e ambas as operações são uma só e interdependente, de modo que o criamos tanto menos quanto mais o confundirmos com outrem e quanto mais o criarmos tanto melhor o conheceremos, e assim indefinidamente.


A liberdade é a porta de passagem entre dois mundos: do determinismo fatalista para o determinismo voluntário. Tanto quanto vamos alargando o domínio deste vai-se reduzindo o daquele. Quanto mais escrlarecermos o olhar íntimo para clarificar as decisões da vontade, tanto mais dominamos os condicionamentos da liberdade e os colocamos ao serviço do nosso projecto e cada vez mais evidenciamos o que este é e o daqueles de que se entretece. A ontologia do ser que nos pré-existe é-nos por natureza incognoscível; a ontologia do ser que vamos gerando é-nos por natureza conhecida, muito embora embebida das ambiguidades oriundas do facto de tudo o que engendramos ser por enxertia no que nos pré-existe. A coisa em si do que já aí está não poderei jamais saber o que é; a coisa em si do que eu nisso promovo, sou eu que a determino e é o que eu entender que seja. No dia em que o homem determinar tudo em todas as coisas, na interioridade e na exterioridade, no infinito do espaço e em todos os tempos, então consumar-se-á enfim a realidade total do ser com a absoluta transparência dele ao conhecimento e a obediência absoluta à vontade: tudo então será liberdade-ser e as distâncias ficarão abolidas – cada um será todos os outros, eu e nós serão um, o corpo será palavra transparente do Eu, íntimo e externo serão espelhos um do outro e já não haverá opacidade nem ambiguidade, o Cosmos inteiro será o corpo prolongado da comunidade dos sujeitos, o Nós absoluto finalmente realizado.


É o domínio da utopia, uma vez mais, como sempre que se fazem projecções ao infinito. O mero facto de as podermos congeminar demonstra quanto o gérmen delas nos bole no imo e como das profundezas nos prolonga rumo ao impossível. Nada comprova, aliás, que o impossível não nos esteja ao alcance: apenas nos não é atingível com a actual estrutura que somos. Mas como afirmar que não conseguiremos mudar de natureza, quando somos nós próprios fruto de idêntica mudança na evolução das espécies? Apenas a miopia mental e uma inconcebível carência de perspectiva histórica incompatível com os dias de hoje (quando tudo se perfila em termos de milhões de anos, em qualquer ramo científico) continua a fechar-nos a porta dos possíveis para além de todo o crível. Quando alargamos o horizonte, logo limitamos humildemente os nossos dogmatismos e deixamos o caminho aberto a todos os inesperados, por mais incríveis que nos pareçam. Então não é o mero aflorar do homem, em termos evolutivos, um milagre inadmissível para qualquer australopithecus que nos tenha precedido? E no entanto aconteceu: bastou-lhe apenas dispor de tempo bastante para amadurecer. Como assegurarmo-nos do que virá a seguir?


De tudo isto decorre que a ciência tem uma tarefa inadiável: a de discriminar, para além dos demais determinismos perceptíveis, ainda e principalmente o do jogo da moral social, como se conformar nos agregados humanos. É que este domínio é dos mais rentáveis para desmascarar as várias caras falsificadas de que se pretende revestir a liberdade. Apenas é livre e tem porvir o que interiormente o Eu de cada um assume como seu e em função do qual decide orientar-se encaminhando com isto a vida, o mundo e a história. A ilusão é tão fácil que vulgarmente pretendemos estar a assumir-nos quando, afinal, obedecemos apenas a leis conhecidas de funcionamento de grupo, de massa, de multidão. No melhor dos casos deixamo-nos conduzir; normalmente, agimos por mero mimetismo. Tudo isto é mera contrafacção da liberdade: esta não é necessariamente ruptura, contradição nem conflito, pode ser assentimento e consenso, mas o que é obrigatoriamente é consciente. Isto implica e requer que ela passe pela joeira da afectividade e da reflexão todos os valores, factos, experiências e opções possíveis para ponderadamente ir talhando caminho, na hesitação, na dúvida, mas também na generosidade, na confiança e na esperança. Enquanto o auxiliar científico for fraco, a liberdade está ameaçada permanentemente de confundir-se com imitações e decalques; à medida que aquele se fortalece menos riscos corre e mais longe atinge na conquista da respectiva autonomia e autenticidade. A ciência jamais pode estudar a liberdade enquanto vivência (perspectiva fundamental para conhecê-la e actuá-la – apenas abordável em filosofia), mas pode alertá-la para os condicionamentos em que ela se exerce fornecendo-lhe as leis deles para ela as poder usar em vez de lhes ficar escravizada impotente e inconscientemente; pode ainda apreender os determinismos oriundos da liberdade, nos sentidos que as cadeias causais tomam e captar quanto aí influa desvirtuando o projecto humano ou quanto daí interveio indevidamente no mesmo projecto fazendo-se passar por opção livre quando era afinal condicionamento externo.


Eis como a colaboração ciência-filosofia se torna imprescindível como garantia de que a pessoa atinja cada vez mais autenticidade nela própria e projecte tal qualidade, transformando o mundo e a história, talhando-lhes gradualmente um rosto mais humano, à medida do sonho que somos e nos obriga a peregrinar.


Colocando-nos aí, porém, pergunta-se uma vez mais se a ciência, afinal, não basta para talhar o rumo a seguir: ela muda a face do planeta e do Cosmos, agora é o esteio do homem e inclusive o avalizador da autenticidade do sujeito. Precisamos de mais alguma coisa?




b) O cientificável e a falta de rumo


Se à ciência competem juízos de realidade e não de valor (quando muito estuda estes enquanto factos e, portanto, fazendo sobre eles juízos de realidade e desmontando os respectivos determinismos enquamto dados observáveis), é óbvio que a outra instância tem de competir tal área de pesquisa e realização. Já vimos que é exclusiva do filosofar, seja ele a nível crítico ou do senso comum: é na experiência existencial que os valores repercutem e se enraízam apelando à liberdade e é nela que podem e devem ser clarificados, assumidos ou rejeitados, a fim de fundarem a linha de rumo da acção. É claro que quando alguém se deixa levar no rebanho, os valores a que obedece não têm praticamente radicação interior nenhuma, são vividos sem atingirem mesmo o nível da consciência, como meros percursos existenciais espontâneos. Tais valores são de facto anti-valores do ponto de vista do sujeito arrastado na onda; do ponto de vista do cientista são os mais susceptíveis de estudo, uma vez que a perspectivação pelo ângulo perceptível lhes revela quanto contêm de mais decisivo e determinado. Suspensa a afirmação autónoma da interioridade livre, resta apenas o condicionamento externo e interno a comandar a vida, o que é estudável em ciência e filosofia, pela experimentação e pela vivência, conforme se trate da dimensão perceptível ou da vivencial. Em qualquer dos casos apenas se nos revela o universo dos factos e respectivos determinismos e jamais o das opções e execuções dum Eu assumindo-se com autonomia. Também aqui é preciso não confundir: ao cientista não compete primordialmente esta análise em virtude de a liberdade íntima não estar sendo accionada, mas apenas porque neste caso o peso dos condicionamentos externos e internos é que explica a linha de rumo do sujeito em causa e, sempre que tal ocorre, a força da exterioridade é de tal modo decisiva que os próprios condicionamentos internos se explicam, no que têm de mais relevante, por ela. Isto não quer dizer que a situação na interioridade condicionada não exista ou seja despicienda: aqui apenas a pesquisa filosófica pode fazer luz. Há é duas dificuldades: a primeira é que tem pouco alcance, só por si, o determinismo da interioridade, quando tomado independentenmente da respectiva dependência dos dados do mundo exterior; a segunda é que a análise filosófica em tal domínio é quase inviável, uma vez que só o sujeito pode aceder à sua própria interioridade e, neste caso, ela encontra-se alienada, inconsciente dela mesma em grande parte. A análise crítica nestas condições é apenas aproximável e, tanto quanto vai sendo conseguida, vai também e por isto mesmo alterando o próprio objecto de estudo com a vida real da egoidade em que ocorre. Quer dizer, ao filosofar, o sujeito toma consciência de si e dos estados alienatórios com que pactua, o que sem mais os transforma e se projecta em cada vez maior assunção de si e da vida em todas as dimensões.


Esta situação de facto da divisão de funções entre a ciência e a filosofia é perigosa: de poder melhor apreciar as alienações pelas causalidades em curso no domínio axiológico e da moral social em geral, a ciência tende a generalizar, considerando todo o ético como a ilusão da liberdade; por outro lado, a tendência generalizadora ocorre também no filosofar e respectiva dificuldade de partida neste domínio (quem está alienado não tem consciência de si ou tem-na iludida e, conseguintemente, não consegue filosofar, uma vez que isto é ter consciência crítica de si enquanto interioridade apenas a si própria directamente acessível e a mais ninguém), de tal modo que se é levado a crer que todo o esforço de pesquisa vivencial do foro axiológico e ético resulta inconclusivo. Ora, isto é apenas meia verdade, embora estatisticamente tenhamos de concordar que a maioria de nós e dos comportamentos e atitudes em cada um funcionam por hábitos automatizados cujo estatuto, funções e alcance são definitivamente inconscientes. Será a filosofia apenas a dignidade do resto insignificante? Cremos também que não. Aqui há igualmente outra ambiguidade a distorcer a visão.


É que, como já vimos, a tomada de consciência crítica não significa ruptura com o estabelecido, nem agressão, conflito ou sequer discordância. Criticar com a conotação de atacar ou demolir é apenas uma perversão cultural correspondente a complexos de inferioridade generalizados na humanidade ocidental e oriundos duma família patriarcal em que o pai não havia maneira de permitir a autonomia e adultez dos filhos, interiorizando neles a sua imagem-função repressiva sem apelo, de tal modo que não lhes deixava alternativa que não fosse a rebelião. Somos todos herdeiros desta situação neurógena e isto é apenas um afloramento deste estado geral de complexados que somos. O que na realidade ocorre é que a tomada de consciência dos valores e sentidos de que culturalmente partilhamos, enquanto membros duma comunidade-país-cultura-humanidade, é pacífica quanto à quase totalidade deles, mormente os que nos garantem o dia-a-dia, nas relações familiares, profissionais, lúdicas, uma vez que nos satisfazem suficientemente as carências de sobrevivência física e biológica, as de saúde, de afecto e solidariedade e as de segurança em geral. Nenhuma colectividade sobrevive se não organiza um esquema de relacionamentos entre os membros e com a natureza que responda minimamente por aquilo. Quando nascemos já encontramos tudo isto feito. Ora, a aceitação íntima disto e o partilhá-lo activa e convictamente não tem nada de alienatório, pelo contrário. Significa a assunção interior pela egoidade de quanto lhe vem ao encontro da realização do anseio de comunhão universal. Com isto, portanto, fica-nos, afinal, um vastíssimo campo de incidência filosófica e onde os aspectos perceptíveis são os menos significativos, porque aqui actua de facto a liberdade do Eu, embora exteriormente pouco ou mesmo nada se altere de modo claramente observável. A ciência teria um objecto tão limitado e subtil se fora apenas estudar a diferença entre o rame-rame inconsciente, amorfo do rebanho humano e o lúcido e assumido que ninguém se interessaria com isso (até hoje não há praticamente investigações experimentais neste domínio justamente por tal motivo). Entretanto, na filosofia, esta situação coloca-nos perante um abismo de diferenças e leva-nos à questão crucial do salto qualitativo entre o determinismo ocasionalista e o voluntário inaugurado pelo sujeito para dar uma ordem e um rumo a si, à humanidade e ao Universo inteiro. Onde a filosofia encontra já o princípio de tudo, a ciência quase não consegue ainda notar nada.


Esta situação remete-nos para o aspecto fundamental: sempre que a egoidade toma a iniciativa, pondera, delibera, decide, executa, ocupando as margens da liberdade através do exercício da vontade, apoiada no discernimento da consciência, no âmbito de toda a experiência existencial, sempre que isto ocorre, o decisivo joga-se inteiro na dimensão da interioridade, é o eu em pessoa vivendo-se e exprimindo-se interna e externamente. Quer dizer, à ciência chega um complexo de dados observáveis que são apenas o lado de fora do teatro representado, não a respectiva representação, sentimento e sentido. Escapa à verificação científica quanto é aqui fundamental: o drama que o sujeito e apenas ele actua dentro de si, sem testemunhas nem participantes possíveis. Está condenado inexoravelmente à solidão absoluta, é um rei único dum império sem mais ninguém. A exteriorização disto enquanto decorre e quando se realiza é duma natureza radicalmente outra, não é o mesmo: a frase, o gesto ou a vida que o vão manifestando não são a vivência que intimamente os anima e lhes dá corpo. De fora, outro eu pode interiorizá-los, mas ainda aqui criará solitário a sua própria vivência sem jamais poder viver a do outro. Para isso só haveria uma solução – tornar-se o eu do outro, ser o tu de facto, em concreto, o que, obviamente, é impossível.


Eis porque, estruturalmente, a ciência-tecnologia não pode gerar por si rumo nenhum: a matriz de qualquer valor, a fonte de qualquer sentido fica-lhe inelutavelmente inacessível no Eu de cada um, quando decide ocupar voluntariamente as fronteiras da liberdade de que dispõe para afirmar-se um pouco mais além. O efeito disto é cientificável, a expressão que o acompanha, também; em si própria, porém, tal operação não tem qualquer dimensão percepcionável, é o Eu vivendo-se, apenas a si próprio acessível cognitivamente. Não há nada que altere isto. Por mais importante que a ciência-tecnologia seja, o fundamental escapa-lhe por natureza. Ela própria é o resultado duma opção ocorrida na instância do íntimo que lhe cria a ser, o caminho e os conteúdos: se o homem não achar interessante a opção científico-tecnológica jamais ela poderá ocorrer. A fonte donde lhe brota o ser é uma atitude que se situa fora, antes e é doutra índole que qualquer objecto que nela se estude ou manipule. A ciência, de facto, não pode ditar nenhum rumo: o dela própria lhe é conferido necessariamente por outro árbitro, a interioridade, o reino do filosofar.




      1. O rumo da vida como vocação do filosofar

Se não é correcto pretender que a filosofia se distingue da ciência porque esta apenas pronuncia juízos de realidade enquanto àquela competiriam os de valor, uma vez que a primeira parte é exacta mas o filósofo tanto constata factos e determinismos interiores como acciona a liberdade, inaugurando a axiologia e terminando na implementação ética do mundo; se tal, portanto, não é distinção bastante, ela entretanto é significativa em vários sentidos. Já vimos como as manifestações perceptíveis dos valores são abordáveis experimentalmente e terminam em juízos de realidade acerca dos valores (na psicologia, na sociologia, na economia, na história...). Isto confirma novamente que não há dado nenhum que se nos não apresente bifacial, experimentável e vivencial, sem que ambos os rostos nos digam o mesmo, embora se correspondam indissoluvelmente. Também resulta daqui que o que podemos colher e empreender em cada uma das regiões de objectos de experiência, a empírica e a existencial, não é sobreponível: o que sabemos das coisas pela apreensão da perspectiva perceptível não é o mesmo que descobrimos delas quando as lemos no sujeito e quando vislumbramos o que este é na perspectiva vivencial. E se há alguma continuidade entre determinismos internos e externos, mormente quando a pessoa vive alienada, numa atitude passiva perante os condicionalismos que a empurram como destroço à deriva, o que lhe reduz e porventura aniquila de facto a possibilidade de filosofar, reforçando com isto aquele paralelismo até se aproximar dum dado meramente exterior, cuja dimensão interiorizada é apenas a de quem o abordar e não dele próprio (como ocorre com todo o universo sensível destituído de subjectividade, todo o ser para além da humanidade); se tal é viável e permite limitarmo-nos em tais casos à pesquisa científica, a verdade é que a egoidade que aqui é alienada e com isto ficou sem interesse e porventura inabordável para a filosofia (uma vez que só o próprio pode ler a vivência de si e mais ninguém), nem por isto deixa de existir no sujeito alheado e, enquanto tal, é sempre um gérmen que a qualquer momento pode inaugurar uma nova história individual e colectiva.


Mas onde isto requer logo à partida a abordagem filosófica é justamente onde o Eu instaurou, por opção própria, um itinerário dele, por muito que exteriormente pareça igual a qualquer outro (não é o ineditismo que caracteriza o gesto eticamente protagonizado mas o facto de ser aferido pelas exigências do íntimo e ser empreendido por lhes corresponder). É que neste caso o filósofo (e somo-lo todos quando nos apreendemos e tomamos conta de nós próprios para respondermos pela vida) inaugura um discurso e um agir impossíveis por inteiro em termos de ciência. Cada um fala e age aqui na primeira pessoa, exprimindo-se a si próprio e não a uma realidade outra e, ainda por cima, visando não tanto o que é mas o que pretende vir a ser e, por implicação, o que tudo venha a ser (humanidade e Cosmos, quaisquer que sejam os aspectos concretamente envolvidos). Ora, este aspecto final, inovador e instabilizante (mesmo quando a opção livre consagra o já estabelecido, pois confere a este uma força e alcance que só por si, entregue ao acaso dos determinismos, jamais revestiria), tal aspecto, comportando a iniciativa dos juízos de valor, a ponderação e deliberação acerca deles e os projectos práticos que se desencadeiam em consequência, constitui de facto o princípio dum mundo novo em que a vivência não é acompanhável pela expetimentação no que aquela comporta de decisivo (e de decisão). Aqui o filósofo tem de rumar solitário: a pronúncia dum juízo de valor em toda a trajectória que segue desde a criação a atribuição de valia a algo, até ao respectivo enquadramento ponderado entre os demais valores da pessoa, ao implemento deles em projectos que se analisam, deliberam, decidem, prolongando-se nas iniciativas práticas, transmudando a vida quotidiana, talhando novos perfis culturais e físicos no rosto do Universo – tudo isto tem como matriz decisiva de clarificação o laboratório da vivência do Eu, secreto a olhares alheios. O que dali transpira para fora (exterior percepcionável onde a ciência poderia intervir) é tão parco e insignificante, excepto quando o trajecto se consuma nas actividades concretas, que a abordagem de tal perspectiva se revela desinteressante frente ao que há de definitivo na apreensão vivencial (da filosofia).


Com efeito, o destino da humanidade e do Universo joga-se na intimidade recatada e protegida de cada Eu, absolutamente inviolável a olhares de forasteiros, a estranhos que a deturpariam. O cientista reduziria necessariamente a egoidade a uma coisa alheia a si, transformado o sujeito num objecto, num Ele, e o Eu na primeira pessoa perder-se-ia definitivamente, quando aqui é o elemento decisivo e decisório, sem o qual tudo ficaria por explicar e por acontecer.


Isto conduz-nos à vocação última do filosofar. Com efeito, se nele há lugar para juízos de realidade que dão conta do que é a interioridade da pessoa e dos respectivos determinismos, a intenção derradeira de tal tarefa não é jamais o mero conhecimento mas o poder que dali cobra o sujeito. Efectivamente, assim como a ciência é ordenada em última instância para uma tecnologia que nos domestique o universo perceptível e no-lo coloque obediente ao dispor (sem iludir o que há de estético na busca da ciência pura como objectivo autónomo – apenas isto é ainda a forma de submeter o objecto à nossa afectividade e consciência), assim também a filosofia apenas busca a compreensão do que quer que seja da área própria de competência para finalmente estar habilitada a pronunciar-se em termos de valor: o que o filósofo pretende é encontrar o projecto que eticamente corresponda aos anseios últimos e universais da humanidade em cada um e todos, hoje e para quaisquer tempos. Numa palavra, o juízo de realidade é sempre, ao fim e ao cabo, um prefácio para protagonizar na primeira pessoa uma proposta de assumir-se assumindo todos, o mundo inteiro e todos os tempos, para ela impetrando o consenso geral. Não ignoramos que também aqui há lugar à pesquisa da factualidade interior por ela própria (investigação pura de juízos de realidade): é que ela, numa vocação individual, pode sempre corresponder à satisfação do que tal sujeito procura – também aqui é a plenitude que afinal se vai consumando, o juízo-projecto valorativo é vivido em concreto com tal tarefa, sem individualmente ter de revestir todas as dimensões possíveis. De qualquer modo, embora explicitamente a procura, nestes casos, não vá até ao nível dos valores e desenvolvimento das respectivas articulações, eles afinal são incarnados nas situações de facto vividas permanentemente pelas pessoas em causa: também aqui, portanto, não há por onde fugir-lhes. Se não constituem filosofia discursiva, são-no implicitamente e em realização concreta, por opções vitais e projectos-actos correspondentes.


O que por trás de tudo se perfila é o sonho do Eu: ir gradualmente conseguindo o autodomínio, integrando harmonicamente todos os elementos da personalidade, de tal modo que as aspirações mais fundas de si próprio vão tendo algum vislumbre de realização, o que requer a conformação e união com os outros e a harmonização geral da humanidade entre si com o planeta e todo o Cosmos. A inauguração dos juízos de valor por iniciativa própria é a tentativa de liderar o Universo em ordem a uma fusão com todos os demais sujeitos, em prol dum mundo em que cada Eu se reconheça num Nós sem fronteiras. O sentido disto aponta para a tentativa de tornar o próprio corpo e toda a realidade empírica fiel tradutora do íntimo e do mundo novo que a partir dele se inaugura. No limite, o intento pretende que o dinamismo do Eu torne todo o Cosmos (como, à partida, a realidade externa da humanidade) numa palavra-dádiva de si próprio aos outros, completa e perfeitamente obediente à intenção do sujeito, transparência absoluta de si a todos. Na recíproca, o abraço de cada Eu ao Universo acolheria neste todos e cada um dos outros que finalmente com ele comungariam através de toda a exterioridade, tornada mero reflexo-mensagem dos íntimos que neste contexto seriam um só de infinita e inesgotável diversidade e harmonia. Numa palavra, o que o sujeito intenta é a loucura de que todo o exterior se torne do tipo do interior através da assunção pelo íntimo de toda a exterioridade, primeiro desvendando-a no que ela é e descobrindo como sumetê-la a si e, depois, impondo-lhe cada vez mais a marca dele, de tal modo que gradualmente ela fale cada vez menos dela mesma e cada vez mais do sujeito que, por ela irrompendo, se pretenda intercomunicar, intercomungar infinitamente.


O horizonte final da dimensão ética do Eu é a completa subjectivização do universo sensível, tornado mera palavra-acto de mim em comunhão comigo, com a corporeidade e o Cosmos, transformados em mediadores para a comunhão com os outros, formando todos em comum um universal Nós, cuja visibilização todo o perceptível consagraria. Aqui já não haveria interioridade e exterioridade: todo o interior estaria exteriorizado e todo o exterior, interiorizado, a leitura do sujeito e a do objecto seriam finalmente uma. Filosofia e ciência encontrariam a ponte para uma via única do conhecer-saber: a transparência mútua das intimidades, de cada um a todos os demais.


Neste estado de projecção final, cada um viveria, sem deioxar de ser ele próprio, a egoidade do tu, cada qual seria um espelho do outro e vice-versa, estaria transposta a fronteira que, intransponível, hoje e sempre nos limita: a inacessibilidade a terceiros da interioridade do outro, apenas por ele próprio apreensível e vivível – em termos cognitivos e afectivos. A realização em plenitude consumar-se-ia então, uma vez que eu e tu já não seriam mais duas realidades irredutíveis: a mútua transparência-dádiva plenificaria o amor em todas as dimensões e, no real, no ser, todos seríamos então um, a comunhão infinita do deus.


Tanto quanto entrevemos que é este o horizonte de projecção final para onde caminhamos, que inexoravelmente nos atrai, verificamos não só que é utópico hoje em dia, também a longo prazo, mas ainda para sempre, na estrutura actual que nos constitui, que somos. Se isto for alguma vez realizável só poderá ocorrer através duma mutação radical na natureza que vivemos, por transfiguração e ultrapassamento absoluto de nossa realidade actual. Isto porque a mera aproximação do fim, hoje em curso, nos garante afinal apenas que ela é definitivamente irrealizável: com efeito, podemos interminavelmente sonhá-lo e achegarmo-nos a ele mas jamais tocá-lo e atingi-lo – o infinito, por definição, mora fora do alcance da finitude. Ora, nós somos finitos em todas as dimensões, faculdades e potencialidades de ser e devir que nos descortinamos. Todoss morremos. Somos temporalidade. Insignificante poeira localizada. Não há qualquer vau que nos permita vislumbrar sequer uma longínqua probabilidade de saltar para a margem de lá, com as condições de que dispomos, que somos estruturalmente. O sonho de além, porém, mora inegavelmente nas nossas profundezas. E mexe-nos, inexoravelmente: ninguém consegue ignorar-lhe a aguilhada.


Para quê? Estaremos votados ao desespero? Seremos uma contradição ambulante, mera frustração adiada que a morte definitivamente continuará silenciando, pelas eras além?






FILOSOFIA COMO MATRIZ DE SALVAÇÃO



a) O “suplemento de alma” e a crise de civilização


A exigência dum suplemento de alma para a civilização actual por via da filosofia (entre outras achegas) partiu de Bergson e generalizou-se. Encontra tanto mais eco quanto mais nos sensibilizamos aos riscos que planetariamente corremos, mormente os que nos ameaçam de extermínio (conflagração mundial, esgotamento planetário de recursos, destruição das condições ambientais de vida). O apelo feito no início do séc.XX, todavia, não conseguiu encontrar efeitos convincentes no labor dos filósofos contemporâneos, por muito que tenham tentado corresponder-lhe, a principiar no primeiro autor dele. Com efeito, o intuito era o de inflectir as prioridades de atenção da investigação e da técnica: vivemos há três séculos com um implemento desmesurado do corpo (toda a área da ciência-tecnologia) esquecendo-nos da alma, no sentido bergsoniano da comunhão imediata de mim comigo. Haveria que alterar o desequilíbrio incentivando o conhecimento e a prática do encontro de cada um consigo. Apenas porque isto pretendeu que alcançava o ser em verdade, ultrapassando a limitação insuperável da consciência aos fenómenos, é que morreu à partida, por inconvincente. Entretanto, a linha perseguida poderia ter levado ao terreno clarificado do filosofar. Aflorou-o de muito perto e apenas se deixou desviar em virtude, ainda uma vez, do preconceito cientista-positivista de que só é válido e exequível um conhecimento com garantias de objectividade, o restante é ilegítimo ou desprezível. A pretensão de buscar uma matriz segura contraponível aos resultados cognitivos da pesquisa científica é ainda uma atitude condicionada por esta área, obediente aos preconceitos com que diariamente nos viola; não atingiu a liberdade interior bastante para talhar caminhos de afirmação pura e simples, sem precisar de contrapor-se ou comparar-se com nada. No mesmo desvio caiu a investigação fenomenológica, progressivamente esvaziada em busca dum dado absoluto irrecusável para contrapor à precisão e rigor indesmentíveis da ciência. Um certo desespero existencialista, bem como a descrença que pontua a opção por um filosofar assistemático ainda têm ressaibos dum conformismo mal encarado perante uma situação inevitável mas indesejada, a que preferiria muito mais a da segurança e ordem que confortam o cientista. Tudo isto é ainda o mal-estar duma filosofia que nos deixa na incomodidade de não nos revelar a prórpia identidade, o que nos mergulha na legítima dúvida das possibilidades, alcance e função dela, quando ainda por cima temos perante o olhar a ingente tarefa e eficácia da ciência-tecnologia, indiscutivelmente triunfantes.


Ora, o facto é que esta situação obscureceu o olhar para o que andávamos procurando e é urgente atingir doravante: filosofar ou é uma missão de salvação ou é uma inutilidade, num mundo em vésperas de colapso. E tal voto cumprimo-lo se encontrarmos aqui o suplemento de orientação que falta à cultura hodierna, se lhe restituirmos a alma que perdeu e a deixou nas vascas da agonia. Já na época socrática lhe fora conferido idêntico programa: o “conhece-ta a ti próprio”, colhido no pórtico do templo, significava em primeira mão que cada um reconhecesse a respectiva pequenez ante a grandeza do deus, ultrapassando orgulhos e vaidades insensatas, por consequência. Era um conviea à conversão, à mudança de vida, embora com fito meramente individual. Hoje o problema é planetário, embora cruze por dentro de cada um. A questão é saber até onde teremos forças e génio capazes de projectos tão motivadores e convincentes que despoletem energias bastantes para inflectirem a linha de rumo da história contemporânea pelas gerações vindoiras além. O fracasso da humanidade será sempre fruto da filosofia, embora a coveira possa ser a ciência-tecnologia. Com efeito, é na interioridade que têm de ser inventados e implementados rumos de alternativa que nos desviem do cataclismo e gerem uma humanidade com rosto diferente e prometedor.


Ora, este suplemento que falta à cultura contemporânea, contrariamente ao pretendido que seria colmatá-lo oferecendo um conhecimento tão rigoroso e imbatível como o científico numa área que por natureza o não comporta, só poderá advir da compreemsão e decisões-projectos da interioridade, acolhida sem complexos por ela própria com o que nos permite, nas condições de que dispomos, desvendar e agir. E aqui, efectivamente, a filosofia tem tudo por elaborar, adiada como tem andado há séculos. Mas, para que o atinja, terá de não cometer um erro de mimetismo que, para além dos já referidos, nos anda traindo: o de confundir os dois tipos de juízos de que tem de ser portadora, reduzindo-os ou a mero conhecimento factual (o que transformaria a liberdade e o valor agindo-se num mero dado que se nos imporia em vez dum processo livre e libertador) ou, ao invés, ao puro opinar-querer mais ou menos arbitrário (que ignoraria irrealistamente a estrutura coactiva da interioridade e das respectiva componentes).


O que há de prometedor no filosofar, doravante, não é que o enxerto de alma que lhe está ao alcance seja um mero complemento dos conhecimentos científicos e da mesma ordem deles: os factos e determinismos que regem a experiência existencial. Isto compete aos filósofos mas apenas gera esperança enquanto arrancamos daqui para os juízos de valor, geramos programas, damos carne a ideais. Mais, a expectativa é de que por esta via consigamos ultrapassar o subjectivismo, o arbitrário, tanto quanto tenhamos em conta todas as componentes da interioridade previamente investigadas bem como a experiência empírica inteira e mormente as respectivas achegas científico-tecnológicas. A grande aposta do porvir reside aí: que na filosofia, através dos dois níveis da interioridade (o dos factos que a constituem e o das opções éticas em que se empenha sob o comando do Eu: o nível da realidade e o nível do valor) consigamos finalmente a panorâmica de síntese em que viabilizemos o mútuo reconhecimento universal, o consenso definitivo jamais consumado e sempre aproximável (e tentado). O que nos tolheu o andar foi o não percebermos que a charneira entre o homem perdido e o salvo não se situa entre a corporeidade e a egoidade, entre a coisa e o sujeito, entre a exterioridade e a intimidade. Ela reside bem no meio da interioridade entre o Eu que se esboroa e não assume e aquele que decide levar ao termo o respectivo apelo demiúrgico. A fronteira está, portanto, em usar ou não a liberdade. A salvação, por conseguinte, é uma possibilidade dependente duma transmutação que ocorre no íntimo de cada um: a partir da realidade que ela interiormente é como facto consumado, determinismo absoluto contra o qual nada há a operar, a pessoa pode transmudar-se num projecto de vir a ser, logo que o Eu usa a margem de liberdade para optar de modo a dar corpo às aspirações mais fundas que no imo vislumbre como ponto de referência da interioridade inteira. Com efeito, toda esta tende a satisfazer a afectividade mais radical e, pelo Eu, esta polariza-se como matriz ordenadora última da intimidade. Tal transformação comporta nela o gérmen dum mundo outro e uma nova humanidade. Toda a interioridade é realidade, toda a interioridade é valor: a filosofia tem de dar conta dos dois planos. No primeiro terá de conhecer, como terá de propor, com base no previamente conhecido (científico ou filosófico), e aqui opera de modo único, incomparável com qualquer outra modalidade da cultura, apenas parente próximo e fundante da tecnologia (como de todo o agir) e nesta última tarefa, porque saltou da facto para o valor terminando no projecto e concretizando-o, o consenso entre as pessoas é altamente problemático. Mas é o que o filósofo terá de infatigavelmente procurar. Foi, aliás, o que pelos séculos fora sempre tentou. É o que hoje não pode, sob pena de morte à escala da humanidade, deixar de interminavelmente buscar.


E não nos ludibriemos com aparentes facilidades. Com efeito, a tentação é pretender subrepticiamente estender os juízos de realidade relativos à interioridade (em qualquer das componentes) à reconversão implicada pelos valores. Estes deverão significar apenas aquilo onde alguém reconhece o fulgor máximo da plenitude prometida. Sem certezas, sem dogmas nem falsas convicções de inerrância e menos ainda de infalibilidade. Não são factos mas opções livres; não se impõem, propõem-se; não são firmes mas revisíveis permanentemente; não são alheios mas de cada egoidade; não pré-existem, geram-se pela vontade libertadora do sujeito. Se já era inadmissível pretender que a filosofia fora científica (como muitos tentaram inutilmente e hoje em dia continuam pretendendo no marxismo, vulgarizado e estadual, com inúmeras perdas humanas e riscos para a humanidade e a cultura ), menos ainda podemos aceitar qualquer tentativa de confundir as análises de facto da realidade interior e o assumir desta pela liberdade, para lhe imprimir uma unidade e um rumo que se vá semeando pelo mundo inteiro e a história.


Entretanto, não podemos esconder porque a tentação revela tanta força. É que a esperança humana depende definitivamente do que no segundo nível do filosofar venha a ocorrer. Não é o mero conhecimento do meu íntimo que me salva, nem o conhecimento do universo exterior mas o que puder fazer disto. Mais rigorosamente ainda, nem sequer o que puder fazer, mas, no caso de confirmar-se que algo é viável ali que me salve, tudo depende de conseguir discernir o que é, em que condições, e de o levar à prática eficazmente em tempo oportuno. Numa palavra, o trágico é que a esperança depende definitivamente do que ocorrer no plano dos juízos de valor. Ora, se este é o mais inseguro, o mais dificilmente consensual, se honestamente tem de propor-se como estruturalmente humilde e provisório, todos ficamos aflitos. Tanto mais quanto nos constatamos dia a dia mais perdidos, com ameaças incontornáveis sobre a cabeça. Daí a tentação de impor uma libertação à força, de erigir em verdade absoluta uma ideologia qualquer, de proclamar alguém como messias, timoneiro, educador, de promover a revolução definitiva: compreendemos a impaciência, o desespero, a alucinação, o idealismo enlouquecidos. Não podemos ignorar os milhões de vítimas, o retrocesso à barbárie, o massacre do humano por dentro de cada um, o agravamento da iminência dos cataclismos, o encurralamento inexorável na contradição, o beco sem saída. A libertação imposta é escravatura. A salvação sem liberdade é o assassinato do íntimo, a robotização dos sujeitos, um genocídio antecipado da humanidade. É sempre isto, fatalmente, qualquer que seja a bandeira: a religiosa das Cruzadas à Inquisição, a marxista das ditaduras do proletariado, a nazi-fascista do Deus-Pátria-Família ou da raça pura e assim por diante.


Não há, pois, alternativa. O suplemento de alma do filosofar decorre na área das propostas de novos rumos para a humanidade e a história. Como são o investimento criador da liberdade-em-projecto-e-em-acto, só podem ser eficazes entre liberdades e para maiores libertações. Não há forma de evitar a condição de partida: teremos porvir tanto quanto apostemos contra toda a esperança no respeito integral das liberdades, na expectativa de que, afinal, espontaneamente e por escolha própria, venham a encontrar-se. À medida em que tal ocorra, o mundo irá revestindo outro rosto, o homem moldar-se-á noutro perfil. Se por aqui não encontrarmos saída, então não a teremos por nenhuma outra via. É que a anterior alternativa pode garantir a sobrevivência física do homem, mas aniquilá-lo-á por dentor. Restará apenas, em tal caso, a certeza de que jamais é possível anular a raiz última do Eu e, mais tarde ou mais cedo, ele voltará a sublevar-se, no segredo mais fundo de cada intimidade, e a história retomá-la-emos no ponto interrompido. Hoje o risco, porém, é de que, matando a pessoa por dentro, também corporalmente a liquidem: aí a espécie ficará extinta por bloquearem a outra via, afinal permanentemente disponível. Qualquer ditador doravante pode levar-nos planetariamente ao cemitério. É confrangedor verificar a leviandade com que tantos continuam a optar e apoiar o recurso ao totalitarismo (apodando-o até de democrático) quando por natureza (e salvo conjunturas extremas de emergência, como recurso provisório de autodefesa colectiva) ele é desumanizante e estruturalmente alienatório. Ir por aqui é aniquilar a esperança, é bloquear o suplemento de alma que eventualmente pode brotar de qualquer egoidade e da conjura de todas elas.


Diríamos que é louca a esperança do filósofo. Como confiar o nosso destino a um rebento tão frágil, tão subjectivo, tão vulnerável como é um projecto livre solicitando a adesão livre dos demais, longe de coacções e violências, longe de condicionamentos e sugestionamentos escusos? Não estaremos definitivamente perdidos quando a única boia de salvação disponível é deste jaez? Fiquemo-nos por que não há, de facto, outro caminho para a humanidade ter um porvir. A desumanidade é que dispõe doutros. Para sermos cada vez mais o que somos e que do fundo pretendemos vir a ser não há, com efeito, alternativa. Temos, porém, este fio condutor. E temo-lo esbanjado.




b) A ambiguidade do filosofar


A crise da filosofia nos últimos dois séculos antolha-se-nos antes como um prenúncio de crescimento. Não apenas em virtude do princípio geral de que toda a dificuldade aguça o engenho, de que a dor do parto prenuncia o nascimento. É que, se a história confirma multissecularmente tal lei e a sociologia quotidianamente lhe constata a contraprova, a verdade, porém, é que os frutos disto não podem garantir-se sempre e para todos os casos, nem é raro gerar-se um nado-morto ou um prematuro inviável. O que cremos anunciar uma inflexão decisiva e libertadora finalmente da autenticidade do filosofar é justamente aquilo que gerou a maior crise que em três milénios a reflexão ocidental aguentou: a impossibilidade de criar um sistema filosófico objectivo, com uma verdade indiscutível, em crescimento contínuo. Foi porque já em tempos de Sócrates (e depois com Platão e Aristóteles) se tornou imperioso, no conflito com os Sofistas, encontrar alguma área do filosofar que escapasse ao subjectivismo arbitrário, que desde então, a filosofia ocidental perdeu o tempo em busca de tal pedra de toque, ignorando o objectivo primeiro e a expectativa basilar do labor dela, a saber: dar conta do que a pessoa é no íntimo e do sentido da vida, daquilo para onde a humanidade e cada um podem rumar e por que aspiram.


É verdade que em momentos críticos a maior aspiração foi a da segurança e aí se funda aquela pesquisa. O peso enorme que historicamente acabou por ter não faz sentido, tanto mais que a única área onde tal anseio encontra alguma resposta, no domínio filosófico, é a da lógica, tanto nela própria como na respectiva aplicação dedutiva ao discorrer do filosofar. Isto é assim, sem apelo, desde Aristóteles, cuja lógica formal e estruturação do pensamento dedutivo se creram definitivas e acabadas durante dois milénios, até à era moderna. Ora, o estudo da razão e respectivas leis, bem como a tentativa de utilização exclusiva da dedução constituem dentro da interioridade uma zona tão limitada que quase tudo (e de facto o mais relevante) fica de fora. Desde o Renascimento tal pendor foi agravado pelo concurso da ciência, com o respectivo rigor indiscutível, a desafiar a filosofia a produzir algo que se lhe emparelhasse, sob pena de a colocar a ridículo. A corrida ao evidente atingiu o paroxismo com o Idealismo Alemão, mormente em Hegel. E atingiu uma evidência desde então insofismável: a de que tais pretensões foram infalivelmente derrotadas. A filosofia é um discurso do Eu e nada consegue nem conseguirá jamais violar a fronteira que separa e distingue o Eu do Tu, tornando impossível a conferência-vivência dum pelo outro (em regime histórico). Aqui apenas é viável olhar para dentro de si, visar o outro não lhe apreende a interioridade. A única hipótese de nos entendermos é falar cada qual de si próprio para outrem tentar rever-se nas malhas de tal discurso, a ver se o que vive em si é legível pelo que o primeiro comunicou. Lá o acesso àquilo de que ele fala, no concreto das vivências sobre que reflecte, apenas ele o tem e mais ninguém. Em definitivo, jamais saberei o que é o Eu do outro, apenas posso presumir a identidade dele comigo, tanto mais verosímil quanto mais mutuamente nos confirmemos em consenso acerca do que são as nossas vivências respectivas. Poder-se-ia pretender falar aqui de objectividade, mas a contraprova de que estamos de acordo acerca do que nos constitui na interioridade apenas serve quando confirma que somos constituídos da mesma maneira. Já quando há desacordo nada pode demonstrar que não estaremos perante duas realidades diversas, uma vez que cada sujeito apenas dispõe de si como objecto de análise para confirmar ou infirmar a discordância e, por hipótese, ambas as leituras contrapostas podem ser verdadeiras, por corresponderem ao que efectivamente a vivência de cada um lhe revela, o que acontece é que então são dados diferentes os que constam da vivência de cada sujeito em causa. O mais que poderemos avançar é com a improbabilidade de tal ocorrência, dado que deveria ter outras manifestações, inclusive na corporeidade. Pelo menos uma natureza divergente, totalmente outra é de excluir pela improbabilidade quase absoluta de tal poder ocorrer alguma vez (não há notícia de em tempo algum haver o mais pequeno indício de tal, nem pela palavra nem pelo acto). Já não podemos afirmar o mesmo relativamente a aspectos particulares, poderes, faculdades, graus de desenvolvimento. É bem possível que aqui ocorram múltiplas variações sem correspondência em toda a gente e, eventualmente, com paralelos não sobreponíveis (num pode manifestar-se uma realidade dum tipo, noutro, doutro). Se é deste modo ou se efectivamente nos estruturamos por dentro identicamente uns aos outros, ignorá-lo-emos em definitivo, enquanto formos temporalidade. Apenas nos podemos valer, para uma leitura ou para outra, de indícios e jamais de provas (uma vez que estas, rigorosamente, só no domínio experimental podem apresentar-se – o mesmo dado é observável por terceiros indefinidamente), é o testemunho do outro que me aponta para uma ou outra das leituras, sem demonstração factual possível dentro dele por mim.


Ora, até aqui apenas nos referimos à área dos juízos de realidade da filosofia. Se já aqui a norma é a da procura do consenso, insuperável por qualquer estratégia de acatamento mais obrigatório (e é assim mesmo para a lógica, por muito que ninguém até hoje a tenha repudiado ou lido de modo contraditório o que dela conhecemos, porque tal ocorre exactamente em virtude de até agora todos nela nos termos em consciência reconhecido), o que não acontecerá no âmbito dos juízos de valor? É claro que aqui a contingência é muito mais larga, senão nem haveria liberdade de tipo nenhum. Os projectos, os caminhos são variáveis ao infinito; os valores que propugnam, igualmente; a ética concreta que os anima, também. Variedade não acarreta necessariamente oposição nem contradição, pode ser complementaridade e correlatividade. De qualquer modo, jamais alguém pode ter a certeza de que a aposta dele, o alvo visado é o que garantirá a plenitude humana ao próprio e a todos. E não há uma sem outra, dado o Eu apenas ser em relação, a pessoa é um feixe de encontros (como um todo e em qualquer dos respectivos elementos). Jamais poderemos adivinhar até onde nos completaremos mutuamente ou, ao fim e ao cabo, nos esmagaremos. Não é verdade que o triunfalismo da opção científico-tecnológica se revela hoje, três séculos andados, como ameaça mortífera no rumo que tomou, desembocando no fim da vida na Terra se outra rota urgentemente não for imposta à história imediata? Com todas as opções a ambiguidade e falibilidade são idênticas. Apenas podemos arriscar em probabilidades provisórias, sempre prontos a arrepiar caminho ao menor sinal de perigo. Tudo o mais e mormente a pretensão de fundar irrecusavelmente um ideal, um perfil de civilização ou de homem apenas conseguem fazer pior que a atitude anterior. Com efeito, sempre que caiamos na proposta dum sistema filosófico, duma verdade primeira evidente, irrecusável e pretendamos daqui deduzir uma ética, uma cultura, uma política, caímos numa contradição no domínio filosófico: é que se pretende libertar o homem tirando-lhe a liberdade. Se tal fora alguma vez viável, o que tal filosofia teria conseguido (e tem sido intuito de toda ela até aos dias de hoje) era aprisionar a humanidade numa gaiola doirada e denominaria isto de emancipação derradeira, absoluta. Onde hoje mais tragicamente constatamos a contradição em acto é no marxismo das ditaduras comunistas, permanentemente incapazes de superarem esta quadratura do círculo arrepiando caminho. Aqui, porém, constatamos a cru o que em toda a tradição filosófica ocidental larvarmente a corroi: ela é, com efeito, uma tentação totalitária com o intuito paradoxal de que assim salvará definitivamente o homem (é ver como Platão acredita em tal, na “República”).


Dificilmente até hoje demos conta da inviabilidade absoluta disto: o caminho por aqui trilhado destroi o objectivo pretendido. Sempre das cinzas alguém tem reerguido o equívoco e retomado o trajecto da nossa destruição para nos salvar. De onde vem tal persistência e tanta dificuldade em notar uma verdade tão simples e ainda por cima tão tragicamente confirmada pelos séculos fora e novamente hoje em dia, sempre que os fanatismos condenaram ao açougue a humanidade?


O equívoco gera-se no facto de a área do filosofar comportar duas atitudes diferentes, sendo uma condição da outra: primeiro, a busca do conhecimento de si próprio enquanto interioridade, em todos os respectivos elementos e como um bloco unitário; em segundo lugar, a busca da realização do próprio projecto de ser, o intento da reconciliação universal (de si consigo, com os outros, com o mundo e o Cosmos, em todo o tempo e lugar), onde a liberdade se investe mudando o rumo a tudo e todos, inaugurando um ser novo de alcance potencialmente universal. Ora, se a primeira tarefa do filosofar é relevante, ela é-o enquanto, com todo o conhecimento-domínio do mundo sensível, é a condição sem a qual a segunda não terá maneira de efectivar-se. Todo o homem é um sonho de vir-a-ser e tudo se ordena a isto, no conhecer e no agir. À semelhança da ciência, a filosofia, durante o primeiro nível da pesquisa, constata factos, energias, funções, tudo redutível a descrições, classificações e leis. Ainda por cima trata-se de dados que não dependem da vontade para serem o que são e terem as estruturas que revelarem, pelo contrário, impõem-se-lhe, talqualmente os da ciência. Daí a tentação de estender as categorias do primeiro nível do filosofar ao segundo, sem notar a alteração de sentido e qualidade de ambos os campos. Com efeito, os conteúdos são antitéticos rigorosamente: o determinismo da interioridade é o tecido onde a determinação da vontade livremente decide talhar um caminho próprio, a que doravante o primeiro terá de obedecer, como todo o mundo perceptível. Não é possível fundar a liberdade de modo a anular-lhe o arbítrio senão destruindo-a e, com ela, o que há de sujeito, de eu na pessoa, a qualidade humana do homem. A confusão adveio permanentemente de não distinguirmos nitidamente os dois planos em que se manifesta o objecto do filosofar: enquanto dado em si e enquanto dado pela vontade; como manifestação de facto consumado e como manifestação de facto em que a liberdade se consuma, sendo o primeiro condição necessária e suporte do último e a ele ordenado.


Ora, nestes termos, a filosofia tradicional e o pendor dogmático dela inverteram esta ordem de sentido e tentaram, em permanente derrota, colocar a liberdade e a vontade a reboque de determinismos pretensamente absolutos a ela alheios, dela não oriundos. Foi sempre o ideal de encontrar uma verdade indesmentível de que deduziríamos um sistema inteiro de validade universal. Até aqui nada haveria a opor, se porventura a realidade interior pudera ser legível e contabilizável por tal método, ao primeiro nível de abordagem. Teríamos uma teoria da interioridade paralela às do universo exterior (relatividade, quanta...). Ilegítimo e absurdo é pretender encurralar aqui a liberdade, não enquanto faculdade e função mesmo em acto (até aqui ainda podemos ir, como mera pesquisa do que ela é em si própria), mas enquanto ela assume pelo Eu tudo o que é a interioridade e a exterioridade a fim de lhes sobredeterminar a lei, com todo o conteúdo valorativo, ético e empreendedor que revestir. Ora, sempre a filosofia pretendeu ilegítima e contraditoriamente cobrir com a primeira análise a área desta segunda, tendendo a torná-la inútil, porque tudo já estaria contido e dito e fundado naquela. Sempre ignorou que, bem ao contrário, quanto há de verdadeiramente importante e decisivo para o sujeito e o Universo fica completamente de fora enquanto permanecermos no primeiro patamar. Ora, quando aqui nos enquistamos e pretendemos ilegitimar a autónoma e radicalmente diversa natureza do segundo, e pior ainda quando nos organizamos para impor isso coactivamente, o que afinal preconizamos é que o homem não seja jamais um sujeito, não tenha um Eu, não descubra que é livre e tem vontade e tudo encaminhamos para a aniquilar em todos e cada um, por mais bonitas que sejam as palavras e intenções. Longe dum sistema filosófico indesmentível ser uma grande vitória, seria, para este segundo patamar do filosofar, a consumação da derrota, o fim da humanidade, a robotização universal do homem. Já no primeiro ele é equívoco, uma vez que é extremamente improvável que a complexíssima riqueza da interioridade se deixe alguma vez captar numa fórmula única, como aliás ocorre com o universo sensível para os cientistas. A teoria de validade universal e definitiva é uma utopia em ambos os domínios, mobilizadora, ideal mas inatingível no regime de finitude que é o nosso. Tal é o mau serviço que a tradição filosófica tem prestado à cultura ocidental, hoje na iminência do genocídio.


Não é estranho a isto o facto de o filósofo ter sido nestes três milénios eminentemente conservador e oriundo de estratos dominantemente aristocráticos. Com efeito, a melhor forma de garantir a ordem implantada é eliminar a liberdade dentro de cada um. Daí que a filosofia tenha consagrado o já feito. Pretender que isto era a perfeição acabada anularia o inovamento e a ruptura das vontades libertadoras. Tal ocorreu até agora. Com a agravante de que, quando contemporaneamente se tentou inflectir esta linha de rumo, com Marx e afins, ainda se continuou a cometer o mesmo erro (têm a verdade infalível!) e a fechar as portas ao porvir. Este, com efeito, ou é criação livre e comunitária de cada um e de todos ou não passa dum futuro fatalista, imposto de fora, em que a humanidade se esvaziou e vai esmigalhando rumo ao nada.


Numa palavra, com a superação da filosofia sistemática, dogmatista, da pretensão de validade absoluta, inauguramos a era da libertação. Esta só é compatibilizável com a definitiva ultrapassagem de tal método de filosofar e a clarificaçaõ de que a área decisiva da realização humana não é a do conhecimento mas a da libertação actuante de que todo o saber é o servo. Mesmo a sabedoria pura realiza uma opção da liberdade, sem a qual nem chegaria a constituir-se.


Ao dealbar da era da libertação do ocidente dos mitos totalitários que há três milénios o subjugam culturalmente em subtis e variados afloramentos e roupagens, inauguramos a possibilidade dum porvir: o amanhã não está predeterminado, nem tem de ser a cópia escrava de ontem e hoje, antes pode gerar o inédito duma festa de comunhão cósmica ou então o inverso e a cada um e todos compete decidir por onde optar.


Até hoje não foi possível criar uma única filosofia prospectiva justamente porque nos atámos mutuamente de pés e mãos à pretensão totalitária de consagrar definitivamente o passado como idade de oiro: assim apenas o saudosismo faria sentido, a cópia da tradição, o respeito e sacralização da ordem implantada e respectivos privilegiados e vítimas. Andámos sempre de costas para o tempo, vivendo às arrecuas, permanentemente a olhar para trás, a empenhar toda a força em não bulir. Doravante podemos caminhar a direito, cortar as amarras e criar um homem e um mundo diferentes. Foi um longo ludíbrio que nos enganou e tolheu os movimentos. Afinal somos livres e nada o pode impedir, como o demonstra a derrota permanente e sem recurso de quantas tentativas pela história além caíram no ridículo de tentarem parar a humanidade. Somos livres: podemos ser libertadores. Urge reconstruir toda a filosofia a partir daqui, donde jamais deveria ter-se desviado e donde no ocidente vem transviada desde os primórdios. Os ídolos foram desmascarados, é preciso profanar o templo com a vida, para que um dia venha a ser o Homem.



c) A comunhão rumo ao infinito

A superação do preconceito dogmatista do filosofar é doravante facilitada pela destruição da pretensa objectividade universal da ciência. Com efeito, não é fácil hoje manter a atitude de que, primeiro, o conhecimento experimental tem validade definitiva e para toda a gente: nas ciências humanas, hoje como outrora, tal não ocorre, mas também não na microfísica nem na astronomia e a situação tende a generalizar-se. Isto obriga a relativizar e subjectivizar o estatuto tradicional do conhecimento científico e a baixá-lo do pedestal de mentida segurança em que há três séculos tem perdurado imperturbável. Doravante é iniludível a subjectividade do conceito (e respectivas estruturações) que dá conta do dado experimental, bem como da relativa liberdade e arbítrio com que o escolhemos e podemos substituir por qualquer outro eventualmente mais conforme aos aspectos salientados na observação. Basta esta derradeira possibilidade, hoje em dia mais comum e a repetir-se em múltiplas áreas de pesquisa, para se alterar por inteiro a tradicional segurança triunfalista do cientismo. A pretensa objectividade (apesar de tudo real enquanto o dado é perceptível e, portanto, confirmável experimentalmente por quenquer) revela-se, ao fim e ao cabo cada dia mais subjectiva pela linguagem que a tenderia a exprimir: esta é uma criação do sujeito e as marcas deste são indeléveis, por muito que tenham sido secularmente iludidas e camufladas. Doravante é impossível continuar na ilusão. Por outro lado, cada dia se dá mais conta de que o próprio dado é nele mesmo, em grande parte, criatura do sujeito, a começar na artificial criação da situação experimental, mormente em laboratório, mas também em observação de campo, tanto pelas inevitáveis interferências como ainda pela arbitrária selecção do dado e respectivos aspectos (escolha livre do sujeito), o que o abstrai-altera relativamente ao complexo indefinido de nexos em cujo feixe se situa e é, e a terminar na física das partículas em que o próprio dado é ou não é conforme o sujeito em causa, a perspectiva em que se coloca, a estratégia que selecciona e com que actua. Aqui o próprio cientista dá a mão à palmatória e expressamente se vê forçado a considerar que a dicotomia sujeito-objecto não funciona e que a mútua imbricação é inultrapassável, o que conduz praticamente à situação duma área de ciência inconceptualizável em modelos tradicionais. Um outro mito da história da ciência tem, a partir daqui, os dias contados: o do crescimento linear constante, baseado nas conquistas anteriores. Com efeito, tanto a contraposição de leituras irredutíveis acerca dos mesmos dados, como a releitura sobre dados mais precisos em contradição com as teses anteriores da ciência acerca de igual área, obrigam-nos a considerar que, afinal, todas as hipóteses são possíveis, tanto o desenvolvimento harmónico duma linha de pesquisa, alimentado por sucessivas descobertas coerentes entre si, como a superação de fases anteriores por saltos conceptuais que as anulem em virtude da inadequação aos dados por elas revelada e não apenas por insuficiência. Aliás, é sempre porque as descobertas científicas jamais satisfazem que a tarefa continua, o que, no fundo, nos reconduz ao estado de contradição em que o cientista necessariamente tem de encontrar-se frente à ciência constituída: aceita-a para a destruir, superando-a. A superação resulta da recusa do estabelecido e jamais do acatamento. Este apenas conduziria à reprodução, nunca ao inovamento. O inesperado implica sempre a atitude de ruptura por parte do sujeito. Pois bem, doravante ela é também notória nas manifestações: a ciência contemporânea aí está como um manto de contradições irreconciliáveis em múltiplos domínios, com a permanente caducidade (ao invés do desenvolvimento) das concepções anteriores, por insatisfatórias e erróneas relativamente aos novos estádios atingidos, e assim sucessivamente.


Se na cultura dominante este estado geral do mundo científico ainda não entrou e se continua pensando e agindo em função dos postulados de antanho, agora definitivamente mortos, a fermentação cultural está em curso e a irradiação é imparável. A celeridade dos processos sociais hoje em dia não nos obrigará a esperar muito pela generalização das novas modalidades de encarar o científico-tecnológico e a correspondente função humana.


Ora, é aqui que transformações profundas se requerem e se antolham, a abrirem expectativas e exigências inéditas à actual civilização e para as quais não há meios de satisfação ao alcance, por enquanto. O problema é que temos vivido pendurados credulamente da segurança afinal falsa do cientista: toda a organização económico-social, política, à escala nacional e internacional, educativa e até estética tem girado em redor dos poderes que ele nos vem colocando ao dispor. O dia de amanhã é projectado, nas estruturas de poder englobantes, em função da competição que o inovamento inédito permite prever ganhar: seja na multinacional, no cartel da energia, na aliança militar ou na rede de telecomunicações. Com as novas leituras da ciência, a humildade, relatividade e insegurança de quanto desvendam jamais garantirá como boa consciência a inconsciência geral da humanidade acerca dos riscos que corre ao entregar-se de olhos vendados nas mãos da tecnocracia e da pesquisa selvagem, entregues ao mero acaso e à arbitrariedade. Aliás, o fortuito e o aparente arbitrário foram (estão sendo) muito bem aproveitados por oportunistas que souberam explorar em proveito próprio (económico e de hegemonia de poder) a distracção geral dos povos e o logro em que se deixaram embarcar acerca do real estatuto e alcance da ciência e tecnologia. O desequilíbrio mundial actual e a iminência de genocídio planetário não são alheios a isto, antes o seu ponto mais apodrecido, e a dificuldade em mudar de caminho não tem outra matriz: os donos de tudo e todos, assim como não tiveram escrúpulos antes para explorar a inépcia e iognorância alheia, assim agora resistem à reconversão, por muito que a avalanche, a ocorrer, os arraste com os demais ao cataclismo. O oportunista é cego duas vezes porque, para além de enganar os outros, a si mesmo ludibria. Amanhã pode ser o coveiro planetário, enterrando-se no fim também a ele próprio. É a lógica do complexo de culpa que manifestamente o atinge.


Por isto é cada dia mais premente que a filosofia assuma o papel de consciencializadora que lhe cabe, mas doravante sem a ambiguidade multimilenar que a caracterizou. Antes de mais, sem complexos. Agora não há mais segurança na ciência-tecnologia que no filosofar: tudo é provisório e relativo, em ambos os campos. Ao invés, tanto quanto os saberes se vão tornando críticos, tanto mais reduzem a falibilidade, tanto mais sólido fundamento ofertam aos projectos das liberdades, tanto melhor e mais facilmente permitem elaborar consensos. De qualquer modo, tudo é transitoriedade, em todas as dimensões. Transitório é o conhecimento científico, permanentemente superável ou substituível por outro qualquer, mesmo contraditório, no mesmo domínio; transitório é o conhecimento filosófico da interioridade enquanto facto e a contradição entre leituras agora já não tem que estranhar-se, pois até na ciência é hoje normal; mas transitório é também o projecto do Eu livremente escolhido e que vem reger a pessoa e o mundo, incluindo a ciência-tecnologia e a respectiva função nos povos e na cultura. Esta radical insegurança, a relativização de tudo não vai deixar de angustiar e gerar novamente falsas seguranças projectadas onde melhor as máscaras se possam implantar. Enquanto a humanidade não assumir colectivamente que a única segurança definitiva se encontra na consumação do trajecto histórico em plenitude, sempre alguém intentará agarrar-se a algo que lhe esteja à mão e lhe permita cultivar a ilusão de que o absoluto está ali. A única atitude que, entretanto, pode garantir a saúde mental do homem e simultaneamente manter aberta a porta do porvir é a de se ficar seguro na insegurança (mesmo emocionalmente). Compreendemos que esta é a vocação da história e de cada um de nós nela, como seus co-autores beneficiários ou vítimas, conforme o acerto ou erro dos nossos projectos e do rumo da respectiva conjunção à escala planetária e no tecido social e histórico que gerarem. Diríamos mesmo que esta é a primeira grande tarefa educativa da filosofia no mundo de hoje. Se conseguirmos ajudar as pessoas a sentirem-se seguras sem angústias numa cultura permanentemente mutável e duvidosa em todas as premissas, valores e afirmações, começaremos a redimir-nos da crónica alienação em que temos vivido e nos marginalizou da torrente da história.


Neste contexto, porém, a grande mensagem da filosofia é a de que cada um é chamado a assumir responsabilidades próprias quanto ao amanhã, em todas as dimensões que revestir. Não apenas em termos de vida individual, familiar, comunitária, política, até mundial, mas fundamentalmente na complementaridade das perspectivas subjectiva e objectiva do real e mormente na irrupção da liberdade no reino da interioridade que permite a cada um principiar a alterar por iniciativa própria o rosto do Universo, em ambos os ângulos referidos. A gestão do vindoiro jamais foi proposta por ninguém, senão em termos de nova projecção dos ancestrais, de repetição monótona, forçada e entediante do culto dos maiores. As revoluções ainda têm sido isto, como os fanatismos o confirmam (é ver o fundamentalismo islâmico), cristalizando dogmas, massacrando a liberdade. A própria história dita mestra da vida é ambígua: enquanto mestra é erigida em instância decisória e consequentemente para ser repetida e no geral tal é o intuito de quem a perscruta e ministra. É ainda uma forma de criar uma falsa segurança: repousar sobre os mortos. Outra seria a mensagem se fora para lhes recuperar a vida, questionando-os sobre ganhos e perdas no rumo que imprimiram ao tempo, a fim de mais bem armados enfrentarmos por nossa vez o porvir e o modelarmos cada vez mais ao projecto que formos acalentando.


Finalmente o que hoje em dia a humanidade urgentemente precisa de compreender é que não há porvir possível na justaposição-contraposição indefinida das individualidades, com pretensas liberdadezinhas à dimensão do egoísmo de cada um ou da respectiva miopia. A filosofia tem de deixar a pretensão sistemática e das verdades absolutas sempre falsas, para acorrer antes a terreiro a fim de afirmar que o grande fim, a meta da plenitude é que no-las revelará, se lá chegarmos algum dia. Por ora são ideais inatingíveis de que todos nos iremos aproximando, se quisermos, na humildade, na hesitação e na dúvida. Não são dados à partida, não são pressupostos para o itinerário a percorrer, mas, bem ao contrário, uma componente decisiva e exclusiva da chegada, se alguma vez o termo vier a estar-nos ao alcance.


Dito doutro modo: o sonho de cada um implica o de todos, uma vez que a egoidade é o ponto de referência unificador universal em quaisquer sentidos e níveis. Ninguém, todavia, jamais soube o que isto requer e não vale a pena iludirmo-nos: jamais o saberemos. Teremos de o ir descobrindo-construindo degrau a degrau, propondo e expondo (propondo-nos e expondo-nos), na teoria e na prática, sem nunca podermos ter certezas rigorosamente de nada. A melhor intenção e a mais bem fundada no conhecimento da interioridade e universo perceptível pode, ao fim e ao cabo, resultar errada (é o que parece ocorrer com a ciência hoje em dia), bem como a pior opção, a mais destruidora de pessoas e coisas, poderá, a prazo, revelar-se eminentemente construtiva e eventualmente inverter a meta visada por quem dela foi responsável. O filósofo terá de clarificar que há certezas relativas na ciência, experimentalmente comprováveis por terceiros, que as tecnologias aproveitam e nos põem ao dispor, para decidirmos do uso delas; que certezas idênticas ocorrem na filosofia, no âmbito da interioridade estudada como facto, vivencialmente confirmáveis por cada um em si próprio, disponíveis nas pesquisas filosóficas para o uso que quenquer lhes queira dar; que há, finalmente, na filosofia, projectos oriundos da liberdade de filósofos (que todos somos) quando esta passa a agir tentando conformar tudo e todos ao seu modelo, com o intuito de ser universalmente libertadora. Tais leituras mais não são do que propostas estimulantes para despertarem a liberdade responsável de cada um, a fim de esta tentar clarificar se se reconhece nelas como planos onde pode realizar-se até à derradeira profundidade atingível da intimidade do sujeito em causa e, nesta tentativa, dar por sua vez as achegas que permitam rever e reaprofundar indefinidamente tais projectos e respectivos trajectos históricos, rumo ao infinito. Nesta terceira dimensão não há certezas, nem sequer relativas, há apostas dependentes do que é visado e do acerto ou não disto com o que se pretender atingir. Estamos num jogo de espelhos em que o máximo de transparência e espontaneidade garante o máximo de autenticidade. Nem sequer a coacção larvar da certeza, da verdade, da evidência, deve aqui empoeirar a visão da liberdade nem amortecer a reacção da afectividade: a não ocorrer isto, com efeito, estaremos, quando muito, numa situação de menor perda (depende das circunstâncias) e jamais de máximo ganho. A planta frágil da liberdade condicionada que é a nossa murcha ou estiola ao mais pequeno constrangimento, por melhor ajaezado que se lhe apresente.


Então, como manter a esperança de alguma vez nos universalizarmos?




A COMUNHÃO FILOSÓFICA



a) Objectivação do subjectivo


Um problema prévio se coloca: como evitar o solipsismo em que nos parece encerrar o objecto da vivência? Com efeito, se apenas o sujeito tem acesso à própria interioridade, nem ele consegue atingir a de outrem nem este pode atingir a daquele. Sendo assim, a primeira instância do filosofar é um monólogo comigo mesmo. Dada a inconferibilidade dos dados em análise, tanto por referência a outros iguais vividos pelas demais pessoas, como por um olhar que não o meu em minha interioridade, é demasiado frágil a contraprova do conhecimento que nesta área obtemos. A tentação é de considerar que filosofia em estado puro seria isto, uma meditação emsimesmada impenetrável, em que o objecto e o respectivo tratamento se esquivariam definitivamente a intrusos. Seria o Eu em estado puro dobrado sobre ele próprio. É, porém, erróneo. Já vimos como não há dado interno que não apresente um rosto exterior e vice-versa: o que pode e neste caso ocorre é acontecer que se nos antolhe despiciendo numa das facetas, embora decisivo na outra. Com efeito, nós recortamos bem o perfil corporal global de quem medita, inspirador de estatuários e outros artistas. Para além disto, o electroencefalograma e o electrocardiograma registam outras manifestações perceptíveis da mesma atitude. O tónus muscular, a temperatura epidérmica, equilíbrio endócrino e assim por diante vão-se alterando em cadeia durante ela. Não há, portanto, um filosofar puro enquanto exclusivamente íntimo, assim como não há coisa exterior que não figure na interioridade de alguém, por mais subtil que seja esta dimensão dela. O que teremos de afirmar é que a face externa nos não dá, se ficar por isto, o reflectir da interioridade. Ficaríamos no reino da ambiguidade, emaranhados de equívocos se apenas pudéramos recolher da filosofia o que corporeamente se exterioriza no decorrer do meditar. Quedaríamos a zero no discurso filosófico, no que nos pretender ler e propor. Com efeito, desprezamos aquelas exteriorizações como insignificantes para privilegiarmos a linguagem: são as obras dos filósofos que nos remetem para as interpretações e projectos deles e nos desafiam, apenas aqui o silêncio verdadeiramente é quebrado e a ambiguidade pode recuar. Não havendo objecto perceptível, não sendo captável o transcorrer da reflexão íntima é o diálogo ou o texto que nos permitem irradiar as descobertas e as opções, bem como comparticipar das dos outros. Fora desta matriz, o filosofar perde-se na indefinição e resulta ineficaz por incompreensível ou por ambiguidade irremediável.


Reconhecida pela linguagem, a filosofia transgrediu, entretanto, a fronteira do reino dela, tornou-se uma realidade perfeitamente perceptível, tanto na oralidade como na escrita. Nesta até atinge uma fixidez e durabilidade que, à partida, contradizem a fluidez da experiência existencial e da vivência que a permite apreender. Não estaremos perante um paradoxo: quanto mais a filosofia se exterioriza menos filosófica se torna? Ora, aqui geram-se, efectivamente, múltiplos equívocos que convém clarificar para neles não tropeçarmos.


Antes de mais importa verificar que, uma vez incarnado na palavra, o saber filosófico não se exterioriza apenas, mas autonomiza-se relativamente ao autor que o gerou: tal como na ciência, o conhecimento (e aqui também a valoração e o projecto ético) tem um sentido potencialmente referenciável a um número indefinido de dados de tipo idêntico (e assumível, quando entramos no domínio da liberdade agindo-se, por uma infinidade de sujeitos). Mesmo quando o autor já não constata nem propõe idênticas leituras ou opções, até depois de morrer, o que comunicou, no sentido que contém, é significativo e permance ao dispor de todas as consciências. A morte da filosofia elaborada não é a do filósofo mas a do suporte perceptível da mensagem, mesmo oral (enquanto subsistir alguém que a reproduza). Isto quer dizer que o texto filosófico (ou a proclamação) adquirem vida própria que se rege por princípios e leis alheios à interioridade concreta de que falam e ao sujeito que os gerou. Eventualmente, podem mesmo tornar-se-lhe antagonistas e mutuamente repudiar-se ou desautorizar-se: este filho, uma vez posto no mundo, não pertence aos progenitores de modo nenhum e pode sempre rebelar-se mesmo contra eles e até julgá-los. Uma vez procriado, o discurso filosófico cristaliza-se num modelo fixo, corta o cordão umbilical que o unia e alimentava a corrente da interioridade dum sujeito e passa antes a mergulhar e sofrer os sobressaltos da correnteza do universo perceptível, mormente da sociedade e cultura ambientais, que o jogam, ignoram, sobrevalorizam, reinterpretam ou destroem a seu bel-prazer.


A dificuldade é de continuar a chamar-lhe filosofia quando, afinal, nada parece reportá-lo à interioridade real de ninguém, isto já não constitui um dado vivencial mas perceptível, atendendo mormente a que fica divorciado de qualquer egoidade e submetido, ao invés, às leis que regem o universo da ciência. Esta condição dos produtos do filosofar é o maior factor de equívocos quanto ao estatuto e função da filosofia, mormente na educação e igualmente na cultura em geral.


Em primeiro lugar, urge clarificar as dimensões de interioridade que a obra filosófica mantém. Ao contrário do que poderia parecer, não é a vivência que a gerou a que nela permanece como matriz de experiência existencial não percepcionável. Teremos mesmo de afirmar que esta não existe de todo na obra, mas antes nas manifestações que ela gerou, agora alheias a ela e sem mais se reportarem à fonte. Gerada a obra, a raiz ficou perdida lá para trás, não a acompanha, nem, ao fim e ao cabo, tem o trabalho elaborado nada a ver, em si próprio, com aquilo de que se alimentou. Relativamente a este, a interioridade do filósofo é um mero instrumento, um pretexto que, uma vez atingido o texto, ficou superado algures no caminho. As interpretações, leituras, avaliações e propostas da obra não veiculam qualquer interioridade (actualmente a vivenciar-se nelas) mas explicitam apenas sentidos, linhas de rumo, conexões, modelos conceptuais formais subsumíveis a um número indeterminado de objectos independentes dos que lhes condicionaram e estimularam a elaboração e surgimento. Por este lado, não encontramos, afinal, a interioridade, muito embora o texto dela parta e por inferência dela tenhamos notícia, mas atenção: informa-nos apenas dum estado, momento ou trajectória dum Eu de modo perceptível, aquando da criação do texto; ora, isto não é interioridade aqui e agora em acto de ser e assumir-se, é história, um passado, o não-existente enquanto vivência em concreto. Foi, já não é. E mesmo assim o que rememoro pelo texto é necessariamente imaginário, projecção de mim e não o contacto, a comunhão com a autenticidade do Eu do filósofo, uma vez que não sou ele e apenas consigo tentar incarná-lo em mim e confirmá-lo pela minha experiência existencial própria. Mais precisamente: o discurso filosófico, no acto de produzir-se, tem por dentro a dar-lhe a forma e o sentido o próprio eu que o pronuncia e manifesta-lhe um rosto perceptível, é uma perceptibilização da interioridade. No instante seguinte, porém, já este produto subsiste por si, de acordo com a s coisas sensíveis de que é feito e respectivas leis de conservação e mudança. Jamais a interioridade é adequadamente traduzida na linguagem, contudo, como aliás em nenhuma outra forma de manifestação externa. O mesmo ocorre com a exterioridade: nunca o modelo de conhecimento elaborado pela razão esgota e dá conta por inteiro do mais insignificante dado perceptível. Sempre passíveis de transferência mútua, jamais os dados e respectivos conhecimentos são coextensíveis, nem igualmente as respectivas experiências empíricas e existenciais os esgotam, nem a apreensão destas pela consciência, nem a tradução de tudo isto dum domínio para o outro. Restam sempre perdas, insuficiências, traições, desvios. Jamais a filosofia expressa coincide com a intentada nem com a implícita, nem esta com a vivida em pensamento e acto e estes, por sua vez, não chegam jamais a dar conta dos dados vivenciáveis que se pretende apreender e ordenar, projectando-os dentro e fora de cada egoidade.


Se isto, porém, é uma limitação do ponto de vista da pretensão, primeiro, da comunicabilidade do filosofar e, depois, da meta do consenso universal acerca dele, o que nos garantiria uma harmonia intersubjectiva jamais atingida e sempre procurada, a verdade é que manifesta, noutro sentido, o enorme poder que decorre do filosofar quando ascende ao segundo nível e acciona a liberdade projecttando o Eu para além das fronteiras do íntimo e da corporeidade própria. Efectivamente, a marca da proposta, no texto, e as da actividade, nas transformações de pessoas, relações, comunidades, povos, culturas, técnicas, meio físico e assim por diante, que decorrem da tomada de posição teórico-prática de qualquer sujeito acerca de si na vida, ganham uma consistência, uma força e retumbam com um eco tal que ninguém pode à partida prever onde tal terminará. As personalidades que com mais autenticidade se assumiram e viveram marcaram a história e determinaram-lhe o rumo por milénios, muito para além do limite da respectiva sobrevivência biológica. Ora, queiramo-lo ou não, isto é um forte sinal de esperança para quem aposte que a plenitude humana é viável. E mais esperança ainda é de depositar no facto de a egoidade não ficar prisioneira do respectivo fruto, antes ele seguiu caminho regido pela força interior que o projectou, enquanto esta permanece liberta para novas apostas, novos empenhamentos, outros desenvolvimentos, até eventualmente para rever e anular o movimento desencadeado.


A mútua autonomia entre o autor e a obra impede-nos de afirmar nesta uma interioridade por referência a ele. Não, o que de vivencial ela manifesta é apenas o que o leitor ou ouvinte dela interioriza. Ora, como se trata duma interpretação e ordenamento expressos da interioridade de alguém, a dimensão que lhe é atribuída por quem a interpela pode revestir variantes muito vastas. É aqui que os equívicos são maiores. Na verdade, um discurso filosófico é uma coisa a que acedo por percepção como qualquer outra coisa do universo exterior. Daí que seja extremamente fácil (e é a propensão maior) abordá-lo como qualquer outro dado empírico, isto é, numa relação eu-ele. Quer dizer, o desvio mais vulgar é a confusão com o filosofar dum discurso que afinal é feito na terceira pessoa; não falo de mim mas dele, não me descubro e oriento a mim, mas revelo a descoberta e itinerário doutrem, o que nada tem a ver com a filosofia e respectivo objecto. Ainda maior é a confusão quando se não tomou consciência de que estoutra abordagem é tão legítima como a filosófica. É, aliás, porque se não acata isto que depois se pretende que todo o tipo de pesquisas e reflexões a partir dum texto filosófico são filosofar. Ora, o discurso acerca dum objecto coisificado e nesta qualidade observável (nem que isto seja a expressão duma egoidade) não diverge em nada daquele que empreendemos acerca da experiência empírica (de que a filosofia construída faz parte) e, por conseguinte, pode relevar, se ultrapassar o mero senso comum, da pesquisa e conhecimento científicos. Estamos no reino do experimentável e nada pode justificar a pretensão de excuir dele qualquer produto do filosofar – à semelhança de como já é pacífico que se não exclua a abordagem experimental dos actos e dos rumos que a vida concreta tomou nos filósofos-sujeitos em causa. Estamos sempre no domínio do vector perceptível da experiência, todo ele abordável, sem excepção, pelo método experimental.


Uma deturpação mais subtil pretenderia que o cientificável teria legitimidade e abarcaria as abordagens dos componentes físicos do discurso filosófico produzido: materiais, reconstituição de originais, confronto de testemunhos, reconstrução dos contextos sociais, históricos e linguísticos em que a codificação da mensagem se produziu. Para estes, então, a partir do momento em que abordássemos as interpretações e propostas do filósofo, quando entrássemos no reino dos sentidos, aí estaríamos já a filosofar. Ainda não é verdade, porém. Isto continua a ser a análise dum objecto exterior, uma estrutura linguística, um modelo semântico, uma hermenêutica empreendida por alguém e de que disponho ali perante mim de modo perfeitamente observável. Ao proceder a toda esta tarefa, eu, enquanto sujeito, ainda não analiso nem digo nada de mim e, quando muito, sirvo-me da minha experiência existencial para compreender aqueles dados. Não os utilizo para ler-me em meu íntimo, para me projectar a mim próprio. Acolá continuo fora do filosofar, estudo um objecto que ainda nada tem a ver com a minha interioridade, não recorro ainda à vivência que de mim tenho para analisar-me, conhecer-me, definir o que de mim pretendo e, em função disto, determinar a aventura que irei implementar.


Quando, porém, deixo de encarar o discurso filosófico doutrem enquanto realidade por si e ele me importa enquanto hipótese de me encontrar, compreender, assumir e poder caminhar mais longe, isto é, quando lhe atribuo o estatuto dum instrumento em que vou apoiar-me, livre, para tentar conseguir com tal ajuda libertar-me mais a partir de dentro, visar a lonjura por mim além, então inaugurei o diálogo filosófico e a minha linguagem e trabalho saltaram do discurso científico para o filosófico. Em resumo, deixei de falar dum ele para falar de mim. A filosofia só existe quando eu me falo. É sempre um discurso na primeira pessoa e apenas isto.


A clarificação das duas vias de abordagem da mensagem do filosofar permite limpar o terreno de inúmeras confusões, das quais a mais grave é a que pretende que, depois de tudo, como a filosofia só é algo de eficaz a partir do momento em que é linguagem, então, como a partir daqui a ciência a pode, por múltiplas disciplinas, pesquisar, filosofar não seria de todo imprescindível e também por esta via poderia sem perdas ser substituído pela investigação experimental. Ora, nesta, o filosófico do filosofar é, em absoluto, impossível, como discurso na terceira pessoa que a ciência inelutavelmente tem de ser. Aqui o sujeito jamais pode falar de si enquanto Eu, apenas de quanto de não subjectivo pode descortinar em qualquer objecto, mesmo nele próprio. Ora, filosofar é reglectir-me. E só. Isto ou não ocorrerá jamais ou terá de acontecer filosofando. Para tal a ciência padece de impotência absoluta.




b) A ambiguidade da recepção do filosofar


A mediação de mim para mim próprio que a filosofia doutrem me permite, se pretendo por minha vez filosofar, não é, entretanto, operação linear nem obrigatoriamente autentificadora de mim mesmo. Se nem sempre a investigação experimental conduz a um conhecimento científico, uma vez que a descoberta é irremediavelmente aleatória, igualmente a vivência, apesar de todas as ajudas com que conte, pode abandonar-me a meio caminho ou num beco sem saída na apreensão de mim e no meu projecto de ser. No âmbito experimental, o fracasso raramente parte de intentos consumados ou não doutrem a que o investigador dê continuidade e jamais pode vir justapor-se, sem a anular, à descoberta anterior por a esta falhar a respectiva confirmação: a objectividade do conhecimento científico impede isto e torna inútil em grande parte aquilo. Na filosofia, porém, a situação é outra, mesmo admitindo que se não cometem os erros e desvios atrás referidos e, consequentemente, que o estatuto atribuído à mensagem elaborada é o duma assunção autenticamente filosófica.


À partida há duas atitudes contraditórias possíveis de acolher a reflexão doutrem para conhecer-me e agir-me: uma em que me deixo livre perante a proposta, a outra em que me imponho um dever preconcebido relativamente a ela. Não saímos do âmbito do filosofar, em qualuqer das trajectórias predeterminadas que daqui decorrem. Entretento, a primeira pode levar-me à descoberta e realização de mim próprio, no que de mais autêntico consiga descortinar e assumir em minha intimidade; a segunda termina necessariamente numa alienação de mim mesmo. Naquela, o filosofar ordena-se ao sujeito e respeita-o, mesmo sacrificando a filosofia elaborada; neste, o filosofar ordena-se à filosofia elaborada e respeita-a, sacrificando-lhe o sujeito no que tiver de único e divergente da lógica requerida pela atitude prévia.


Se eu pretendo filosofar, tomando consciência de mim, de modo a ordenar-me e empreender um rumo de vida correspondente ao que conseguir auscultar no meu íntimo de mais radical e no qual reconheça maiores potencialidades de me encaminhar à plenitude, então o papel instrumental de toda a filosofia constituída não sofre quaisquer reservas nem limitações, eu utilizá-la-ei a meu bel-prazer, conforme me sirva ou não para eu atingir o que me proponho. Neste sentido, nem sequer a explicitação da minha própria filosofia pode resultar doutra matriz, isto é, não filosofarei porque, em função e por referência ao que outros filosofaram mas uma vez mais em função e para a plenitude de mim e tanto quanto esta dependa, se acelere, aprofunde ou tenda a universalizar-se através da entrega a público da minha filosofia. Quando lemos a produção filosófica constatamos que em geral ela há muito deixou de derivar desta matriz: não é por acaso que se nos antolha (e à cultura contemporânea) tão insignificante e alienada das pessoas reais e dos problemas contemporâneos. Ela nunca se elabora a partir delas nem destes, nem para servi-las superando os obstáculos. No geral, aliás, não chega sequer a ser filosofia mas reflexões sobre coisas exteriores e perceptíveis sem qualquer autodefinição pessoal perante elas, isto é, são conversas acerca do mundo empírico, jamais filosofia e muitas vezes nem sequer ciência, mas variações à roda do mero senso comum que a nada levam senão à diversão, a criar tempo, quando muito.


Um outro preconceito que interfere na primeira atitude e muitas vezes com ela se confunde deturpando-a é o de que o autêntico filosofar, por ter de corresponder à autenticidade do sujeito que o protagoniza, terá de manifestar-se obrigatoriamente em ruptura, em divergência com a filosofia doutrem. É o vício do individualismo (muito bem acobertado de cartesianismo) que pretende que isto de respeitar-me e partir de mim é o mesmo que isolar-me e tornar-me auto-suficiente, com exclusão e contra os demais. A inveja e o despeito não são geralmente alheios a isto. Efectivamente, neste modo de discorrer acerca de mim eu sirvo-me doutro sem me escravizar a ele, mas a inversa já não é verdadeira porque o pretendo submeter a ele, tanto quanto tal depender de mim. Não se situo como igual mas como senhor de tudo e todos e os outros voto-os ao desprezo em tudo quanto ultrapasse a instrumentalização que deles preconizo. A versão mais comum desta deturpação é a de reduzi-los a escabelo de meus pés sobre que proclamo ao mundo a minha superioridade, a minha soberba e orgulho, ao fim e ao cabo a minha infalibilidade. É óbvio que tudo isto manifesta apenas quanto sou arrastado por uma vontade de poder inconsciente que por dentro me domina, quanto estou sendo fruto dum enorme complexo de inferioridade em vez de conseguir ser eu próprio soberano e senhor de toda a minha interioridade, para principiar. Tenho o meu Eu subjugado em vez de autónomo, títere no vórtice de forças que dentro de mim me jogam como um boneco ao sabor dos determinismos cegos delas em lugar de a minha egoidade as enfrentar, caracterizar, delas tomar posse e encamunhá-las harmoniosamente no itinerário que eu tiver traçado à minha vida. O desvio filosófico é aqui subtil e escapa a qualquer olhar menos atento. Uma coisa é instrumentalizar a filosofia enquanto produto de alguém que se separou deste e, portanto, se tornou um mero condicionamento externo para o exercício de minha liberdade; outra coisa é pretender e tentar efectivar a instrumentalização para além das coisas exteriores (produzidas ou não por sujeitos) de modo a tentar atingir o Eu dos outros e reduzi-los a mero utensílio em meu proveito a quem quero impor o meu projecto, a quem pretendo modelar conforme o que delineei para tudo e todos passando-lhes por cima. A minha pretensão à soberania absoluta é apenas o sintoma da minha doença e a destruição por dentro de mim da possibilidade de ir criando a minha autenticidade. Cortando com o outro, como já vimos, cortei a única via para um dia me poder encontrar a mim próprio, condeno-me definitivamente e sem qualquer alternativa, mesmo como sujeito. Caí no inferno: “o inferno são os outros “ de Sartre levou-o coerentemente a apoiar, por fim, o comunismo concentracionário – a chacina universal.


No fundo, o que do ponto de vista da trajectória do filosofar aqui é um desvio é que ainda estou filosofando, não em função de mim e do que em mim consigo constatar, avaliar a unificar, projectando-me cada vez de modo mais universal, mais englobante de tudo e todos, no respeito, desenvolvimento e realização de quanto e quantos (e é a universalidade dos seres sob a universalidade dos respectivos modos, em todo o tempo e lugar) eu solicite à comunhão, à plenitude, mas antes em função da filosofia elaborada frente à qual me não situo como livre e disponível, em transparência, mas antes com medo de que me aniquile ou aliene de mim próprio, como se algo de exterior a mim ou algo de minha interioridade alheio ao meu Eu e à vontade que comando e com que me imponho a mim e ao universo exterior, como se algo pudera alguma vez ter tal poder sobre mim além de mim próprio. Esta atitude em que me coloco em estado de dependência perante a filosofia constituída é que se me torna intolerável e a revolta que eu deveria virar contra o meu desvio para corrigi-lo, transfiro-a, ao invés, para a filosofia que me propõem. Então corrompe tudo: como o erro não é reparado, não só se mantém e alimenta indefinidamente como me impede de livremente dialogar e utilizar o que me é proposto apenas em função do que de verdadeiro e bom dele possa confirmar em minha própria interioridade. Ora, a verdade é que apenas isto conta no autêntico filosofar, tudo o mais é perverso e me leva à perdição ou, pelo menos, me impede de encontrar-me e projectar-me para ser cada vez mais Eu mesmo, cada vez mais Nós com os outros e o Universo (o que é um e o mesmo movimento, como atrás demonstrámos e a universalidade da projecção do Eu implica inelutavelmente).


A primeira modalidade de acolher a filosofia doutrem redunda indiferentemente tanto em concordâncias como em discordâncias e nem umas nem outras são procuradas mas brotam por acréscimo do facto de eu tentar, com o instrumental conceptual disponível, tomar posse de mim e orientar-me a partir da minha própria vivência e jamais por outra instância qualquer, por mais nobre e digna que se me antolhe ou ma figurem. Não poderei, neste contexto, nem deixar-me inibir pela grandeza dum nome nem vangloriar-me contra o anonimato dum ignorado. Noutros termos, a filosofia constituída situa-se perante a minha liberdade rigorosamente com o mesmo estatuto de toda a outra realidade quando decido agir-me: sou eu que lhe determino o sentido, a função e o alcance, por referência ao que de mim pretendo fazer. E não posso tomar em consideração, se pretendo filosofar a sério, nenhuma outra matriz de determinação, seja exterior ou interior, que não eu projectando-me a partir do perímetro da minha liberdade.


Não posso iludir-me também: isto é dificílimo de atingir-se e apenas por aproximações graduais e jamais acabadas é que eu me encontrarei sem mistificações. Normalmente eu acabarei sempre por confundir fantasmas que me inibem ou bloqueiam com a autenticidade do meu querer liberto, tanto mais quanto mais inconscientes forem os respectivos mecanismos e pulsões. É mais fácil autonomizar-me frente a estrangulamentos culturais, sociais e da exterioridade em geral (nas dimensões fundamentais com que me apareçam) – uma vez que a estes eu facilmente os posso constatar, denunciar e combater. Quando os demónios têm o ancoradoiro primordialmente nos abismos do interior é quase impossível exorcizá-los todos e definitivamente. Aqui o meu grande adversário sou eu próprio naquelas dimensões de mim que não consigo apreender e dominar e que por sua vez me transformam em marioneta, em maior ou menor grau, e ainda por cima inconsciente disto ou, pior ainda, convicto de que aquilo é que sou autenticamente eu próprio. Não há pior escravo do que quem interiorizou em si o respectivo dono: para o eu a pior escravidão é a de ele confundir-se com as dimensões e energias cegas da interioridade que o jogam ao acaso e vir a defender tal estado como sendo ele próprio e correspondendo ao que pretende. As neuroses e psicoses são a ponta de icebergue deste equívoco; o suicídio, o termo dele.


Todos os desvios reportados são manifestações já da segunda modalidade de enfrentar a filosofia e, como vemos, todos são o fracasso do filosofar e, com ele, do sujeito. Há, entretanto, duas outras atitudes mais comuns desta alienação e que chegam a passar culturalmente como autênticas, senão as únicas capazes de nos entremostrarem a verdadeira plenitude final.


Numa delas, o sujeito submete-se à doutrina do luminar e torna-se tomista, agostiniano, platónico, aristotélico ou então marxista, sartreano e, mais genericamente, existencialista, personalista, empirista... No extremo desta perversão situa-se o clubismo fanático, o partidarismo, hoje em dia tão dramaticamente destruidor nas conflagrações bélicas e nas ditaduras de qualquer colorido. O fruto da alienação filosófica é sempre genocida quando se generaliza, como é suicida a nível individual. Aqui o desvio consiste em considerarem tão grande o génio a que aderem que passam a adorá-lo: o endeusamento desvia a atenção da minha interioridade para a proposta do outro, apenas neste me revejo, apenas me legitimo na convergência e espelhamento dele, só valorizo o que de mim lhe posso, ao fim e ao cabo, sacrificar, a saber: eu próprio. Não há filosofar possível em tal contexto, como não há sujeito que salvemos, pessoa que alguma vez construamos. A tragédia dos mais generosos reformadores da história é que a libertação que principiam se transmuda, na própria mão dos discípulos mais dilectos, numa escravidão: estes acabam perdendo a coragem de assumir-se, de serem, ante o fulgor do mestre (ou este os esmaga deliberadamente, cego pelo próprio esplendor: é ver Freud contra os alunos imediatos, Marx contra dirigentes que inspirou...). O fanatismo religioso é pautado por igual padrão (da Guerra Santa à Inquisição, às guerras religiosas de antanho e de agora). Quando o Eu não se liberta interiormente (ou de fora lhe impõem que o não tente) não há mais filosofar viável, pois a pesquisa da própria interioridade é bloqueada: a partir daqui toda a trajectória da pessoa é alheamento dela mesma e escravidão a outrem, reduz o Eu a um instrumento de alguém e jamais princípio de iniciativa própria e criador universal de sentidos e rumos. Impedido disto é impedido de filosofar tanto quanto de ser.


Mas igualmente o está na atitude contraditória desta e pelas mesmas razões. O repúdio sem apelo (do marxismo como o do cristianismo ou outro qualquer) é um apriorismo em que o sujeito não está agindo em função dele próprio e do que no íntimo constata e ordena, mas antes deixando-se arrastar por impulsos e movimentos que de fora e por dentro o jogam como se fora qualquer coisa do mundo físico, escrava dos determinismos que o regem. O fanatismo de rejeição é exactamente tão alienado como o de adesão: em qualquer deles a egoidade ignora-se a ela mesma, desiste de realizar o projecto de assumir-se e arrancar a partir do mais fundo da própria interioridade. Submete-se a condicionamentos alheios à liberdade íntima, confundindo-a com aqueles e sujeitando-lhes a vontade própria. Ora, era o Eu que tudo deveria comandar em função dele mesmo e do que entender assumir de si como prometedor e válido para a plenitude absoluta, num horizonte final de infinitude. Nada disto é exequível enquanto a dependência frente ao que não for a própria liberdade se mantiver, mesmo que tal escravatura seja doirada pelo próprio com as cores mais arrebatadoras: a igualdade, a liberdade, a fraternidade, o comunismo, o socialismo (de rosto humano ou não), a democracia, a salvação (pessoal ou da alma), e tantas mais ideias-força alheias não assumidas, não joeiradas pelo íntimo, em nome ou contra as quais continuamos sacrificando o porvir, suicidando-nos planetariamente. A corrida ao não-ser tem belos ancoradoiros, fortíssimas organizações (partidos, igrejas, governos, organismos, movimentos...) mas não é por isto menos desastrosa, não nos deixa menos tolhidos.


O equilíbrio ocorre naquele que interiormente é capaz de olhar a proposta doutrem sem inveja nem medo, sem subserviência nem ira, mas apenas no que ela é: uma possibilidade de melhor se compreender, dominar e projectar realizando-se, rumo à comunhão harmónica consigo, com os outros e o Universo inteiro, na expectativa duma partilha infinda na infinita união final. Quem foi capaz de entrar na vereda estreita e deu o primeiro passo inaugurou já o convívio derradeiro que nele principiou a ser já, porque o próprio Eu principiou a ser. Todo o atingível se torna a partir de então viável: a aventura retomou a exploração do território ignorado violando-lhe as fronteiras.




      1. A comunhão totalizante

Se todos filosofamos apenas quando nos apreendemos na própria interioridade e nos projectamos a partir de dentro, pela corporeidade, sobre todo o universo existencial-empírico, a questão que se levanta é como operar isto, por um lado sem instrumentalizar nem ignorar os outros sujeitos (o que tenderia a anulá-los, a destruí-los) e, por outro, englobando-os harmonicamente de tal modo que a minha leitura-projecto de mim seja a deles e vice-versa. É que, doutro modo, uma de duas: ou eu os aniquilo, escravizando-os a objectivos exclusivamente meus que os excluem e eventualmente os matam enquanto interioridades ou mesmo fisicamente (o mundo concentracionário nazi-fascista-comunista-totalitário continua desgraçadamente a vitimar o outro que não converge com o projecto dum Eu, o do ditador e respectivos reprodutores ); ou então anulo-me a mim próprio ou sou vítima doutrem que me ignora e se projecta sem ter-me em conta nem reservar-me qualquer direito a assumir-me como um sujeito (a escravatura declarada ou larvar continua um pouco por todo o lado, até com tráfico internacional, e não é apenas para alimentar a prostituição rica centro-europeia nem para alargar haréns de nababos árabes, nem se limita apenas a guarnecer as linhas de exploração de alto nível da Máfia e quejandos submundos de crime organizado). Todo o filosofar autêntico tropeça neste escolho onde antes se estatelam quantos irresponsavelmente avançam com a melhor ou pior das intenções, desde o revolucionário ao marginal, sem darem conta da dificuldade ou pretendendo resolvê-la por soluções equívocas pretensamente evidentes. O que mais distorce aqui a visão é permanentemente a confusão entre a corporeidade e o íntimo, provocada pelo facto de a interioridade jamais estar plenamente compreendida, assumida e unificada pelo Eu no projecto pessoal de ser que deliberou talhar-se. Por via da franja persistente de rebeldia da interioridade que funciona com determinismos idênticos aos do universo perceptível, é fácil tentar e conseguir condicionar a liberdade doutrem de tal modo que ele se torne mero reflexo obediente dum projecto alheio. A fragilidade duma liberdade condicionada como é a nossa fragiliza por arrastamento a egoidade (enquanto faculdade de unificar-me intentando unificar todo o Universo), a ponto de cada sujeito, submetido a condicionamentos calculados e violentos (mais ainda se a violência é doirada como no condicionamento operante que me impele através de prémios e benesses), cada sujeito ficar de facto praticamente anulado, tornar-se um autómato em mãos alheias. Daí ser comum a confusão entre isto e a realização humana, tanto ao nível da pedagogia (ensino programado), da economia (publicidade e consumismo), da democracia (dogmatismo da democracia, da revolução), como até da arte (modas, mesmo de vestir, escolas). Em tudo isto e muito mais o íntimo e o respeito da autenticidade dele é comummente postergado. Não servem o homem, pretendem que ele sirva o intuito de alguém que nem conhece. É-lhe recusado o direito de ser autor mas apenas o de ser agido a mando mais ou menos camuflado doutrem.


Este estado de coisas decorre da convicção-constatação de que, a não ser assim, nos engalfinharíamos uns nos outros e regrediríamos à lei da selva, do homem lobo do homem. Urgiria, então, reduzir as margens de actuação da liberdade individual de tal modo que, à partida, possamos garantir que a mútua destruição não ocorrerá. Isto é, partimos duma atitude de desconfiança quanto à probabilidade de nos entendermos, fruto duma experiência histórica multimilenar em que, efectivamente, a quebra da rédea de controlo do grupo degenerava no mútuo assassinato (lutas fratricidas, justiça de sangue, guerra de tribos, clãs e povos afins, como a nossa disputa histórica com a vizinha Espanha por concorrência de soberanias). É uma solução que a prudência acabou por impor mas que não ultrapassa o efeito de menor perda; o maior proveito teoricamente provirá do respeito integral da vocação de cada Eu e, por conseguinte, da maior margem viável de autonomia em ordem à máxima libertação pessoal-universal. Promover condições sociais e subjectivas para isto é que é altamente problemático e o avanço tem de ser gradual, duma rigidez nos mútuos relacionamentos, submetidos a estreitos controlos do poder sócio-político, rumo a uma flexibilidade e uma cada vez mais larga atribuição a cada um de possibilidades e domínios de autoafirmação-proposta para tentar conjugar-se com os demais.


Posto isto, vários aspectos urge clarificar. Antes de mais temos de recusar como anti-humana e em absoluto impeditiva da consumação da plenitude pessoal a atitude extremada que pretende definir o sujeito como fautor da destruição do outro (“o inferno são os outros”, “o homem é o lobo do homem”...). Esta leitura pretende, no fundo, legitimar a prepotência, o totalitarismo da autoridade de qualquer tipo (até dentro de casa, com o patriarcalismo levado ao extremo). Sempre teremos de opor-lhe a pergunta: se cada um é princípio de morte para o outro, como é que o não será para todos o detentor do poder? Eesta contradição é insolúvel e invalida quanto a lógica da ditadura pretenda arrrogar-se. Por outro lado, se alguém pode ameaçar outrem é porque igualmente o pode salvar: de cada Eu depende a revelação do Tu em cada outro, bem como a recusa de o promover, por inteiro ou parcialmente. A ameaça decorre de corrompermos a possibilidade de construir. O erro da leitura em causa decorre de transformar metade da realidade na realidade inteira. Nem sequer sociologicamente confirmamos que o sujeito é aniquilador dos semelhantes, doutro modo a humanidade não existiria nem se expandiria como hoje ocorre, a ponto de a explosão demográfica ser tanto problema como a extinção da espécie. O risco desta subsiste, com agravamento paralelo, mas em simultaneidade com aquela. Em conclusão, perante o Eu, o Tu é simultaneamente a possibilidade de encontro dum deus ou dum demónio. Esta ambiguidade é insuperável à partida, decide-se no acto em que mutuamente se encontram (aqui definem o estatuto do encontro: para se construírem ou destruírem) e renasce após ele tanto porque cada um se mantém livre perante o praticado a fim de o reinterpretar, revalorar, reordenar, como, em função disto, alterar o rumo do relacionamento no porvir que das liberdades íntimas decorre quando se investem por ele além.


Assim sendo, não vale a pena alimentar ilusões: não é por presumirmos a existência duma subjectividade comum a todos, nem um sujeito transcendental, nem uma consciência lógica absoluta ou por outro artifício qualquer das nossas construções concepruais que encontraremos o caminho que desemboque na universalidade do projecto pessoal de ser. Tudo isto são ainda mediadores que, embora indispensáveis e insubstituíveis, não passam de pontes que eu tento lançar entre mim e o outro. O que definitivamente nos permitirá a comunhão é, primeiro, o reconhecimento mútuo como sujeitos de idêntica natureza, a partir da conferência das leituras que fazemos das nossas interioridades, em quaisquer que sejam os elementos, componentes, funções e dinamismos, e, em segundo lugar, a partir daqui, a livre adesão-comparticipação de cada um num projecto de porvir que prometa a realização em plenitude de cada um e todos, canalizando em tal aventura o Universo inteiro. Ora, todas as tentativas filosóficas de atingir uma primeira verdade evidente (pelo menos) situam-se ao nível da primeira fase, a da solicitação para o encontro de reconhecimento mútuo pela busca da convergência de todos no acatamento de que naquilo coincidimos, ali estamos de acordo. O limite de tal intento é que o dado isolado e reconhecido se pretende identificado de modo absoluto e universal por ele próprio: isto é erróneo porque, à partida, apenas o reconhecimento dele pelas demais consciências subjectivas como existindo na interioridade do Eu a que pertencem e estando a ser correctamente interpretado, apenas isto lhe garante a universalização. Não é mesmo possível encontrar um dado qualquer da interioridade (como do mundo exterior) que por ele próprio seja absolutamente necessário: tudo é contingente, poderia perfeitamente não ser nada. Muito menos qualquer construção cognitiva relativa a ele poderá pretender tal ilusão. A falência histórica de todos estes esforços filosóficos demonstra ao vivo o equívoco do pressuposto de que partem. A universalidade não pode resultar de algo fora da liberdade e consciência cognitiva pessoal nem que as anule, mesmo que seja por torná-las inúteis (como aqui ocorreria se as tentativas referidas não foram efectivamente goradas). Em conclusão, a leitura de mim enquanto realidade vivencial só terá validade na medida em que consiga o consenso dos demais por confirmarem os dados e respectiva interpretação neles próprios (tal como a objectividade do conhecimento científico apenas é garantida pela comprovação experimental e jamais por qualquer pretensa universalidade dum discurso acerca do que quer que seja). Â fome de segurança e a impaciência de esperar pelo encontro não devem levar-nos ao desespero de tentarmos becos que hoje como sempre apenas nos encurralam, impedindo-nos de chegar onde afinal podemos ir se formos mais humildes e realistas e se queremos respeitar os outros até ao fim, bem como ao objecto de estudo e acção sobre que inquirimos e pretendemos agir.


De igual modo não fazem sentido as tentativas historicamente recorrentes de elaborar, em função duma afirmação erigida em pedra angular, todo um sistema de deduções naquela implícitas, na absurda pretensão de tudo reduzir a uma unidade conceitual e, ao invés, de estender esta até abranger e fundar a realidade inteira, em todos os níveis e aspectos. É óbvio que continuamos a laborar no mesmo erro: pretende-se, através do impositivo que para a nossa razão tem o raciocínio dedutivo, tornar inútil a comparticipação autónoma do outro, o juízo de consciência dele em função da respectiva interioridade. Ele encontraria já tudo elaborado, nada mais lhe restaria que obedecer escravo e grato às exigências da respectiva razão. Não negamos que facilitamos o consenso tanto mais quanto o dado de partida e a conceptualização dele forem óbvios e indesmentíveis e, por outro lado, quanto mais rigorosa for a construção dedutiva. Este efeito é claro e por isso também tais tentativas acabam sempre por ser retomadas expressa ou implicitamente. O que repudiamos nisto são dois aspectos. O primeiro é o de decorrer do cepticismo com que encaramos, afinal, as probabilidades de nos entendermos mutuamente, de este processo continuar a consagrar uma suspeita radical acerca do outro, incompatível com o respeito que ele me merece, com a expectativa legítima que ambos podemos-devemos ter no encontro mútuo e, finalmente, com a necessidade de ambos estarmos com toda a autenticidade que pudermos neste esforço de darmos as mãos. À partida, ao filosofar assim, eu não confio na capacidade de autoconsciência e liberdade do outro e pretendo envolvê-las o menos possível na comunhão, em vez de tentar empenhá-las ao máximo para maximamente podermos crescer e fazer caminhar o mundo. O segundo aspecto é o de que tal método é eminentemente pobre na potencialidade de investigar, uma vez que tende a limitar-se exclusivamente a um dado de partida quando a interioridade consta duma infinidade tão vasta deles como a realidade exterior. Na pretensão de vergar o outro em vez de o promover à liberdade, quedámo-nos numa enorme miséria de realidade, inconscientes de nós e inermes perante o projecto que pretendemos levar a cabo. Um efeito secundário desta atitude e que leva também a repudiá-la é que o outro, vítima de suspeita, desconfiança e descrédito, reage defendendo-se, reproduzindo idênticas atitudes perante quem assim o despreza. Em vez de preocupar-se com o encontro-acordo, centrando-se nas convergências possíveis, tenta antes proteger-se vasculhando qualquer insignificância em virtude da qual se liberte da opressão do sistema que lhe querem impor, destruindo-o: a história da filosofia é apenas a demonstração deste massacre mútuo interminável.


Os filósofos perdem o tempo a atirar os livros à cabeça uns dos outros, no que afinal prestam um óptimo serviço à humanidade que assim pode respirar livremente, dado que os tiranos-aprendizes, criadores de sistemas, se liquidam mutuamente e a consciência e arbítrio pessoais podem continuar a exercer-se fora do terrorismo da pretensa evidência primeira e da dedução infalível universal a partir dela. Em conclusão, tal como a ciência não tem de ser sistemática, constituindo as teorias englobantes (gravitação universal, relatividade, quanta...) apenas uma resultante conceptual provisória por regiões de conhecimento e em determinados períodos históricos, assim também no filosofar, enquanto respeita aos dados da interioridade na qualidade de factos, estruturas, funções e pulsões, podendo conseguintemente haver investigações isoladas, sectoriais, de vastidão maior ou menor e com ângulos de focagem diversificados, tanto como teorias de conjunto; as realidades, aqui como no pendor perceptível, não se apreendem por deduções mas pela vivência indutiva e apenas as poderemos compreender e aprender a dominar por reflexão sobre dados da observação interior acurada da experiência existencial. Tanto assim é que os sistemas filosóficos históricos são sempre mais postos de lado em virtude de dados de facto (ou perspectivas outras deles) que se contrapõem aos pretensamente evidentes do alicerce do sistema do que propriamente por falência das deduções neles explicitadas que nem chegam em geral a ser tidas em conta. É sempre nos pressupostos que se vai bater e por ali tudo se revela precário, fazendo esbarrondar-se o edifício inteiro. Acontece, porém, que, igualmente, em determinado sentido, não é difícil reconhecer validade às leituras em causa; elas acabam por não interessar nem ter acolhimento justamente em virtude do pendor agressivo, ameaçador e subalternizante para o Eu que infalivelmente comportam quando seguem o método da verdade evidente aliada à dedução. Nada disto subsistirá a partir do momento em que humildemente me estude e proponha minhas descobertas à confirmação do outro, confiante e desprendido, sem pretender à partida aboli-lo com a pretensão de ter descoberto qualquer verdade absoluta que valha por si contra tudo e contra todos (e será sempre contra o outro que afinal o afirmo, pervertendo à partida qualquer possibilidade de diálogo autêntico porque livre e sem temores de parte a parte e, portanto, desarmado e sem qualquer necessidade de defesas).


Finalmente e porque a mensagem filosófica ultrapassa o âmbito do conhecimento culminando numa proposta ética, na qual exprimo e proponho o meu projecto de ser que tenta envolver tudo e todos em todo o tempo e lugar, aqui a humildade e disponibilidade têm de ir até ao extremo, para tenderem a ser totais em múltiplos sentidos. Antes de mais, como só poderei ir até ao fim de mim próprio se no trajecto que seguir os demais igualmente forem (não me descubro senão através dum Tu, só em comunhão com o outro me aproximo da raiz de mim, realizando-me em plenitude como já vimos), como tal é a condição-chave que me constitui como um Eu, tenho de eliminar qualquer pretensão de o meu projecto ser evidente, impor-se por ele próprio a qualquer liberdade alheia. O meu rumo é livremente escolhido por mim e só pode ser livremente acolhido ou rejeitado por outrem. Eu apenas poderei convencer e convidar. Não pelos argumentos duma lógica dedutiva (mero auxiliar secundário útil mas jamais fundamental), nem em virtude de qualquer evidência, uma vez que estamos na construção do porvir, criação nossa que só pde evidenciar-se como criatura a engendrar pela vontade livre e jamais como dado que se lhe impõe e a que ela não poderia contrapor-se, forçada que seria pela razão prisioneira duma prévia verdade absoluta.


Convencerei tanto quanto a prática do projecto revele corresponder aos valores por que optei e a que terei de solicitar a adesão livre dos demais, sempre capazes de os repudiarem e deliberarem por outra escala de prioridades e conseguintemente outros rumos de vida e de história. Jamais há outro caminho que não seja o de no íntimo conferir as divergências pelas experiências existenciais que lhes correspondam, para permanentemente rever valores, opções e itinerários, de modo a cada vez mais os tornarmos abarcantes de tudo e todos, numa gradual tentativa de universalização a que se impetra infatigavelmente a adesão universalizante dos outros. É uma trajectória infindável de mortes e ressurreições, em que cada um busca o reconhecimento dos demais e se tenta reconhecer neles, sempre a partir da autenticidade possível do eu em cada momento e fase do respectivo desenvolvimento.


Neste domínio é a liberdade que está em causa, não há verdades nem conhecimentos directamente em jogo mas a pessoa enquanto eu-em-construção a requerer a comunhão dos demais eus, numa tendencial união ao infinito. Cada um, portanto, é juiz de si em última e única instância, a que de fora podemos apenas dirigir convites e mais nada. A mera pressão para que decida num ou noutro sentido já diminui o Eu, a liberdade não é logo assumida por inteiro, a vontade é diminuída, o encontro entre inttimidades já não decorre com as possibilidades todas que à partida teria, há um dos sujeitos ferido, degradado na trajectória de vir a ser menos ele próprio e mais determinado por condicionalismos alheios à respectiva liberdade constituinte (não confundir, entretanto, isto com o direito-dever de autodefesa de alguém vitimado que resiste à agressão, violência ou exploração: curiosamente é este comportamento que permite ao vitimizador descobrir, se quiser, uma autenticidade cada vez maior).


A universalidade dos projectos humanos jamais foi conseguida nem para ela tendemos em virtude dum reflexo de defesa: as propostas até hoje elaboradas sempre pretenderam anular o mais humano do homem, a possibilidade de se criar como um Eu amorizador universal, uma vez que permanentemente o tentaram instrumentalizar a projectos pretensamente infalíveis doutrem. À medida em que nos despreocupemos com a fragilidade do sonho filosófico e não busquemos senão autenticamente realizarmo-nos em comunhão ilimitada, em que ninguém fique de fora nem magoado, deixaremos de ter de cuidar da universalização do itinerário da humanidade: é que a fome de amor radica-nos tão fundo no imo que o consenso devirá um fruto que espontaneamente, por acréscimo, partilharemos no banquete em que, confiantes e desarmados, nos entregaremos nos braços uns dos outros. A universalidade do discurso filosófico jamais se consumará (como aliás a da ciência) mas doravante nada impedirá que os consensos principiem a abrir caminho e a alargar-se indefinidamente, na rota da amorização cuja fome jamais satisfeita nos impedirá de parar alguma vez.


Em resumo, a universalidade do discurso filosófico (como a de qualquer conhecimento) não é, afinal, meramente racional, decorrente dum imperativo lógico, mas também rigorosamente prática, dependendo do envolvimento activo de cada sujeito, primeiro no reconhecimento das leituras da interioridade e depois no das propostas de projectos, até ele abarcar todo o ser, o tempo e o espaço, no intuito de realizar o Eu pela realização de todos numa consumação final em plenitude.


Ora, isto, além de ser apenas aproximável em matriz histórica como é a nossa, é permanentemente vulnerável a interpretações erróneas, desviadas ou mórbidas. Mesmo quando esta falha é superada, porém, o indivíduo é sempre livre para dizer não e destruir a aventura a qualquer momento, invertendo-lhe a rota, agora apontando-a ao nada. Ora, até por isto, vale a pena não ignorar a inutilidade de pretender fundar a universalidade noutra atitude: é que a tentativa de a impor pela lógica não é mais que o intento de fugir a este risco final da liberdade, pretendendo uma vez mais anulá-la. Urge afirmar bem alto que, por muito que nos custe e arrisquemos, só respeitaremos integralmente o outro e, no fim, o Eu onde quer que aflore quando estivermos à altura de acatar o perigo de ele nos aniquilar. Doutro modo não lhe permitiremos que rume em sentido contrário, uma vez que tudo depende da margem de autonomia que ele for capaz de ocupar e que eu esteja disposto a respeitar-lhe, a suscitar-lhe. Aliás, como jamais conseguirei anular a liberdade íntima doutrem, quanto menos nele confiar e mais defesas em redor lhe erguer, maior é a probabilidade de ele inmvestir contra mim e para me destruir, uma vez que lhe imponho condicionamentos que tendem a diminuí-lo, a anulá-lo enquanto Eu livre. Também aqui é mais compensador jogar ao invés, o que deixa à liberdade todo o poder, com o risco de tudo deitar a perder quando muito bem entender. A única possibilidade de minorar isto é apostar e arriscar que tal não ocorrerá tanto quanto consigamos clarificar o olhar para os efeitos do que empreendemos: é que, no fundo, o outro que rompa o consenso vai vitimar-nos tanto quanto se vitima a ele próprio, na interioridade mais autêntica, a do Eu acolhendo a fome de amor infinito que nele mora. O risco, porém, é definitivamente inultrapassável.


O que redunda em que a universalidade, em filosofia, para além de ser, teoricamente, apenas indefinidamente aproximável, na prática só é confirmável tendencialmente e de modo permanentemente contingente. E outro não pode ser o estatuto se queremos manter-nos livres e cada dia mais libertos e libertadores. Longe de ser um mal, uma limitação, isto é um bem precioso, uma vez que nos garante e solicita para o que de mais autêntico somos e poderemos cada vez mais vir a ser.






A VOCAÇÃO PROSPECTIVA DO FILOSOFAR




a) A ambiguidade da consagração


O facto de o filosofar requerer o ócio, no entender da Atenas clássica, não foi inofensivo para o rumo das opções que nos legou. Com efeito, o tempo disponível para a cavaqueira, mesmo exigentemente problematizante, não era apanágio de qualquer um. Apenas a aristocracia podia permitir-se tal luxo. O escravo ou ilota, pobres e sem direitos, sobreviviam dificilmente para disporem de horas livres além da luta pela sobrevivência. Os filósofos são da classe privilegiada e, obviamente, acabam por reflectir-lhe a mentalidade e preocupações, por muito que tentem escapar-lhe ao condicionamento. Aliás, a pretensão de atingirem a essência de todas as coisas, a verdade para todo o sempre, é simétrica da tentativa de eternização que os privilegiados tendem sempre a propugnar para garantirem o estatuto deles: no fundo é o desespero de descortinarem qualquer razão fundamental para serem o que são e não caírem do pedestal. Quanto mais parecer natural e inatacável, mesmo eticamente, a vantagem de que disfrutam, mais ela perdurará, uma vez que a consciência colectiva não só a não repudiará como lhe dará apoio e prestará homenagem. Este intuito de autodefesa tendente à autoconservação é tanto mais eficaz, aliás, quanto mais inconsciente for para o próprio e para a população: é que aquele falará tão convictamente e convencerá tanto quanto ignorar os pressupostos que o impelem e quanto melhor se convencer de que eles o não movem mas antes a procura desprendida da verdade, do bem, do belo, pelo valor que eles próprios têm. A honestidade do autoconvencimento é uma arma poderosa para o convencimento doutrem: a má fé não custa atacar; a boa fé errónea, revestida com algum brilhantismo, perdura milénios, como ocorre com os filósofos do período doirado grego, mormente Sócrates, Platão e Aristóteles. A filosofia-para-a-eternidade quase atingiu o alvo, perdurou muito para além da manutenção da respectiva classe de origem, mesmo da hegemonia, cultura e civilização gregas cujo canto de cisne foi deles, antes do afundamento político geral e sem retorno por mão de Alexandre Magno, discípulo, aliás, do último daqueles luminares.


Quando as circunstâncias sócio-económico-políticas esboroam o poder implantado, há a fuga para uma região inatacável: o onírico. Este, ou se torna esquizofrénico e é a loucura, ou se torna criativo e é arte e filosofia. Esta ponta final antes da queda, no segundo pendor, ressuscita e consagra o que de mais válido uma classe projectou e tentou activar e lega-o aos vindoiros, muito embora falhe na tentativa de eternização da ordem estabelecida e respectivos protagonistas. Consegue-a um pouco, contudo: se não no processo social onde, apesar de tudo, vai entravar e relativizar a derrocada da classe dominante, pelo menos na justiça que lhe presta e na herança que, mais ou menos involuntariamente, lega a quem lhe suceder.


Os grandes sistemas filosóficos clássicos, apreendidos doutro ângulo, são o fruto dum conflito de sentidos do tempo. O movimento sofístico, prenúncio e fermento interno duma nova época, com a destruição das crenças e dogmas herdados e , no extremo, com a defesa do relativismo a todos os níveis, desde o cognitivo ao ético, rompeu caminho rumo ao porvir ainda ignoto, desacreditando e dessacralizando a tradição e os mentores e beneficiários dela, justamente a aristocracia. É o alerta de que os tempos vão mudar, estão já mudando, uma vez que os sofistas já não são, nos avatares mais significativos, privilegiados, mas antes aventureiros pendurados aos poderosos e a serviço deles e de quem pretenda atingir o poder. Prenunciam e inauguram já o vindoiro.


Ora, Sócrates, como sofista-mor, provoca o descrédito de todas as crenças herdadas, e, como tal, abala a ordem, derrriba o soberano e, portanto, na lógica da autodefesa, é condenado à morte por este, no tribunal aristocrático da cidade. Mas igualmente Sócrates, como mero prenúncio inseguro da nova síntese da história futura, cria as condições para que a ordem estabelecida recupere o fôlego, uma vez que lhe não elabora alternativa (“só sei que nada sei”) e, enquanto esta não aflorar, manter-se-ão, embora doravante em regime provisório, os valores ancestrais; o mal-estar da provisoriedade requer, porém, a reformulação e vão ser os discípulos que a tentarão clarificar, novamente com pretensões de absoluto, de eternidade, de certeza, restaurando deste modo a base em que a ordem de antanho e respectiva classe dominante encontrem apoio e espaço para ainda respirarem. Neste sentido, Platâo em Aristóteles fecham por antítese um ciclo cuja charneira era a maiêutica socrática, única ponte possível entre dois universos de ser e projectar-se: o das novidades socioculturais que relativizam a tradição, suscitando inéditas propostas e valores que optimizem o empenhamento colectivo de novas formações sociais – e por aqui rumava ao porvir; e o das abaladas estruturas socioculturais e políticas herdadas, a tentarem por todos os meios impedir a derrocada que interpretam como um retorno à corrupção, à destruição de ideais, de valores e da coerência social em geral, como a incarnação do mal, o fim apocalíptico do mundo – e por aqui se aprisionam ao passado, entravam a transformação, pretendem fossilizar a história. Se Sócrates se colocava no cruzamento dos fogos e dele foi vítima, mal-avindo com todos, já Platão e Aristóteles se acolheram ao lado conservador da barricada a desagregar-se. E é justamente a constatação do irrefragável esboroamento do mundo donde vinham que cava a diferença entre ambos, em virtude do período duma geração que em idade os separa: se Platão é crente ainda nas forças tradicionais para reter a avalanche da mudança, já Aristóteles é o que lhe constata a inelutabilidade – daí aquele propor a ditadura do filósofo aristocrata como o regime político ideal (“República”) e este já considerar, conformado, que o ideal será o regime adaptado às circunstâncias e que a transmutação sociopolítica vier a aconselhar como mais equilibrante para cada momento, dado o pendor dominante correcto ou corrupto do uso do poder fase a fase. Se por aqui, porém, de algum modo se aliou ao mundo novo em expansão, fornecendo ao poder o modelo de adaptação que lhe garanta a sobreviência, em desespero de causa, pelas “Categorias” da sua lógica dedutiva e pelo afrontamento logicamente irrespondível da sofística contemporânea não escondeu a pretensão de liderar e gerir ainda o nascente período histórico, destruindo-lhe os arautos e mentores, agora pela mão dum saber de vastidão e precisão verdadeiramente geniais. É o derradeiro abencerragem duma classe moribunda, apostado em ressuscitar um cadáver, de costas para o fatalismo da temporalidade que a todos acaba por derrubar e relativizar.


Numa palavra, o esforço da mais organizada e coerente filosofia grega é um intento de garantir a perenidade no tempo, é a busca desesperada do intemporal. Neste pendor, é um filosofar a-histórico e mesmo anti-histórico. Não apenas na Atenas do “século de oiro” de Péricles (séc. V a. C. ) e declínio dele dissolvido no grande império macedónico, mas ainda e mais gravemente nos dois milénios e meio que daí até agora decorreram e onde o filósofo consagrado mais não fez, à imitação daqueles ancestrais, que reflectir e cristalizar o pretérito, a ordem implantada, a classe dominante, legitimando-a e fornecendo-lhe interminavelmente modelos de adaptação à mudança histórica para garantir-lhe indefinidamente a reprodução, a perenidade. Jamais o filosofar de maior eco se propôs abrir caminho ao porvir, rompendo trilhos adiante do presente, iluminando rotas virgens. Apenas no séc. XIX Marx tentou inverter expressamente este enfeudamento a uma tradição infundada e castradora. A pretensão de verdade absoluta com que foi interpretado e imposto cortou de facto a permanente dialéctica por ele próprio propugnada, transformou-o, uma vez mais, no sacralizador duma ordem estabelecida, agora a da revolução (e todas as ditaduras, de qualquer que seja a cor, se autoproclamam de revolucionárias, como exorcismo-mor para escamotear um insuperável e mortal conservadorismo). Numa palavra, o intento filosófico de libertar-se da escravidão crónica à ordem implantada resultou novamente frustrado, pois vem gerando identicamente uma ordem paralítica anquilosante.


A questão não seria tão grave se apenas estivera em causa a totalidade da área potencial do filosofar, irredutível à mera vivência do pretérito. É que, de qualquer modo, jamais ela se esgotará em regime histórico (que é o de nossa natureza) e nunca um filósofo poderá cobri-la por inteiro, nem sequer na generalidade mais envolvente dos respectivos princípios. Até aqui o problema teria um alcance meramente académico, o dum condicionamento insuperado injustificável. Quando muito seria eticamente contestável nos resultados a que tende, em virtude de eternizar uma tradição e respectivos beneficiários e prejudicados, entravando eventuais melhorias e reequilibrações. Nada, porém, nos permite sequer afirmar que isto adviria automaticamente por aquela correcção da perspectiva de focagem do filosofar. Quando muito presumimo-lo como provável e desejável. Diríamos que até aqui o grave é estar-se ferindo o intuito de saber que a pesquisa busca, é a visão da área que fica diminuída. Ainda não somos nós que ficamos gravemente diminuídos e menos ainda ameaçados ou, pior, destruídos. Hoje em dia, porém, o risco principiou a ser este e poderá ser crime ignorá-lo ou iludi-lo.


Com efeito, a gravidade dum terceiro conflito mundial (os arsenais nucleares chegam para destruir dezenas de vezes o planeta) aparece agora esbatida pela ameaça, em curso imparável, do esgotamento dos recursos da Terra dentro de três gerações; da destruição ecológica completa de rios, mares e florestas acompanhada da desertificação acelerada da crosta terrestre; da superpopulação e morte maciça de dezenas de milhões de pessoas, em breve, anualmente, por fome endémica; do abismo cada dia mais cavado entre povos ricos e pobres, agravado pelo outro da contradição entre culturas, cada dia mais confrontadas; da generalizada esquizofrenia que divide cada indivíduo por dentro dele próprio entre os valores e tradições herdados e os ritmos, adaptações e exigências duma civilização em transformação uniformemente acelerada, em corrida frenética que ninguém controla nem imagina onde irá despenhar-se... A desproporção, urgência, gravidade destes e doutros problemas requer inadiavelmente que os mais responsáveis de cada cultura enfrentem o amanhã e tratem inadiavelmente de lhe delinear um perfil a todos aceitável, exequível, e tratem sem demora de propor à humanidade encaminhar-se por aí. Doutro modo poderemos viver (e tudo indica que já vivemos) com a vida a prazo. E quanto mais tarde encontrarmos roteiros mais eles serão estrangulados, maiores perdas ocorrerão, com menores probabilidades de equilíbrio jogaremos.


Ora, esta inflexão de extrema premência, entrevista já por Marx, acaba por tê-lo, mau grado a expressa vontade dele, como um obstáculo dos mais difíceis de transpor. Com efeito, para a classe política que por ele se pretende reger, ele tornou-se um dogma e um ritual. Para quantos pretendeu libertar, transmudou-se num orago de quem se aguardam milagres que nos desonerem da responsabilidade de assumirmos a história e a vida nas próprias mãos. Esta corruptela prática dum filosofar generoso que apenas pecou por demasiado autoconvencido e apaixonado contra uma classe dominante já na origem estereotipada, ameaça-nos hoje da mais violenta grilheta perante a ordem implantada, ao impedir-nos ou pressionar-nos a demitirmo-nos aprioristicamente de operarmos por nossa própria consciência, tanto para conhecer como para optar e agir.


Para a filosofia se libertar das peias tem de precisar lucidamente que a relatividade do filosofar vai muito mais longe e mais fundo do que o até hoje pretendido: não há uma filosofia científica (isto seria a completa alienação e redundaria na robotização final do sujeito), como, entre outros, pretende o marxismo; nem sequer seria desejável havê-la, senão para quem sofra de “instinto de morte”, a requerer psicoterapia; não há nem é pena nenhuma que não haja objectividade do saber filosófico porque este é apenas o discorrer dum sujeito que se expõe e oferece em dádiva gratuita aos demais, convidando-os ao consenso e tentando-o com eles, como primícias da comunhão ilimitada que todos tendemos a ir conseguindo e nos promete a plenitude feliz no termo do projecto que somos; não há dogmas nem essências no filosofar que se imponham por eles a tudo e todos, independentemente da própria evidência racional experimentada pelo sujeito que os julga, contrariamente ao que sempre pretendem as ditaduras, mesmo e principalmente quando a coberto do manto virtuoso dum qualquer filósofo (ou profeta); não há valores e projectos objectivamente (nem histórica ou sociologicamente) libertadores, uma vez que apenas onde a liberdade de cada Eu se assumiu para reordenar o mundo a partir do mais fundo dele próprio é que a libertação começa a ocorrer, tudo o mais se reduzindo inelutavelmente a condicionamentos, a determinismos, numa palavra, a desumanidade, ao não-homem.


Para termos um porvir urge criar as condições de nos encontrarmos como iguais planetariamente. Vemos que apenas é viável isto a partir do que tradicionalmente tem sido apodado como as fragilidades do filosofar. O que nos obriga a rever também aqui os nossos juízos de valor: tais fraquezas, longe de serem males, falhas irreparáveis e consequentemente a colmatar, são antes bens inestimáveis que é urgente implementar e não encobrir, uma vez que nos requerem (e permitem) que nos encontremos. Mais, implicam que apenas através da mútua comunhão possamos dar um passo e jamais por outra via. Ora, isto é o princípio da nossa salvação porque é o rumo que, projectado ao infinito, nos levaria à plenitude feliz. A filisofia, assim, fica finalmente em condições de reencontrar o verdadeiro estatuto dela e, com isto, o itinerário para ir instaurando o homem em autenticidade, como pessoa livre e libertadora em comunicação-comunhão sem fronteiras. Jamais como hoje se entrevê o inadiável de tal caminho: pode ser, afinal, uma questão de vida ou morte para a humanidade. Ora, nós temos, portanto, a chave nas mãos: podemos salvar ou aniquilar o homem, encerrar ou retomar em mãos a história, apagar ou entalhar um rosto humano no Universo inteiro. É urgente optar entre as duas trajectórias. O tempo é demasiado curto para aristocraticamente nos darmos ao ócio. É que assim também escolheremos: amanhã estaremos mortos, o xeque-mate terá sido dado irrevogavelmente enquanto errávamos distraídos.




b) Instaurar o porvir


Uma das maiores limitações do filósofo é uma tara de que todos no ocidente sofremos: a busca da originalidade pela negação doutrem. Depois das extraordinárias comprovações de fecundidade e sentido que a atitude inversa permite, como se viu com a exploração platónica de Plotino e depois de S.º Agostinho, assim como a aristotélica empreendida por S. Tomás de Aquino, com Descartes cortou-se a via da busca de consenso, excepto durante o momento, mais uma vez alto, do Idealismo Alemão. O “cogito” cartesiano é um golpe de génio logicamente imbatível mas, analisado na ontologia, não redunda apenas num impasse (em que há dois séculos em tal disciplina vivemos) mas num erro. É que em “penso, logo existo”, o primeiro elemento, o “penso”, não existe como realidade: com efeito, não há pensamento puro jamais, sempre que penso penso em algo, pensar é sempre irremediavelmente a fusão da consciência com um objecto pensado. Pensar é já um acto de comunicar (entre o pensamento e o dado), é já comunhão agindo: pensar é amar.


Ora, o não termos relevado isto levou a que nestes derradeiros séculos os filósofos fossem literalmente atacados de esquizofrenia, cada um refechado em sua torre gritando para as peredes dos quatro ventos, cada qual apenas se sente autorizado a ter consideração por ele próprio se desancar todos os mais e lograr destruir quanto deles o atinja. Vivemos na filosofia do solilóquio berrado à maluca pelo mundo fora para ninguém. É por isso também que já vida nenhuma a sério percorre o filosofar contemporâneo, por muito sugestivas que sejam tantas das respectivas intuições e verdadeiro o que no discorrer dele recolhemos. É que ficamos todos cheios de suspeita, inveja e despeito, não vá o filósofo pretender que nós também não pensamos e, logo, a primeira atitude que tomamos é jogá-lo na prateleira a fim de meditarmos por onde nos poderemos encontrar como quem pensa por si, interpretando isto, obviamente (e estupidamente), como pensar em discordância, ruptura e agredindo o outro.


Ora, pensar não é isto, é acolher outrem nos braços: ele é que nos pode revelar quem somos e jamais o eu de cada um a ele próprio.


Esta tara individualista corroi o filosofar mundial como um cancro e é difícil de denunciar. Com efeito, a crítica filosófica aborda exclusivamente o discurso produzido, actua sobre livros e revistas e jamais com pessoas e vidas. Ora, a doença encontra-se aqui e apenas indirectamente se reflecte acolá, pelo desvio iconoclasta inferido. No primeiro fundamento, não é filósofo quem reflecte mas quem ama: é que quem não ama elimina do horizonte os objectos sobre que a reflexão incidiria e que o desamor repele, impedindo a consciência de crescer compreendendo-os, abarcando-os, sintetizando-os com todo o restante universo existencial, indo sempre mais além, indefinidamente. Por aqui, a infinitude perfila-se no horizonte final de projecção de cada um; pela rota isolacionista resta apenas a alucinação para imitar um perfil de mundo, com o filósofo dentro duma camisa de forças cada vez mais estreita em que a ele próprio se estrangula.


A fome de amor é tamanha, a insegurança em que o individualismo nos abismou é tanta (agravada pelo pendor egoísta do capitalismo e das formações socioculturais por ele geradas e condicionadas) que outra deformação nos atinge e grassa planetariamente em proporções jamais outrora ocorridas: a imposição da filosofia pela força, a sacralização veneradora e decapitada dum sistema de pensamento. Foram antigamente a ora renovada Guerra Santa do Islão, as Cruzadas e a Inquisição dos cristãos e, hoje em dia, o nazi-fascismo e as ditaduras comunistas: em todos os casos, a institucionalização da alienação, o massacre do humano erigido em dever e imposto por lei, executado pela bota concentracionária de polícias e forças armadas. Menos visível que o horror daqui gerado mas tão podre como isto é o clubismo, as pequenas e grandes capelas de adoração dum nome qualquer: em todos os casos o acesso do Eu a ele próprio pela leitura da vivência é ilegitimado, punido de alguma maneira, se não pelo tribunal e o soberano, pelo menos através da opinião ambiente e da pressão social. Cortada a entrada em si próprio, o Eu perde a identidade e mergulha na multidão amorfa, mesmo e pior ainda quando voluntariamente a tal adere convicto e obcecado pelo fulgor dum grande mestre. É, aliás, neste caso derradeiro que se geram os fanáticos que tomam e cegueira própria por um ideal e percorrem a vida a tentar cegar toda a gente, a bem ou a mal. Estes angustiaram-se tanto com a insegurança do isolamento que ultrapassar tal instabilidade se lhes tornou uma prioridade irrecusável, de tal modo que ficaram surdos a quaisquer outras solicitações da afectividade. Normalmente, uma vez satisfeitos, o tónus da ansiedade declina e eles caem em si, mas já é tarde: atrás deles, por dentro da memória e ao lado persegue-os um cortejo inumerável de mortos ou de cadáveres vivos adiados. Jamais a libertação se tornou tão intolerável e doi tanto: quase ninguém logra dar o salto, a fuga para a droga, alcoolismo, marginalidade, loucura são vias mais fáceis e a autopunição também acalma a consciência duma injustiça doravante irremediável. O desespero é o índice comum de tal itinerário: termina no cemitério, imediatamente ou a prazo.


A gravidade disto é extrema em qualquer conjuntura histórica de antanho, mas hoje atinge proporções jamais outrora vislumbradas. É que o poder dispõe de força tal que pode, fanático, aniquilar-nos genocidamente para nos salvar, pela mão de qualquer tiranete com o botão nuclear. Mas mais requintadamente e sem dar tanto nas vistas, os ditadores do século anterior aperfeiçoaram técnicas de agredir as personalidades por dentro tão eficazes que sabem aniquilar qualquer um sem deixar rasto nem esperança de recuperação, conseguem programar e linchar povos inteiros, com frieza de autómatos, sem que ninguém dê por nada (ou quase). Podem, aliás, e em rumo aparentemente contrário, tornar-nos a vida uma festa permanente, carregada de prazeres e gozo, independentemente e até contra a vontade de cada um de nós; mais refinadamente ainda, conseguem atrair-nos e cativar-nos para aquilo de tal modo que nós o desejaremos e gritaremos por mais, perfeitamente convictos de que tal corresponde ao que de mais autêntico no fundo da nossa afectividade nos impele, apelando por realização. A técnicas hoje disponíveis para tornar outrem uma marioneta do arbítrio de alguém lograram alcançar a adesão daquele, conseguiram ludibriar-lhe o olhar, domesticar-lhe a sensibilidade, de modo que doravante temos de perfilar perante nós a possibilidade duma humanidade de títeres risonhos, sob a batuta dum vampiro qualquer que nos sugou a alma. Há poder e técnicas para atingir isto. Frankenstein ao menos provocava horror, o conde Drácula gelava o sangue nas veias; o novo horror ultrapassou-os definitivamente - atingiu a arte de encantar e dar prazer.


Amanhã poderemos deambular todos narcotizados, vivendo a compasso; e ninguém deu por nada e até crê que é inteiramente feliz como jamais o seria noutras condições. Já não haverá então pessoas: uns, porque aniquilaram a subjectividade dos demais e cortaram, portanto, os laços intercomungantes que os revelariam a eles próprios, anulando a possibilidade de os instaurarem; as vítimas porque, distraídas e encarneiradas, se deixaram esvaziar da consciência e domínio da própria interioridade, entregando-se ao controlo arbitrário doutrem, anulando-se, portanto, como eus, tornados definitivamente joguetes dos determinismos exteriores e interiores. Aqui no limite, a liberdade própria sobredeterminando, a partir da interioridade, toda a pessoa e irradiando dela para o mundo e o Universo inteiro já não revelará qualquer vestígio. Seremos um circo planetário de arlequins, cheios de nada atrás da máscara da alegria. Ora, tudo pode ainda ser o inverso.


Com efeito, sempre que me imponho a norma da autenticidade, a saber: que devo acolher disponível cada outro, evitando simultaneamente rejeitá-lo aprioristicamente por repulsa emocional (que me condiciona preconceituadamente no encontro com ele, tendendo a limitá-lo àquilo em que ele me repete e confirma) e, por outro lado, não me submetendo cegamente a ele, ofuscado pelo respectivo brilho (como se eu fora atrasado mental e condicionando-me a operar sob complexo de inferioridade); - sempre que assim actuo e tanto quanto consigo manter-me fiel a este equilíbrio libertador, tanto mais improvável se me torna discordar de qualquer filósofo, qualquer que seja a respectiva opção de leitura e de vida. É-me sempre viável descortinar um sentido, uma perspectiva, um aspecto relativamente ao qual estou de acordo com ele, em qualquer que seja o domínio;simultaneamente com isto desvendo que tenho ignorâncias e insufuciências nas minhas leituras e opções que trato então de rever, reformulando-as agora de modo mais englobante, mais universal, mais radical. No termo, eu e ele empreendemos uma grande caminhada e revelámo-nos mutuamente para além dos horizontes de partida, descobrimos um mundo novo: o Universo inteiro brota inesperadamente a uma nova aurora. Eu torno-me mais eu próprio, mais autónomo frente aos meus determinismos, porque agora os identifico mais e melhor e já estou prevenido perante eles; mas também comungo mais com o outro, encontro novas convergências e simpatias compartilháveis, estreito laços, reencontro-me para além de mim. Numa palavra, cresci por dentro e para fora, principiei a estender-me pelo Universo de mão em mão, coração a coração. Ora, este é o filosofar que vai estendendo as pontes e não lhe entrevejo fronteiras.


A amorização é um processo eminentemente interpessoal mas, como a pessoa é um feixe de relações com os outros, através do medianeiro que é o universo sensível assumido na experiência empírica, em quaisquer que sejam as componentes, ao filosofarmos em autenticidade nós arrastamos ao consenso, porque já previamente nos colocámos disponíveis de coração aberto para outrem, não apenas as inteligências , mas ainda, para além da afectividade (sem a qual, como vimos, não há filosofia possível mas um processo a caminho da loucura), a pessoa inteira e, com ela, toda a humanidade e o Universo completo, sem que nada possa lograr ficar de fora nem ser indiferente. Filosofar é tecer a convergência na qual nos reconhecemos cada vez mais nós próprios. Ora, esta começa no meu íntimo com a reconciliação comigo que me permite assumir-me, escolher-me livremente a partir da auscultação do que de mais profundo consiga em mim apreender, ordenar-me e projectar-me em função disso, pelo meu corpo, para os demais, traduzindo o meu gesto de dádiva e busca de comunhão através de toda a corporeidade do universo sensível, o que transmuda este numa prenda de mim para os demais, no sinal e testemunho de que a eles me entrego e os solicito a entregarem-se-me, traduzindo-se do mesmo modo para mim e uns para os outros numa reciprocidade ilimitada. Tudo isto é o filosofar tornado realidade, feito sujeito e corpo, amor incarnando-se e transfigurando tudo e todos à sua medida, à medida do sonho de infinitude do homem, de cada um de nós.


Não há por onde fugir: todo o Universo aguarda disponível e desgovernado que o tomemos em mãos para dele talharmos a nossa morada, primeiro, a fim de nele depois espelharmos o que somos e pretendemos ser a partir do íntimo uns para os outros, a fim de, finalmente, ele se vir a tornar transparência fiel, total de cada Eu a cada Tu, de modo a sermos enfim o Nós, jamais historicamente pleno, em que cada um será tanto mais ele próprio quanto mais em si interiorizar todos e a comunhão tanto mais una e infinita quanto mais ilimitada a autenticidade de cada um nela partilhada.


O tempo e o espaço poderemos, afinal, ser nós próprios elevados ao infinito. Por ora isto é uma utopia que nos obriga a sonhar, incrédulos e poéticos. Sabemos, porém, que o impossível só o é até ser realizado. E, à escala do Cosmos, que é a duração duma vida, que é a humanidade? O porvir não tem de ter senão as fronteiras que a nossa miopia lhe queira impor. Qual a vantagem de limitá-lo?




c) A dialéctica intimidade-exterioridade


A estrutura do projecto humano, em última instância, consiste na procura do amor infinito que me realize em união total com o outro, para o que é precisa, necessariamente, a mediação do corpo, como intercomunicador universal, o qual, por sua vez, ao servir de medianeiro, instrumentaliza para tal fim todas aas coisas, transformando em mediador, gradualmente, o mundo e atrás dele o Cosmos inteiro. O horizonte final de tal plano é que todos sejamos um, unificando connosco o Universo integralmente, tornado transparência absoluta do íntimo de cada um para cada outro, obediente como então será o exterior ao querer da liberdade do eu-dando-se-ilimitadamente, do mais fundo de si próprio, a todos os demais e transformando nesta dinâmica o Cosmos, na totalidade das dimensões, numa prenda em que nos comungamos, em que nos tornamos prenda mútua. Apenas então será também atingível o mistério derradeiro do ser, ao desabrochar, em movimento único, a raiz última da afectividade na vivência do amor infinitamentem Belo, nisto se revelando infinitamente Bom, o que é a Verdade pura, sem mais véu. Como impulso de comunhão em plenitude, isto devirá interminavelmente inovador, inesgotável, irrepetível, insaciável, como todo o amor autêntico já o prenuncia na limitada condição histórica que é a nossa, peregrino do infinito aqui tão longe do termo da jornada!


Se tal é o quadro de fundo do homem enquanto projecto a que tende a raiz última apreensível da intimidade, a simplicidade que aparenta, porém, é ilusória. Com efeito, enquanto estrutura de enquadramento ele apenas baliza o itinerário, não nos indica qualquer dos conteúdos e operações concretas que teremos de empreender para cobri-lo, nem sequer nos clarifica o papel do arbítrio pessoal que livremente terá de deliberar se tal é o caminho ou não que pretende percorrer e, em qualquer das hipóteses, como entenderá promovê-lo.Também nada nos esclarece relativamente aos critérios para descortinarmos a coerência ou não entre as escolhas em cada fase e a opção de partida. Os melhores intuitos cometem os erros mais grosseiros: como evitá-lo? Por outro lado, fica tudo por empreender em concreto, na realidade da vida, a nível existencial e empírico.


Felizmente não é preciso, para viver, ter consciência e programar-se reflectidamente. Aliás, vivemos incomparavelmente mais em função de automatismos inconscientes do que regidos pela vontade radicada na consciência explícita. Isto é assim desde logo porque a maior parte de nós próprios nos escapa, ignoramo-la por completo, não temos meios nem instrumentos para aceder-lhe. Aliás, nem sequer lhe suspeitamos da existência, ao que tudo indica, na linha das revelações inéditas que vamos tendo dos abismos que nos constituem: as pesquisas psicanalíticas e as dos fenómenos psi são apenas as mais recentes demonstrações disto. Seria ingénuo e imprudente crer que nelas atingimos a nossa fronteira derradeira. Poderíamos acreditar, entretanto, que ao menos dentro do campo em que já temos entrada é a vontade libertadora a mestra da vida. Tal crença, aliás, encontramo-la bem escorada na definição clássica de que o homem é um animal racional, constituindo a racionalidade a diferença que nos distingue perante o restante reino animal dito irracional. Curiosamente, este insignificante resto de diferença tornámo-lo emblema cultural da espécie e, daí, ponto de referência explícito da leitura de nós próprios. Ora, isto é um disparate de que humildemente cada vez mais temos de reconhecer a incongruência: a razão humana é uma franja secundaríssima e frágil, permanentemente ultrapassada pelo inconsciente e demais forças, reflexos, instintos e automatismos que nos constituem como entes e nos impelem, alheios à nossa vontade, liberdade e consciência.


Nestes termos, longe de sermos, de facto, animais racionais, nós comportamo-nos antes normalmente como animais estúpidos. Somos, aliás, os únicos que o podem ser, uma vez que dispomos da capacidade de reflectir que, aliada à vontade libertadora, nos poderia garantir um rumo sensato na vida. Ora, isto habitualmente escapa-nos, não usamos o poder que temos com o alcance que já nos permite, de facto. Os outros anuimais não são capazes de tal, nós monopolizamos efectivamente o privilégio da estupidez. Ora, é apenas depois de todas as áreas de vida até aqui referenciadas que o pequeno apêndice da racionalidade faz entrada e dá prova dele mesmo. Nem por ser tão quase nada deixa de ser o mais prometedor do que na área cognitiva dispomos. Com efeito, apenas o poder de reflectir poderá algum dia viabilizar-nos o uso coerente da vontade em termos de livremente assumir-nos para nos realizarmos até ao fim, realizando assim todas as coisas, na vocação de ser-para-nós que cada uma e o Cosmos inteiro comportam.


Tudo isto apenas nos deve servir de alerta para não embarcarmos em ingenuidades nem triunfalismos infantis que nos afoguem por irresponsabilidade. Teremos de avnaçar com prudência e humildade, com os sentidos alerta para dentro e para fora, e intransigentemente disponíveis à reconversão, à revisão, à reformulação permanentes de teorias e práticas, vocacionando-nos ao desenvolvimento-unificação indefinido de nós próprios, dos outros, do mundo e do Universo inteiro.


É neste contexto que há três séculos se debate, emaranhado em inúmeras querelas e confusões menores, o confronto entre a filosofia e a ciência, como dois universos de sentido e de poder privilegiados, já escapados à indefinição do inconsciente e aos automatismos vitais que nos constituem. Como vitórias reais arrancadas ao magma confuso do húmus em que radicamos, urge atendê-las e preservá-las, conseguindo aqui também a conjura de ambos em prol da humanidade, criando a harmonia na diferenca que há-de pautar tudo quanto nos encaminhe à plenitude. Neste contexto, o que ora releva é delinear o grande quadro deste diálogo, retraçar a linha de convergência, o projecto de que resulte o empenhamento solidário, a comunhão partilhada.


Neste sentido, o que logo releva é que filosofia e ciência são as duas primeiras grandes áreas de encontro e funcionamento da interioridade com a exterioridade, de modo consciente e voluntário. Pelo menos, poderão vir a sê-lo, dado que também aqui as margens de irracionalidade proliferam, por muito que seja onde menos o esperaríamos. E, além do mais, a liberdade terá de optar por concretizá-lo.


Ora, se assim for, antes de tudo, em virtude de a ciência incidir exclusivamente no experimentável, a filosofia, enquanto oriunda da interioridade, é que determina o projecto humano nos valores e prioridades que ele comportar, requerendo a sobredeterminação do universo existencial e sensível pela vontade, de modo a tudo ser encaminhado rumo ao termo pretendido. Neste contexto, é a ciência que maiormente pode viabilizar a concretização do projecto ao descortinar a lei dos determinismos perceptíveis envolvidos e inventar as técnicas que permitam domesticá-los, obrigando-os a obedecer à vontade soberana do homem. Neste pendor da relação dialéctica, a ciência cumpre, com o objecto que lhe é próprio, o voto da intimidade, o mando do Eu e da respectiva conjunção à escala da humanidade (consciente ou inconscientemente: o trajecto é, em qualquer caso, o mesmo). O reordenamento dos determinismos externos que primeiro se encadeiam ao sabor do acaso cósmico, de modo a incarnarem o sonho do homem e passarem então a ter uma directriz determinada pela liberdade, torna-os expressão da interioridade por dentro reordenada, linguagem em que comunicamos uns com os outros, em que mutuamente nos revelamos, nos damos. Mais ainda, isto vai tornando o mundo sensível cada vez mais maleável à vontade humana, cada dia mais transparente aos anseios que nos movem, cada vez mais fiel às aspirações que do fundo nos impelem à comunhão: no limite, a dimensão perceptível da experiência será a incarnação do amor, finalmente tudo em tudo e todos. Visto noutra perspectiva, é o corpo próprio que, começando por ser manifestação e suporte da minha intimidade para os outros, se prolonga pelo mundo sensível além, a tudo impondo igual função, transformando todas as coisas em desdobramentos de si interminavelmente, de tal modo que por ele imprimo a minha marca pelo Universo fora, mão estendida para abraçar quantos comigo se cruzem e para deles colher idêntico testemunho. No termo, o Universo inteiro estará transformado no prolongamento do meu próprio corpo e será o meu mensageiro para os demais, serei eu alargado ao infinito e simultaneamente será isto para todos: será o corpo comum de todos nós, fundidos e unificados nele finalmente de modo indissolúvel, expressão e realidade última do amor consumado em plenitude.


Então toda a interioridade estará exteriorizada, a transparência mútua será absoluta e a irradiação de cada intimidade, pelo Eu no Nós, será íntegra, sem obstáculos nem deformações. O que, sendo uma possibilidade empolgante, dada a nossa congénita e insuperável estupidez, é uma probabilidade longínqua e um risco tanto mais tremendo de mútua violação quanto mais nos aproximarmos do termo da trajectória. É que a liberdade de cada um a qualquer momento pode enganar-se mesmo estando bem intencionada, e também pode rejeitar o itinerário e o objectivo e preferir o suicídio pessoal arrastando-nos a um genocídio eventualmente apocalíptico.


Colocando a análise na perspectiva inversa desta dialéctica, a primeira grande região de condicionamento com que deparo é a do objecto sensível que simultaneamente com o esteio que me oferece (só sou no meu corpo ou, ao menos, por referência a ele, uma vez que a interioridade não tem dimensões), me determina o leque de possibilidades de que disponho para ser e realizar-me. Ora, é aqui que a ciência está maximamente implicada, agora para me desnudar a lei que se me impõe e que interiorizo, primeiro pela formulação na consciência, e logo pela submissão-acolhimento afectivo e do agir perante ela, condição sem a qual jamais a poderei dominar quando a pretender sobredeterminar pela minha liberdade. O Universo ser-me-á obediente na condição prévia de que primeiro lhe obedeça eu, auscultando-o cuidadosa e humildemente, a fim de que ele me revele o respectivo segredo, se me torne familiar, para depois o poder domesticar a partir da sua estrutura e funcionamento. Ora, como permanentemente me escapa para mais longe do que o que dele vou logrando desvendar, numa fuga indefinida interminável, jamais me conseguirei eximir da atitude de dependência frente à ciência-tecnologia, entretanto o mais eficaz instrumento de libertação até agora inventado pela humanidade. O exterior impõe-se-me de modo irremediável como condição inamovível para eu ser e que terei de acolher, a bem ou a mal: com efeito, se pretender ignorá-lo, ele esmagar-me-á no respectivo desencadeamento cego e, portanto, também lhe não poderei escapar. Ora, neste sentido, o meu acolhimento dele projecta-se rumo a um gradual aprofundamento do seu mistério, pouco a pouco mais revelado, de tal modo que, no limite, eu conhecerei integralmente todos os determinismos do Universo inteiro, o segredo manifestar-se-á, lerei no Cosmos como num livro aberto. Mas então, noutra perspectiva, tê-lo-ei integralmente representado em mim e acolhido no meu íntimo como espectáculo de maravilha para a minha afectividade e disponibilidade; estará igualmente domesticado, absolutamente obediente, ofertado ao meu agir-me. Será a estrada da minha liberdade estendida a meus pés porque rendida ao meu íntimo ao ter-me eu rendido a ela. No termo, toda a exterioridade será interiorizada, transfundida em todas as dimensões em meu uno imo. E também por aqui a distância entre a exterioridade e a interioridade será vencida e a mútua transparência e comunhão ocorrerá. Ora, em todo este trajecto, a prioridade é da ciência-tecnologia de que filosofia terá de ser atenta ouvinte para acolher as condições e possibilidades a partir das quais deverá elaborar e agir o respectivo projecto.


Como em todos os processos dialécticos, não há prioridades senão relativamente às perspectivas em função das quais analisamos e agimos. Não há mais nem menos nobreza em nenhuma das componentes indispensáveis do projecto humano de consumação final em plenitude.

Relembremos, todavia que, sendo uma projecção ao infinito, é historicamente inacabável e inconsumável, como já referimos (embora perenemente aproximável), até porque tomamos cada vez mais consciência do alargamento ao infinito do campo da nossa ignorância e inoperância; nada impõe, porém, que o tempo não se abra alguma vez à eternidade, mudando de natureza.


Resta clarificar que, sendo uma possibilidade em aberto, é uma probabilidade problemática dependente do jogo das liberdades e do rumo em que cada uma se aposte, arrastando com ela outras mais. Hoje em dia, quando se vai tornando claro e fácil vislumbrar o roteiro do paraíso, é simultaneamente exequível o inferno e o nada. Tudo o que acabámos de bosquejar pode amanhã ser mero devaneio porque já ninguém viverá para o protagonizar, nem até para o testemunhar, ainda que fora para rejeitá-lo. É que a desgraça irremediável é a do encerramento dos possíveis num cemitério planetário eterno. Hoje em dia é tão fácil de provocar que, não tarda, o risco mais temível é o duma distracção de alguém que o desencadeie sem nem sequer reparar.


O homem é um animal estúpido. Até que ponto? É o que nos falta descobrir, é o que conviria ignorar definitivamente. Vamos antes tratar de um dia o homem vir a ser um animal racional?




FIM






ÍNDICE


Experimentação e vivência

a) Objecto do filosofar e objecto da ciência

b) A objectividade e a subjectividade

c) O cientismo-tecnocracia e o pequeno resto do Eu


A vivência como universo

a) O íntimo e o corpóreo

b) O determinismo e a liberdade na empiria e na vivência

c) Projecto filosófico e projecto científico enquanto abrangendo o todo

O Eu e o Ele

a) Discurso do sujeito e discurso do objecto

b) O lado objectivo do sujeito vivencial

c) A dialéctica de ambas as abordagens como palavra-acto criador do projecto humano

Ciència e sabedoria

a) Filosofia como saber de mim

b) Filosofia como saber do universal

c) Filosofia como conhecimento dos primeiros princípios, das primeiras causas


A ética como encontro ciência-filosofia

a) O conhecimento empírico e a moral social

b) O cientificável e a falta de rumo

c) O rumo da vida como vocação do filosofar


Filosofia como matriz da salvação

a) O “suplemento de alma” e a crise de civilização

b) A ambiguidade do filosofar

c) A comunhão rumo ao infinito


A comunhão filosófica

a) Objectivação do subjectivo

b) A ambiguidade da recepção do filosofar

c) A comunhão totalizante


A vocação prospectiva do filosofar

a) A ambiguidade da consagração

b) Instaurar o porvir

c) A dialéctica intimidade-exterioridade